dezembro 28, 2007


.............. Kali Dance ...............


Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 178

«Um sábio e culto brâmane tomou sob seus cuidados
a criança, ensinando-lhe a linguagem pura e correcta,
bem como a gramática, a astronomia e a ciência
da meditação. Aos vinte anos já era leitor
do rei de Benares. Lia ao príncipe
os escritos sagrados e profanos,
segurando o livro perto
dos brilhantes olhos.»


F I M

Thomas Mann, As cabeças trocadas (Uma lenda hindu)
(«Die Vertaucheten Kopfe», 1940), «Livros do Brasil»,
Lisboa, 1987, p. 192

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 177

«Mas o pequeno fruto do seu ventre, Samadhi,
que, em breve, só seria chamado Andhaka,
prosperou sobre a terra.


Célebre graças à festa do sacrifício, gozou
de grande favor como filho de uma viúva
a quem erigiram um monumento,

a isso se acrescentando o amor despertado
pela sua beleza cada vez mais notável.»

op. cit., p. 191

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 176


Erigiram um obelisco
no próprio sítio do holocausto,
em memória do seu sacrifício.
op. cit., p. 191

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 175

«Mas a história relata e, nós queremos crer,
que o calor abrasador das chamas
lhe pareceu suave

em presença da alegria
de estar unida aos bem-amados.»

op. cit., p. 191

dezembro 27, 2007


As labaredas subiam até às nuvens...

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 174

«Os funerais, em virtude do sacrifício da viúva,
transformaram-se numa grande festa.

Sobre a fogueira, Sita, da aldeia do Abrigo do Bisonte,
tomara o seu lugar entre a esposa e o amigo.

As labaredas subiam até às nuvens,
e se a linda Sita gritou por algum tempo,
a sua voz perdeu-se no clamor das trombetas
e no rufar dos tambores.»

op. cit., p. 190-1

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 173

«Sita declarou-se de acordo com estas disposições.

Ambos os jovens caíram sobre a relva, cada um
atingido no coração pelo outro.»

op. cit., p. 190


— Traz as espadas...

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 172

«— Traz as espadas — gritou Nanda.
— Estou pronto para o combate e considero-o
uma justa solução para a nossa rivalidade.

Alegremente oferecerei o coração à tua arma,
por te ter traído com Sita. Mas trespassarei
o teu para que Sita não empalideça nos teus braços
por amor de mim e sim para que, duas vezes
viúva, se una a nós nas chamas.»

op. cit., p. 189-90

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 171

«— Devemos dedicar toda a atenção à forma
deste desagravo. — disse Shridaman

— A heróica viúva reduzir-se-á a cinzas na fogueira,
juntamente com o corpo do marido. Porém, tu não és
viúva enquanto um de nós dois viver.

Para fazer-te viúva, Nanda e eu devemos matar-nos,
quero dizer, devemos matar-nos um ao outro.»

op. cit., p. 188

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 170

«Somente se eu seguir o exemplo daquelas nobres Satis
que se uniram aos corpos dos maridos mortos
e entraram com eles nas chamas

— somente se o abandonar, a sua vida será honrosa
e o favor dos homens lhe será concedido.

Assim como partilhei o leito da vida com ambos,
assim o leito de chamas aos três unirá na morte.»

op. cit., p. 187-8

dezembro 26, 2007

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 169

«Suponho que, se eu ficar junto dele,
como bastante desejaria ficar,
quando ambos se retirarem
para o Todo infinito,

então ele errará pelo mundo
como miserável filho de viúva,
privado de honra e alegria.»

op. cit., p. 187

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 168

«— Onde está Andhaka? — perguntou Shridaman.
— Está deitado na cabana — respondeu Sita —
colhendo no sono força e beleza para a sua vida.

É tempo de falarmos a respeito dele,
pois o seu futuro devia ser mais importante
para nós do que a questão de como sair com honra
desta confusão.»

op. cit., p. 187

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 167

«— Tens toda a razão, Shridaman, meu irmão — disse Nanda
— podes contar com a minha aprovação às tuas palavras.»

op. cit., p. 185-6

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 166

«— Já que não podes viver com ambos, estou certo
que este jovem, o nosso amigo Nanda,

com quem troquei a cabeça, ou de corpo, como quiserem,

concordará comigo em que nenhum de nós deve viver
e que nada mais nos resta do que desfazermo-nos
das nossas entidades confundidas.»

op. cit., p. 185

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 165

«No entanto, não pode viver com os dois, já que
a poliandria não é permitida entre seres superiores.
Tenho razão no que digo, Sita?

— Ai de mim, infelizmente é assim como dizes,
meu senhor e amigo! — respondeu ela.»

op. cit., p. 184

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 164

«Mas não o creio!

Possuindo a cabeça do esposo no corpo do amigo,
ansiava pela cabeça do amigo no corpo do esposo.»

op. cit., p. 184

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 164

«Portanto, tive que suportar que Sita se aferrasse
à tua cabeça. Se agora conseguisse convencer-me
que ela encontraria duradoura felicidade perto de ti,

meu amigo, seguiria o meu caminho.»

op. cit., p. 184

dezembro 25, 2007

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 162

«— E do corpo do esposo — respondeu Shridaman.
— Perdoo-te. A ti também Nanda. Com estes braços,
agora um tanto emagrecidos, tu balouçaste Sita
em oferenda ao Sol e, com eles, persuadi-me

de que poderia oferecer a Sita
tudo quanto ela anelava;


mas o amor almeja o todo.»

op. cit., p. 183

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 161

«Dirigiram-se para ele, saudando-o com toda a humildade.

— Shridaman, meu senhor e honrado esposo — disse Sita,
inclinando-se profundamente diante dele — saúdo-te!


Não creias que a tua vinda nos seja importuna e terrível,
pois, onde houver dois de nós, a ausência do terceiro
será sempre sentida. Por isso, perdoa-me,
se não pude mais ficar contigo e,

impelida por irresistível compaixão,
parti à procura da solitária cabeça do amigo.»

op. cit., p. 183

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 160

«A crónica relata que, ao primeiro raio da alvorada,
enquanto o pequeno Andhaka ainda dormia,
Sita e Nanda saíram da choupana,

trazendo toalhas em volta do pescoço,
com o intuito de se banharem no rio;


deste modo aperceberam-se do amigo e esposo,
que estava de costas peara eles e não se volvera
quando apareceram.»

op. cit., p. 182

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 159

«O seu ciúme não era da espécie comummente sentida
pelos seres desunidos, e que se traduz em furioso esbravejar.

Atenuava-o a consciência de que era com o seu antigo corpo
que Sita renovava os votos nupciais — um acto
que tanto se podia taxar de fidelidade
como do contrário.»

op. cit., p. 182

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 158

«A história conta a seguir que a felicidade conjugal
deste par de amorosos durou apenas um dia e uma noite.

O Sol não tinha surgido pela segunda vez,
por detrás do chamejante bosque florido,
ao lado da cabana de Nanda, quando
Shridaman ali chegou.

Logo ao voltar para a casa abandonada
compreendera para onde fora a esposa.»

op. cit., p. 181


embalados pela fragância das flores de mangueira...

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 157

«— Isso tem suas vantagens — ponderou Nanda.

Sentaram o menino sobre a relva, a pequena distância
e deram-lhe flores e nozes com que brincar.

Assim estava a criança entretida e o que os entretinha a eles
— embalados pela fragância das flores de mangueira
que a Primavera envia para exaltar o desejo
e pelos trinados musicais dos kokils
nas frondes das árvores doiradas pelo Sol
— estava fora do alcance da sua visão.»

op. cit., p. 178

dezembro 24, 2007

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 156

«— Não deve ter sido grande coisa — observou o amigo.
— Como se chama? — Samadhi — replicou a mãe
— porém chamam-lhe quase sempre Andhaka.
— Porquê? — Não penses que é cego
— respondeu Sita. — Mas tem,
na verdade, a vista muito
curta.»

op. cit., p. 178

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 155

«— É o fruto que tu me deste na sagrada noite nupcial,
quando ainda não eras Nanda — disse Sita.»

op. cit., p. 178


E quem é aquele que trazes contigo?

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 154

«— Vieste afinal! — exclamou. — Oh! Suave Lua! Tu,
a dos olhos de perdiz e de lindas cores, Sita,
a minha esposa de esplêndidas ancas!

Quantas noites sonhei que tinhas vindo até mim,
desterrado e solitário, através do deserto
e, agora, eis-te aqui, de verdade!

Ah, magnífica mulher!
E quem é aquele que trazes contigo?»

op. cit., p. 177-8

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 153

«O jovem deixou cair o machado e correu para ela.
Saudou-a com inúmeras palavras de boas-vindas
e nomes carinhosos, pois ansiara ardentemente
pela sua presença integral, em corpo e alma.»

op. cit., p. 177

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 152

«— Nanda! — gritou, com o coração inflamado de alegria. —

Ele parecia-lhe Krishna, transbordante da seiva
de uma vigorosa ternura.

— Nanda, olha, é Sita que vem para ti!»

op. cit., p. 177


uma cabana coberta de palha, e atrás dela...

dezembro 23, 2007

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 151

... distinguiu, na orla de uma clareira,
uma cabana coberta de palha, e atrás dela,
um jovem vestido de ráfia e cingido de ervas.

Ao aproximar-se mais ainda, viu que os seus braços
eram rijos como aqueles que a haviam oferecido ao Sol.»

op. cit., p. 177


Quando avistou o rio Gomati...

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 150

«Quando avistou o rio Gomati, depôs a criança no solo
e levou-a pela mão, enquanto com a outra
se apoiava ao bordão.

Era uma manhã cintilante de orvalho.
O esplendor da alvorada ofuscava-lhe os olhos
mas, ao abrigá-los com a mão...

op. cit., p. 176

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 149


«Desta maneira alcançou a floresta de Dankala,
supondo que o amigo nela tivesse procurado o seu refúgio.»

op. cit., p. 174

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 148

«A sua intrepidez perante as fadigas e perigos da jornada
evidenciava a grande intensidade do seu desejo.

Ela contava ao povo que andava à procura
do marido que se fizera eremita na floresta.

Nas aldeias e vilas, obteve leite para o menino; e quase
sempre uma pousada de noite, fosse num palheiro,
fosse nos bancos de barro de um forno.»

op. cit., p. 173

calçou as sandálias de peregrina...

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 147

«Numa manhã de Primavera, à luz das estrelas
e antes da aurora, calçou as sandálias de peregrina,
tomou o bordão numa das mãos e com a outra agarrou
a do filho, que vestia uma camisinha de algodão Kalikat.

Com um farnel às costas, confiante no acaso,
saiu sem ser vista e, com o filho, rapidamente
se distanciou da casa e da aldeia.»

op. cit., p. 173

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 146

«Eis porque, ao completar Samadhi quatro anos,
aconteceu que Shridaman se afastou em viagem
de negócios, e Sita resolveu, a todo o custo,
procurar Nanda, o eremita,
para consolá-lo.»

op. cit., p. 173

dezembro 22, 2007

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 145

«O desejo de vê-lo outra vez, de ver como
ele, por seu turno, se transformara,
por obra da lei de adaptação,

e de lhe mostrar o belo rebento,
a fim de que também se alegrasse
com ele — este desejo dominou-lhe a alma,
sem que todavia ousasse comunicá-lo ao esposo.»

op. cit., p. 172

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 144

«Sentiu uma irresistível saudade do distante amigo,
a quem considerava como progenitor do seu filhinho.»

op. cit., p. 172


... que Sita já não o podia suportar.

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 143

«... aqueles em que pouco a pouco
se processavam as modificações na cabeça
e nos membros de Shridaman, transformando
toda a sua pessoa tão decisivamente no marido típico

que Sita já não o podia suportar.»

op. cit., p. 172


os anos em que Samadhi cresceu
em formosura no seio da mãe

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 142

«Porém, os anos em que Samadhi cresceu em formosura
no seio da mãe e na rede que lhe serviu de berço
eram, precisamente, aqueles em que...

op. cit., p. 172

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 141

«Quando a sua hora chegou, Sita deu a Shridaman
o fruto do seu ventre, um menino a quem chamaram
Samadhi, o que significa «Reunião».

Agitaram uma cauda de vaca por cima do recém-nascido,
para afastar o mal, e puseram-lhe esterco de vaca,
com o mesmo fim, como era da praxe.

Mais tarde, descobriram que tinha a vista muito curta
e Samadhi foi apelidado Andhaka (o pequeno cego).»

op. cit., p. 171

dezembro 21, 2007

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 140

«E a nossa narrativa nada mais é do que uma ilustração
dos malogros e desvios que acompanham
o esforço para atingir a meta.»

op. cit., p. 165

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 139

«Na verdade, o próprio contraste entre os dois indica,
com clareza ao mesmo tempo espiritual e bela,
que a meta do Mundo é a união
entre o espírito e a beleza,

isto é,
uma felicidade não mais dividida
porém total e consumada.»

op. cit., p. 165

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 138

«Este mundo não está constituído de tal modo
que o espírito esteja fadado a amar apenas o espiritual,
nem a beleza unicamente votada a procurar o belo.»

op. cit., p. 165


e há outra beleza que fala aos sentidos


Há uma beleza espiritual

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 137

«Há uma beleza espiritual e há outra beleza
que fala aos sentidos. Certas pessoas pretendem
que o belo pertence exclusivamente ao campo dos sentidos,
separando dele por completo o espiritual, de modo
que o nosso mundo apresente uma cisão entre os dois.»

op. cit., p. 164

dezembro 20, 2007



... na própria palavra «aparência»,
ligando-as às ideias de fulgor e beleza.

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 136

«Não é em vão que a cobiça, ardilosa esposa do Deus
do amor — não é em vão que esta Deusa foi chamada
«a favorita de Maya», pois é ela quem torna encantadoras
e desejáveis as aparências, ou melhor, que assim as faz parecer.

Aliás, o elemento da percepção sensorial
está contido na própria palavra «aparência»,
ligando-as às ideias de fulgor e beleza.»

op. cit., p. 159

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 135

naquele doce anseio de uma criatura por outra
que é, precisamente, primária de todo o apego,
de todos os emaranhados laços que prendem
e envolvem o homem, de todas as quimeras
com que a vida se nutre e que a impelem
à própria perpetuação.»

op. cit., p. 158-9


... a magia de Maya

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 134

«Em circunstância alguma, a magia de Maya
— sustentáculo do Mundo, lei fundamental da vida,
feita de ilusão, engano e fantasia, que escraviza
todos os seres — manifesta o seu poder
de modo tão soberano e tormentoso
como no desejo amoroso,

op. cit., p. 158


Pouco nos é concedido, muito nos é recusado

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 133

Pouco nos é concedido, muito nos é recusado,
e devemos contentar-nos com o que podemos obter.

A esperança de que o mais algum dia nos será concedido
é e será sempre um sonho. Um sonho paradisíaco.»

op. cit., p. 154

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 132

Compromissos, renúncias e resignação são a sorte comum.
Os nossos desejos são ilimitados, porém a sua realização
é estreitamente cerceada e moderada, o «se pudesse»
esbarra a cada momento no «não pode ser»»

op. cit., p. 153-4


Era com efeito, uma felicidade
como deve ser encontrada no Paraíso...



dezembro 19, 2007

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 131

«Era com efeito, uma felicidade como deve ser encontrada
no Paraíso, porém raras vezes sobre a Terra, pois as alegrias
terrenas, as satisfações que cabem à grande maioria dos mortais
sujeitos às múltiplas inibições e coacções de ordem moral e social,
são restringidas pela lei, pela piedade, pelas convenções sociais.»

op. cit., p. 153

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 130

«De regresso a Bem-Estar das Vacas,
Sita e Shridaman passaram os seus dias e noites
em pleno gozo dos prazeres dos sentidos e, a princípio
nenhuma sombra obscurecia o límpido céu da felicidade.»

op. cit., p. 153

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 129

«Quando Nanda já ia a pequena distância,
Sita correu para ele e, abraçando-o,
disse:

— Sê feliz! Afinal, foste o meu primeiro esposo,
acordaste-me para a vida e para o amor,
e se o conheço a ti o devo.

Diga o que disser o santo homem a respeito de mulheres
e cabeças, o fruto que trago no meu seio veio de ti!

Dito isto, correu para o robustecido Shridaman.»

op. cit., p. 150

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 128



«Assim se separaram, um dos outros dois.»

op. cit., p. 149

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 127

«Os outros dois não puderam censurar-lhe a resolução.
Concordaram com ele, embora se sentissem um pouco
deprimidos, e testemunharam-lhe a benevolência
que se costuma demonstrar a um homem
que perdera no contrato.»

op. cit., p. 148-9

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 126

«Abruptamente [Nanda] despediu-se dos outros.

— Muitas prosperidades — disse. — Quero
seguir o meu caminho. Procurarei um refúgio
para mim e far-me-ei eremita.»

op. cit., p. 148

dezembro 18, 2007



Deste modo, tinham agora o veredicto.

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 125

«— O que disse por último é que vale
— replicou o subjugador de desejos.

Deste modo, tinham agora o veredicto.»


op. cit., p. 148

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 124

«Foi a vez de Sita e de Shridaman erguerem as cabeças
e olharem jubilosos um para o outro.

Nanda, que ficara tão satisfeito, havia pouco,
observou desolado: — Mas antes disseste o contrário!»


op. cit., p. 148

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 123

«Depois falou:


«Esposo é quem dele a cabeça tem.
Como a mulher é a maior delícia,
a fonte da poesia,
Assim à cabeça entre os membros
cabe a primazia.»

op. cit., p. 147

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 122

«Mas isto é apenas a premissa — continuou o eremita,
elevando a voz. — Segue-se-lhe a conclusão
que a sobrepuja e ultrapassa,

para que a verdade arremate o silogismo.
Esperem um instante, peço.»

op. cit., p. 147

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 121

«Com um grito exultante, Nanda
pôs-se de um pulo sobre os finos pés.»

op. cit., p. 147

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 120

«— O julgamento — replicou o santo homem
— está praticamente pronunciado. ( )


No acto de casamento, estende-se à noiva
a mão direita: a mão, no entanto,
pertence ao corpo;

e o corpo é do amigo.

op. cit., p. 147

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 119

«— Mas nós também sabemos tudo isso por nós próprios,
grande Kamadamana — disse Nanda, com mal refreada
impaciência. — Queres ter a bondade de entrar

no assunto e dizer-nos quem é o esposo de Sita,
a fim de que, finalmente, fiquemos cientes e
possamos agir de acordo com o veredicto?»

op. cit., p. 146

dezembro 17, 2007

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 118

«— mas basta, tudo isso eu sei, de tudo estou informado…»

op. cit., p. 146


... um incitando o outro a mais completos arrebatamentos



o frescor das gémeas redondezas...


... ágil dorso coleante


... oh! pasto de amor!

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 117

«Das insaciáveis mãos, oh! pasto de amor!
Formosas ancas, ágil dorso coleante,
macio ventre docemente respirando,

o calor dos deleitosos braços,
as coxas tão felinas e atrás delas
o frescor das gémeas redondezas,

e tudo isso que, inflamado de luxúria,
delirante, se procura, se enlaça no escuro
tépido e ofegante, um incitando o outro a mais
completos arrebatamentos, até que se transportam
ao paraíso de estáticos deslumbramentos…
toda essa embriaguez e todo esse mel

op. cit., p. 146

... à procura dos ternamente estrelados seios


... a graciosa curva provocante dos ombros.


Sim, sim, já sei: o voluptuoso corpo adorado...


espalha uma fumaraça
que se poderia cortar à faca...

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 116

«— Uf! — fez ele. — Estava, naturalmente, preparado
para um conto cheio dos mais pungentes bafejos da vida.

Mas este que me contaram espalha uma fumaraça
que se poderia cortar à faca. Sim, sim, já sei:
o voluptuoso corpo adorado, profusamente
orvalhado de acerbo desejo; a graciosa
curva provocante dos ombros.

Nariz que fareja, boca ávida à procura
dos ternamente estrelados seios,
os ninhos das axilas humedecidas de suor.

op. cit., p. 145

dezembro 16, 2007

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 115

«— Sim, faz-nos saber isso, ó subjugador dos desejos
— exclamou Nanda em voz alta e confiante.»

op. cit., p. 145


E quem é, na verdade, o seu esposo?

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 114

«Finalmente, Shridaman chegou ao fim
e formulou a pergunta.

— Assim — disse — a cabeça do marido
foi posta sobre o corpo do amigo e
a cabeça deste no corpo daquele.

Condescende, portanto, ó Santo Kamadamana,
na tua sabedoria, em pronunciares-te
sobre a nossa confusa situação.

A quem pertence esta mulher,
formosa em todos os membros?
E quem é, na verdade, o seu esposo?»

op. cit., p. 144

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 113

«Narrou tudo com veracidade, como nós o fizemos,
e, em parte, com as mesmas palavras.

Para tornar claro o ponto litigioso, teria sido suficiente
contar apenas a fase final, mas Shridaman referiu tudo,
desde o princípio, exactamente como se passara.»

op. cit., p. 143

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 112

«Mandou que os hóspedes se sentassem,
o que fizeram com presteza e modéstia.


Cabendo a missão de narrador a Shridaman,
em virtude das qualidades intelectuais
que distinguiam a sua cabeça,

este iniciou o relato dos acontecimentos
que ali os haviam trazido,

expondo a desconcertante questão
que só podia ser solucionada

por uma terceira pessoa,
tal como um santo ou um rei.»

op. cit., p. 142


... porque há no trio uma mulher

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 111

«— Naturalmente, o meu primeiro impulso
foi enxotá-los dos meus domínios.

Os vapores da vida que de vocês se desprendem
oprimem-me o peito e abrasam-me as faces penosamente.


Mas estou disposto a suportá-los sobretudo
porque há no trio uma mulher cujas formas
os sentidos chamarão deslumbrantes:

esbelta e flexível como uma vinha,
de coxas roliças e túrgidos seios, oh sim!
Salve, ó mulher!

Ouvirei então a história, palavra por palavra, apesar
dos asfixiantes vapores da vida que me assaltarão.»

op.cit., p. 139-40

dezembro 15, 2007

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 110

«— Kamadamana, subjugador dos desejos
— respondeu Nanda, com a devida humildade
— perdoa a audácia dos que te procuram em desamparo!

Digna-te, ó touro entre os sábios, a dar-nos o teu parecer
e o teu inestimável conselho! Deparou-se-nos um problema
que nós próprios não podemos solucionar, de modo que
necessitamos da tua decisão e do teu julgamento.»

op. cit., p. 138


Que procurais no meu deserto?

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 109

«— Fora daqui! — berrou. Basbaques e vadios!
Que procurais no meu deserto?»

op. cit., p. 138

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 108

«De longe, aperceberam-lhe a cabeça branca como a cal,
com os cabelos entrançados, e os braços semelhantes
a galhos mortos, erguidos aos céus, a emergirem
de uma pantanosa poça em que se mantinha
de pé, concentrando no espírito
toda a vida das células.»


«Tiveram que esperar uma boa hora,
a respeitosa distância do charco,
antes que ele dali saísse,
inteiramente nu,

escorrendo lama da barba e dos pêlos do corpo.
Ao aproximar-se do grupo que se mantinha à sua espera,
ameaçou-os, brandindo a vassoura.»

op. cit., p. 137-8


Kamadamana, o subjugador dos desejos.


Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 107

«Não foi fácil aos peregrinos, viajando de solidão em solidão,
informar-se do caminho que os levaria até junto de
Kamadamana, o subjugador dos desejos.»

op. cit., p. 135

dezembro 14, 2007



a floresta de Dankala, reverdecida pelas chuvas...

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 106

«Ao terceiro dia, alcançaram a floresta de Dankala,
reverdecida pelas chuvas e densamente povoada
de santos homens, proporcionando a cada um
o almejado isolamento e um austero retiro
inteiramente solitário.»


op. cit., p. 135

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 105

«Estabelecido o acordo neste ponto,
deixaram o templo e voltaram ao carro,
ainda parado no desfiladeiro.»

op. cit., p. 131

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 104

«— Compreendo — disse Shridaman — que estamos
em presença de um problema objectivo que não pode
ser solucionado por nós três, mas, somente,
pela sabedoria alheia.

Concordo, portanto, com a sugestão.»

op. cit., p. 130

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 103

«— Se é assim — disse Nanda, após
um momento de silencio e de perplexidade,
e se Sita não pode decidir ou escolher entre nós,

então a decisão deve vir de um terceiro.


Travei conhecimento com um homem
experimentado na mortificação que vive
na floresta de Dankaka.


Procuremos esse sábio, contemos-lhe
a nossa história e ele que decida
qual de nós é esposo de Sita

e que a sua palavra prevaleça.»

op. cit., p. 129


... e partiram-me o coração



Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 102

«—Não posso — soluçava. — Não me obrigues a decidir. Sou apenas uma fraca mulher e isso está acima das minhas forças. A princípio, tudo parecia muito fácil e por mais que me envergonhasse do meu engano, senti-me feliz, sobretudo quando vi ambos também felizes. Mas as palavras que pronunciaram perturbaram-me a razão e partiram-me o coração, de modo que uma metade se levanta contra a outra, como vocês se levantam um contra o outro.»

op. cit., p. 128

dezembro 13, 2007



... ocultou o rosto nas mãos e chorou.

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" 101

«Perturbada, Sita olhava ora um, ora outro.
Depois, ocultou o rosto nas mãos e chorou.»

op. cit., p. 128

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 100

«— Não — disse Shridaman — não esperava isso de ti.
Porém, não há razão nem propósito em prolongar a discussão.
Aqui está Sita. A ela cabe dizer a quem pertence e ser o árbitro,
tanto da nossa como da sua própria felicidade.»

op. cit., p. 127-8


és egoísta...

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 99

«— És egoísta. Compreendeste-me mal. Não me refiro
a este corpo de esposo que me é recente e sim à minha
própria cabeça que tu mesmo consideras decisiva
e que me caracteriza como Nanda.

Sita, ultimamente, quando a mim se me dirigia
— falando naquela voz doce e maviosa que receava ouvir,
com medo de responder no mesmo tom — olhava-me
o rosto e chamava-me «Nanda», «querido Nanda».

Naquele momento parecia desnecessário mas, agora,
reconheço que era de alta significação espiritual.

Agora, tenho não somente a cabeça e os olhos
que ela tão ternamente sondava,
mas também o corpo do esposo

— e a situação está, portanto,
fundamentalmente alterada
em favor de Sita e no meu.»

op. cit., p. 126

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 98

«— Deveras? — replicou Shridaman, com a voz
levemente trémula. — Não teria ousado afirmá-lo,
quando o teu actual corpo ainda era meu e dormia
ao lado de Sita. Pois não era esse corpo a quem
realmente ela abraçava, como soube para meu
próprio sofrimento, ao ouvi-la murmurar em sonho.
Ao contrário, era aquele a que chamo agora meu.»

op. cit., p. 125

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 97

«— Nem eu tão-pouco estou ressentido contigo, Sita.
Sempre almejei possuir um corpo fino como este.

Uma coisa, no entanto, devo dizer:
a minha pobre cabeça não se pode eximir a pensar
no corpo que lhe coube e salvaguardar-lhe os direitos,

[pelo que] Sita, a das lindas curvas,
é minha esposa e o seu fruto
foi engendrado por mim.»

op. cit., p. 124

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 96

«— Se Nanda — disse Shridaman — não se envergonhar
do corpo que lhe coube, só posso afirmar
que me julgo o mais feliz dos homens.

Sempre desejei possuir um físico como este.»

op. cit., p. 122

dezembro 12, 2007



... ela tivera razão em dirigir-se aos
amigos ressuscitados de acordo
com as cabeças

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 95

«Duas coisas se tornaram imediatamente claras.
Primeiro, que ela tivera razão em dirigir-se aos amigos
ressuscitados de acordo com as cabeças; segundo: era
evidente que nenhum deles estava ressentido com Sita,
pelo contrário ambos encontravam, na verdade,
grande prazer na sua nova aparência.»

op. cit., p. 121-22

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 94

«Rivalizando em magnanimidade,
os dois jovens transformados curvaram-se,
levantaram-na, um com os braços do outro
e os três ficaram enlaçados, chorando e rindo.»


op. cit., p. 121

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 93

«Dizei-me, estão desesperados com a maneira como se operou
a ressurreição de ambos, e amaldiçoar-me-ão eternamente?

Se assim for, levarei a efeito o acto em que fui interrompida
por Aquela que existiu antes dos tempos.

Ou estão inclinados a perdoar-me?»

op. cit., p. 121

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 92

«Pensem que estive prestes a estrangular-me
e que tive um colóquio com a Inacessível
e lhe ouvi a voz de trovão,

o que me privou quase dos sentidos!


Tudo me girava em torno. Mal distingui
qual cabeça e quais membros tinha entre mãos
e pude apenas confiar na sorte.

op. cit., p. 120

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 91

«— Perdoem-se se puderem! — gritou.
— Oh! Têm que perdoar-me!

Lembrem-se do horrível feito que, sob as formas anteriores,
ambos perpetraram e do desespero a que fui levada.

op. cit., p. 120

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 90

«A excitação com que agiste é compreensível,
mas não podias ter aberto os olhos um pouco mais?
Tu colaste em cada um a cabeça do outro.

A cabeça de Nanda ao corpo de Shridaman
e a cabeça de Shridaman ao copro de Nanda.

Enfim, estão de pé, diante de ti,
não o esposo e o amigo,
na ordem respectiva,
mas misturados.

Que situação!

Tudo consequência da excessiva precipitação!»

op. cit., p. 118-19

dezembro 11, 2007



Sita, que fizeste? Que aconteceu?

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 89

«Com as cabeças no seu lugar, sem sinal nem cicatriz,
ergueram-se diante dela os dois jovens.

Olharam-na e depois olharam-se a si próprios.
Sita, que fizeste? Que aconteceu?»

op. cit., p. 117-8

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 88

«Atravessou quase sem respirar a sala da audiência
e a antecâmara, até ao santuário; aí, ante a hedionda
imagem da Deusa, empreendeu, trepidante de febril energia,
a tarefa prescrita. A atracção entre cabeças e troncos dava tempo
para que o sangue pudesse refluir pelos sulcos,

o que se fez com mágica rapidez.»

op. cit., p. 117

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 87

«A linda Sita nada mais disse, nem mesmo «obrigada»;
partiu direita ao templo, correndo tão depressa
quanto lho permitiam as vestes envolventes.»

op. cit., p. 117

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 86

«Toma as duas cabeças pelos cabelos e ajusta-as novamente
aos pobres troncos. Não aproximes as cabeças dos corpos
muito rapidamente. É preciso dar tempo ao sangue
para refluir e ser absorvido. Anda, corre!
Mas faz a coisa com acerto. Vai, anda!

Se esperas até amanhã, será demasiado tarde.»

op. cit., p. 113

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 85

«— Compadeço-me de ti, embora não o mereças,
bem como da pálida e cega semente do teu ventre.

Também me compadeço dos dois jovens que estão lá dentro.
Por isso, aguça os ouvidos e escuta o que te digo!
Larga essa trepadeira e volta ao templo.
Nada de desmaios ou de hesitações!
Ouviste?

op. cit., p. 113

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 84

«— Ah! Santa Deusa e Grande Mãe! — exclamou Sita.
— Se pudesses fazer isso! Se pudesses anular
estes feitos tremendos e devolver-me
o esposo e o amigo

para que tudo fosse como dantes
— como te abençoaria!»

op. cit., p. 112

dezembro 10, 2007

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 83

«Sinto-me pouco inclinada a receber-lhes o sangue
e aceitar a oferenda. Pois bem, se eu agora ressarcir
o duplo sacrifício e reconstituir tudo como era,

posso esperar que te comportes
com mais decência
no futuro?»

op. cit., p. 112

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 82

«Proíbo-te que pronuncies tais palavras,
ainda que talvez alguma verdade haja nelas.

Porquanto estamos em presença de um acto determinado
por motivos confusos, não sendo, em consequência, muito claro.

op. cit., p. 111

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 81

«— Tu não passas de uma tola desmiolada
— disse a Deusa, em voz trovejante.

Preparas-me esta atrapalhação e, ainda não contente,
dizes-me toda a espécie de desaforos, querendo insinuar
que os meus filhos não se imolaram para que o seu sangue
afluísse ao meu altar.

op. cit., p. 110

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 80

«Depois, Nanda foi à procura dele e,
não querendo aceitar-lhe o sacrifício,
separou a própria cabeça dos seus membros.

E inútil ficou a minha vida. Estou, também,
praticamente privada de cabeça, sem esposo nem amigo.»

op. cit., p. 110


... que pudéssemos viver os nossos dias
em pleno gozo da carne.

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 79

«Em tais circunstâncias, Mãe do Mundo,
empreendemos a viagem de visita a meus pais,
e, desviando-nos do caminho certo, chegámos à tua casa.

Shridaman, no teu altar de sacrifícios,
despojou a sua venerável cabeça dos membros,
abandonando-me à miserável condição da viuvez.

Fez este sacrifício a mim e ao amigo,
para que pudéssemos viver os nossos dias
em pleno gozo da carne.

op. cit., p. 109

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 78

«Nem Nanda tão-pouco; não porque não se sentisse tentado,
pois certamente o estava; podia mesmo jurar que terrivelmente!
Mas, na sua invencível lealdade para com o amigo, resistiu à tentação
e eu, também — crê-me. Mas o resultado foi que fiquei sem marido
algum e que passámos os três a viver num penoso estado de renúncia.

op. cit., p. 109

dezembro 09, 2007



Tirei esta conclusão da sua melancolia
e do seu afastamento...

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 77

«Assim descobriu Shridaman que eu rompia os votos
nupciais nos seus meigos braços. Magoei-o cruelmente.
Tirei esta conclusão da sua melancolia e do seu afastamento
— pois, desde então, nunca mais me tocou.

op. cit., p. 108-9

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 76

«Eis porque, quando Shridaman se aproximava de mim,
durante a noite, eu empalidecia com o desgosto
de que fosse ele, e não o outro, e fechava
os olhos para poder imaginar
que Nanda me abraçava.

Cheguei a ponto de não conter o meu ardor
e de murmurar o nome daquele que eu desejava
me tivesse despertado.


op. cit., p. 108

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 75

«Quando o seu braço roçava o meu, a pele arrepiava-se-me
de prazer. Quando pensava nas suas magníficas pernas e o via
andar e movê-las, imaginava como me apertariam no jogo do amor
e os meus seios palpitavam de anseio. Cada vez me parecia mais belo.

Já não compreendia como fora possível que, ao vê-lo na festa do Sol,
tivesse ficado adormecida e insensível.

op. cit., p. 107-8

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 74

«Como era possível afastar Nanda dos meus pensamentos,
se permanecia sempre diante da minha vista?

Costumava contemplar-lhe o peito, os seus quadris estreitos
e as suas nádegas tão pequenas, a par das minhas tão grandes
— e perdia o domínio de mim própria.

op. cit., p. 107


a ideia de que a voluptuosidade lhe conviria...

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 73

«A curiosidade que Nanda me despertava, a ideia
de que a voluptuosidade lhe conviria,
tanto à cabeça como aos membros;

que talvez fosse o homem capaz de elevar o meu prazer
à altura dos meus desejos — cravara-se-me na carne
e na alma como o anzol na boca do peixe,
e não a podia arrancar, pois o anzol
era farpado.

op. cit., p. 107

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 72

«Entretanto, eu via constantemente o nosso amigo Nanda.


Não o via, apenas, olhava-o como o matrimónio me ensinara
a ver e a olhar os homens; e, nos meus devaneios e sonhos,

insinuava-se a pergunta: que faria Nanda,
como procederia ele a divina união
em lugar do meu marido?

op. cit., p. 106

dezembro 06, 2007

Thomas Mann, As cabeças trocadas - 71

«O amor carnal não convinha ao meu esposo,
nem à sua cabeça, nem ao seu corpo o qual,
afinal de contas, concordarás,
é o factor essencial.

O corpo que além jaz, tão lamentavelmente separado da cabeça,
não sabia consumar os ritos do amor de modo que
todo o meu coração a eles se prendesse.
É verdade que me despertava desejos
mas não os sabia aplacar.

op. cit., p. 106

Thomas Mann, As cabeças trocadas - 70

«Ah! Deusa todo-poderosa, não sou tão vil que não quisesse
ao meu senhor e esposo e mais ainda que não o honrasse
e temesse. Mas, apesar de todo o respeito devido,
involuntariamente perguntava a mim própria
se ele era, realmente, o homem indicado
para me fazer mulher e instruir
a minha virginal ignorância

nos doces e terríveis mistérios do amor.

op. cit., p. 105

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 69

«Estava sempre perto; antes do casamento, durante as bodas,
quando demos a volta à fogueira — e também depois.

Naturalmente, não estava de noite, quando eu dormia
com o seu amigo Shridaman, o meu esposo, nem
quando nos unimos pela primeira vez,
sobre o leito juncado de flores.

op. cit., p. 104-5

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 68

«Mais tarde, voltou e pediu-me em casamento para
o seu amigo Shridaman, e os nossos pais consentiram;
talvez a infelicidade começasse naqueles dias em
que Nanda me cortejou em nome do outro
que deveria abraçar-me como esposa
e a quem ainda não conhecia.

Só via Nanda junto de mim.

op. cit., p. 104

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 67

«Certo dia, veio de Bem-estar das Vacas
um jovem de nariz chato e olhos negros.

O seu corpo tinha a pureza das estátuas
e chamava-se Nanda; balouçou-me em louvor do Sol,
na festa da Primavera, mas nenhum ardor me despertou.

op. cit., p. 104

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 66

«A linda Sita, desfeita em pranto, respondeu:
— Ah! Sagrada Mãe, reconheço e confesso
a minha culpa, mas que podia fazer?

Foi um infortúnio, uma desgraça,
o cúmulo da má sorte que me fez casar,
sendo uma jovem esbelta, arredia e ingénua.

op.cit., p. 103

dezembro 05, 2007



Realmente, só uma mulher...

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 65

«— Absurdo! Realmente, só uma mulher podia dizer
semelhante disparate. Ofereceram-se-me,
em espontânea dádiva, um após outro,
por viril piedade, ouviste?

Mas, por que o fizeram?»

op. cit., p. 103


e, com a mesma espada...

Thomas Mann, As cabeças trocadas - 64

«— Justifica-te, explica por que afluiu a mim
o sangue dos meus filhos, ambos,

a seu modo, excelentes rapazes.
Fala, mas diz a verdade!»



«— Mataram-se um ao outro, Deusa altíssima,
e deixaram-me desamparada.

Lutaram por minha causa
e, com a mesma espada,
degolaram-se ambos.»

op. cit., p. 102-3

dezembro 04, 2007



Ouço o trovão da tua voz...

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 63

«— Deusa sagrada — respondeu Sita — vou obedecer-te.
Ouço o trovão da tua voz e apresso-me a interromper
o meu acto desvairado, como tu ordenas.»

op. cit., p. 102

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 62

«Não percebeste talvez que o teu fluxo está suspenso
e que esperas um filho meu? Se não sabes fazer
os mais simples cálculos que toda a mulher
deve conhecer, então, anda enforca-te!


Estou farta desses pensadores para quem a existência
humana é uma doença que se propaga por meio da
voluptuosidade amorosa, de geração em geração ~

— e agora, tu, minha louca,
vens aqui fazer-me uma afronta dessas!
Tira o pescoço do laço ou puxo-te as orelhas!»

op. cit., p. 101-2

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 61

«Não basta teres inundado os sulcos do meu templo
com o sangue dos meus filhos, queres ainda desfigurar
a minha árvore e transformar esse corpo,
linda emanação de mim própria,

em putrefacto manjar para os corvos,
e dar-lhes ao mesmo tempo o cálido
e minúsculo germe de vida
que floresce no teu seio?

Tola!»...

op. cit., p. 101

dezembro 03, 2007



... a voz da própria Mãe dos Mundos

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 60

«Nesse instante, soou nos ares uma voz que, naturalmente,
não podia ser senão a de Durga-Dewi, a inacessível,
Kali, a sombria, a voz da própria Mãe dos Mundos.

Uma voz profunda e rouca, maternal, severa:
— Pára com isso, imediatamente, sonsa!
(Tais foram as suas palavras.)»...

op. cit., p. 101


Em frente do santuário, elevava-se uma figueira...



Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 59

«Com estas palavras, levantou-se, ainda vacilante,
subiu a escada aos tropeções e, animada do firme propósito
de autodestruição, atravessou o templo a correr.

Em frente do santuário, elevava-se uma figueira
da qual pendiam flexíveis cipós. Agarrando um destes,
Sita deu um laço, colocou-o em volta do pescoço
e tratou de estrangular-se.»

op. cit., p.97

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 58

... «Está tudo acabado. Então, devo atravessar a vida viúva,
repelida por todos, como esposa que tanto se descuidou
do marido que ele pereceu? Inocente não o sou,
já não o sou desde há muito tempo

e quanto à depravação, existe um pouco de verdade nisso
— muita verdade, até —embora não exactamente
como o povo pensará.


Devo segui-los — nada mais me resta a fazer no mundo.»

op.cit., p. 95

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 57

... «ou melhor, pensaram em mim, sem dúvida,
pois foi por minha causa — pobre de mim! —
que perpetraram esse feito tão viril
quanto medonho;

a ideia faz-me estremecer. No entanto, pensaram
em mim somente em relação a eles próprios,
e não no que seria feito de mim.

Nisto, pensaram tão pouco como agora,
que jazem imóveis e sem cabeças, deixando
que eu resolva o que devo fazer!»...

op. cit., p.95

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 56

— Oh! Deuses! Oh! Santos e grandes ascetas! Estou perdida!
Os dois homens, ambos ao mesmo tempo! Nada mais me resta!
Como puderam eles lutar com uma única espada?

Shridaman, esquecido de toda a sua sabedoria
e de toda a sua brandura, agarrou a espada
e decepou a cabeça de Nanda que então…

Mas não! Foi Nanda, que, por motivos
que me causam arrepios,
degolou Shridaman
que, então…

oh, não, não! Não quero pensar mais, de nada serve.
Uma coisa, porém, é clara: conduziram-se como selvagens
e nem por um momento sequer se lembraram de mim»...

op. cit., p. 94-5

dezembro 02, 2007



... e todo aquele sangue que lentamente se escoava.



Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 55

«Quando a infortunada Sita voltou a si, nada mudara.


Ficou agachada no chão, cheia de medo,
os dedos metidos nos cabelos,

olhando atónita as duas cabeças truncadas,
os corpos deitados um sobre o outro

e todo aquele sangue
que lentamente
se escoava.»

op. cit., p. 93

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 54

«Sita ergueu os braços ao céu; os olhos quase lhe
saltaram das órbitas e, privada dos sentidos,
caiu prostrada no chão.»

op.cit., p. 93

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 53

«E a linda Sita desceu do carro,
os quadris coleando sob a saia envolvente
e dirigiu-se para o santuário.

Poucos segundos depois, deparou-se-lhe
o mais horrendo espectáculo.»

op. cit., p. 93


grávida como estou...



Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 52

«— É incrível, é quase intolerável — dizia a meia voz.
— Os homens são todos iguais, não se deve por
um acima do outro, pois não se pode contar
com nenhum deles.


Um vai-se e deixa-nos junto do outro,
a ponto de merecer não sei o quê;

e quando se manda o outro em sua procura
fica-se sozinha. Ambos mereciam
que eu tomasse as rédeas e fosse
sozinha para casa dos meus pais

e, assim, quando voltassem,
já não me encontrariam.


Fora disso apenas me resta ir atrás deles
e ver o que fazem. Não é de admirar
que, grávida como estou,
fique alarmada

com esta estranha conduta de ambos.


Vou agora mesmo chamá-los à ordem.»

op.cit., p. 92

dezembro 01, 2007

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 51

«Entretanto, Sita, o sulco, aguardava,
sozinha, sob a coberta do carro.

O tempo parecia-lhe mais longo porque já não tinha
à sua frente nenhum pescoço que contemplar.

Naturalmente, nem sonhava com o que acontecia
àquele pescoço, enquanto ela se deixava,
pouco a pouco, vencer pela muito
vulgar sensação de impaciência.»

op. cit., p. 91


Jai Mata Di - Ya Devi Sarva Bhuteshu - Maa Durga Mantra

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 50

«Assim falando, voltou-se para o corpo de Shridaman,
desprendeu o punho da espada dos dedos que já estavam
rígidos e, com os fortes braços, executou a sentença
que ele próprio acabara de pronunciar.


O corpo, para mencioná-lo em primeiro lugar,
caiu atravessado sobre o de Shridaman
e a ingénua cabeça rolou para perto
da cabeça do amigo, onde parou,
de olhos esbugalhados.

Também o seu sangue jorrou, a princípio, aos borbotões
e com grande violência, para depois deslizar vagarosamente
pelas calhas até à abertura da cova.»

op. cit., p.86-7

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 49

«Curvou-se, esboçando gestos desamparados em direcção às duas partes de Shridaman, sem saber qual das duas abraçar, a qual delas dirigir a palavra.

— Shridaman, querido amigo, que fizeste! Como conseguiste, por tuas próprias mãos e braços, realizar empreendimento tão difícil? Que se passou na tua alma, para te levar a isso! Oh! Desgraça! Oh! Desgraça! Dize, sou culpado? Sou, na verdade, culpado da tua morte, pelo simples facto de existir, senão também pelos meus actos? No entanto, que mais pode um homem fazer do que evitar agir? Fiquei calado o mais possível, para não me arriscar a que a minha voz parecesse meiga. Não disse palavras supérfluas nem a chamei pelo nome, quando lhe falava. Mas de que serve tudo isso, se fui culpado pela minha própria existência carnal? Devia ter ido para o deserto, como anacoreta, observando os preceitos mais rigorosos. Mas, em minha defesa, posso alegar que teria partido se tivesses falado. Porque nunca falaste, querida cabeça, antes de aí jazeres separada do corpo, quando ainda estavas sobre os ombros? Não falaste, agiste magnânima e cruelmente, mostrando-me como devo proceder. Certamente, não julgaste que eu te falharia, que os meus fortes braços hesitariam ante o feito que os teus delgados braços consumaram! Deveria, porventura, sair para contar-lhe o que fizeste e ouvir-lhe no grito de horror o júbilo secreto? Deveria seguir pelo mundo, com o nome enodoado, e deixar que o povo dissesse, como decerto diria: — Ali vai Nanda, o miserável; enganou o amigo e matou-o por cobiçar-lhe a mulher? Não, isso não! Nunca! Seguir-te-ei e que o eterno ventre beba o meu sangue junto com o teu.»

op. cit., p. 84-6

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 48

«Sabendo o que o esperava, devemos acompanhá-lo
através da sala de audiência, que percorreu
sem pressentimento algum, pelo vestíbulo,
onde ainda tudo ignorava, e, finalmente,
até ao seio da Mãe.

Ali, estacou cambaleante,
um abafado grito de horror nos lábios,
o amigo, rosto cor de cera, o turbante desfeito
na cabeça separada do tronco, enquanto o sangue
corria por muitos caminhos sinuosos, para a escura fossa.»

op.cit., p. 83


Devias ir à sua procura e ver o que está a fazer.

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 47

«Nanda voltou-se resolutamente para a jovem mulher do amigo
e indagou: — Fazes alguma ideia dos motivos
que o levam a demorar-se tanto?

— Não posso imaginá-lo, Nanda — respondeu Sita, com a suave,
ritmada e melodiosa voz que ele tanto receara ouvir.
Também acrescentara, sem necessidade alguma,
o seu nome — outra coisa de que tivera medo.

— Vou dizer-te uma coisa, Nanda.
Devias ir à sua procura e ver o que está a fazer.
Não podemos esperar mais. É bastante estranho
que nos deixe aqui sentados, a perder tempo,
enquanto o Sol vai cada vez mais alto.»

— Está certo, vou buscá-lo — replicou Nanda
— Bastará lembrar-lhe a hora. Dizendo isto,
saltou da boleia e subiu ao santuário.»

op. cit., p. 81-2

Thomas Mann, "As cabeças trocadas" - 46



«A linda Sita, sentada no carro, contemplava,
alternadamente, ora as espáduas de Nanda,
ora o próprio regaço, e mantinha-se tão
imóvel como ele próprio.»
op. cit. p. 81