setembro 29, 2013


Aqui responde-se a tudo
numa língua primordial e nobre
tal como uma parte da vida responde
à indestrutível parte contígua

aqui nas frisadas extremidades
dos ramos do jardim apaziguado
não buscamos os horrendos grumes da seiva
que se assemelham às silhuetas afligidas
que abraçam um crucificado na noite da desgraça

e não conhecemos palavra ou sinal
que seja mais alto que qualquer outro
é aqui que vivemos aqui que somos belos

e é aqui que ao calar-nos perturbamos o real
mas se os nossos adeuses a ele são rudes
a vida também participa nisto
como se em si
uma notícia que nos é inaudível

e apartando-se de nós
como o reflexo dum arbusto na água
ficará mesmo ao lado
para em seguida ocupar
o nosso lugar

para que os espaços dos homens não sejam substituídos
senão por espaços de vida
para todo o sempre.


Aïgui, poema Aqui, «um canto à glória do que
daqui é insubstituível e sem garantia divina»,
da tradução francesa de León Robel,
inserto em

Alain Badiou, Breve Tratado de Ontologia Transitória,
(«Court Traité d’Ontologie Transitoire», 1998),
Trad. Alexandre Emílio, Ed. Instituto Piaget,
Colecção Pensamento e Filosofia, nº 54, Lisboa, 1999

Curiosa, mas não estranhamente, imagino, este poema, de um poeta do rio Volga, lembra a ontologia do ser temporal de José Reis, o professor catedrático de Coimbra, autor da Nova Filosofia, e de Sobre o Tempo, ambos editados pela Afrontamento, Porto, 1991 e 2007, respectivamente, como a do múltiplo da ontologia matemática de Alain Badiou.

Livros sérios a ler, reler e reflectir. 

setembro 27, 2013

Honoré de Balzac



«Cada vez que Helena podia avistar o pai,
agitava o lenço para o saudar mais uma vez.

Em breve o Saint-Ferdinand se afundou,
produzindo um borbulhar imediatamente
apagado pelo oceano.

Nada mais ficou então de toda aquela cena
senão uma nuvem baloiçada pela brisa;
a nuvem interpôs-se entre esta frágil
embarcação e o brigue.

A última vez que o general avistou a filha
foi através de uma abertura daquele
fumo ondulante.

Visão profética!

O lenço branco, o vestido destacava-se
sozinho naquele fundo de bistre.

Entre a água verde e o céu azul,
o brigue já nem se via, Helena não
era mais que um ponto imperceptível,
uma linha desligada, graciosa, um anjo
no céu, uma ideia, uma recordação.

Honoré de Balzac, A Mulher de Trinta Anos,
(«La Femme de Trente Ans», 1844), Trad.
Paula Reis, Livraria Civilização Editora,
Porto, 1978, p.500-1



setembro 25, 2013

Honoré de Balzac

«Não se encontram muitos homens cuja profunda nulidade é um profundo segredo para a maior parte das pessoas que os conhecem? Uma posição elevada, um nascimento ilustre, funções importantes, um certo verniz de educação, uma grande reserva no comportamento, ou os sortilégios da fortuna são, para eles, como guardas que impedem as críticas de penetrar na sua existência íntima. [ ] Essas pessoas por mérito fictício interrogam em vez de falar, têm a arte de pôr os outros em evidência para evitarem apresentar-se a si próprios diante deles; depois, com uma feliz sagacidade, eles puxam cada pessoa pelo fio das suas paixões ou por os dos seus interesses, e jogam assim homens que lhes são realmente superiores, fazem deles marionetas: e crêem-nos pequenos terem rebaixado até eles. Obtêm então o triunfo natural de um pensamento mesquinho, mas fixo, sobre a mobilidade dos grandes pensamentos. Assim, para julgar estas cabeças ocas e pesar os seus valores negativos, o observador deve possuir um espírito mais subtil que superior, mais paciência que alcance de vista, mais sagacidade e tacto que elevação e grandeza de ideias. Apesar dssio, por mais habilidade que manifestem estes usurpadores a defender os seus lados fracos, é-lhes muito difícil enganar as suas mulheres, as suas mães, os seus filhos ou o amigo da casa; mas estas pessoas guardam-lhes quase sempre o segredo duma coisa que toca, de certa maneira, a honra comum; e muitas vezes mesmo elas ajudam-nos a impor-se ao mundo. Se, graças a estas conspirações domésticas, muitos tolos passam por homens superiores, eles compensam o número de homens superiores que passam por tolos, de maneira que o Estado Social tem sempre a mesma quantidade de capacidades aparentes.»    


Honoré de Balzac, A Mulher de Trinta Anos,
(«La Femme de Trente Ans», 1844), Trad.
Paula Reis, Livraria Civilização Editora,
Porto, 1978, p.405

setembro 23, 2013

Dom Quixote de la Mancha


«Como as coisas humanas não são eternas,
indo sempre declinando desde os seus princípios
até chegar ao seu último fim, especialmente
a vida dos homens, e como a de D.Quixote
não tinha privilégio do céu, para deter
o curso do seu declínio,

chegou o seu fim e acabamento
quando ele menos esperava; [ ]»


Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p.936

setembro 21, 2013

Dom Quixote de la Mancha

«Aconteceu, pois, que indo D. Quixote [ ], um castelhano [ ] ergueu a voz dizendo:

— Valha-te o diabo por D. Quixote de la Mancha! Como é que chegaste até aqui, sem te terem morto as infinitas pancadas que tens às costas? Tu és louco, e se o fosses sozinho e dentro das portas da tua loucura, seria menor o mal;

mas tens a propriedade de tornar loucos e mentecaptos todos que se relacionam contigo; se não, verifiquem-no por estes senhores que te acompanham.

Volta, mentecapto, para tua casa, e toma conta da tua fazenda, da tua mulher e dos teus filhos, e deixa-te destas loucuras que te consomem os miolos e chupam o melhor da tua inteligência.»

Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 868.

setembro 19, 2013

Dom Quixote de la Mancha


«— Come, Sancho amigo — disse D. Quixote —, sustenta a vida, que mais que a mim te importa, e deixa-me morrer entregue aos meus pensamentos e à força das minhas desgraças.

Eu, Sancho, nasci para viver morrendo, e tu para morrer comendo; e para que vejas que te falo a verdade nisto, considera-me impresso em histórias, famoso nas armas, cortês nas minhas acções, respeitado por nobres senhores, desejado pelas donzelas;

ao fim e ao cabo, quando eu esperava palmas, triunfos e coroas, granjeadas e merecidas pelas minhas valorosas façanhas, vi-me esta manhã pisado e escouceado e moído pelos pés de animais imundos e grosseiros.

Meditar nisto embota-me os dentes, entorpece-me os queixais e paralisa-me as mãos, e tira-me por completo a vontade de comer, de maneira que penso deixar-me morrer de fome, que é a mais cruel de todas as mortes.»


Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha
, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha»
, 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 847.

setembro 17, 2013

Dom Quixote de la Mancha


«E nisto começou a chorar tão amargamente, que D. Quixote, zangado e colérico, disse-lhe:

— Que receias, cobarde criatura? Porque choras, coração de manteiga com açucar? Quem te persegue ou te maltrata, espírito de ratazana caseira, ou que te falta, pobretão no meio das entranhas da abundância?

Porventura caminhas a pé descalço pelas montanhas rifenhas ou vais sentado numa tábua, como um arquiduque, pelo sereno curso deste agradável rio, de onde me breve sairemos para o vasto mar?

Mas já devemos ter saído e percorrido, pelo menos, setecentas ou oitocentas léguas; e se eu tivesse aqui um astrolábio para medir a altura do pólo, eu dir-te-ia quantas percorremos; embora, ou eu sei pouco, já passámos ou passaremos dentro de momentos pela linha equinocial, que separa e corta os opostos polos em igual distância.

— E quando chegarmos a essa lenha que vossa mercê disse — perguntou Sancho —, quanto teremos percorrido?

— Muito — repicou D. Quixote —; porque de trezentos e sessenta graus que tem o globo, da água e da terra, segundo o cômputo de Ptolomeu, que foi o maior cosmógrafo que se conhece, teremos percorrido metade, chegando à linha que te disse.»

Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 664.

setembro 15, 2013

Dom Quixote de la Mancha


«— Portanto, se é forçoso que todo o cavaleiro andante tenha de estar enamorado — disse o caminhante —, bem se pode crer que vossa mercê o está, pois é essa a sua profissão. [ ]

Aqui D. Quixote deu um grande suspiro e disse:

— Eu não poderei afirmar se à doce minha inimiga agrada ou não que o mundo saiba que eu a sirvo; somente sei dizer, respondendo ao que com tanta cortesia se me pede, que o seu nome é Dulcineia; a sua terra é Toboso, uma terra da Mancha; o seu título, pelo menos há-de ser de princesa, pois é rainha e senhora minha; a sua formosura, sobre-humana, pois nela se tornam verdadeiros todos os impossíveis e quiméricos atributos de beleza que os poetas dão às suas damas: os seus cabelos são ouro, a sua fronte campos elíseos, as suas sobrancelhas arco-íris, os seus olhos sóis, as suas faces rosas, mármore o seu peito, os seus lábios corais, pérolas os seus dentes, alabastro o seu pescoço, marfim as suas mãos, a sua brancura neve e as partes que à vista humana encobria o pudor são tais, segundo penso e entendo, que só a sábia consideração pode exaltá-las e não compará-las.»

Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 108.

setembro 13, 2013

Dom Quixote de la Mancha



«Mas nesta nossa época triunfa a moleza sobre a acção, a ociosidade sobre o trabalho, o vício sobre a virtude, a arrogância sobre a valentia e a teoria sobre o exercício das armas, que só viveram e resplandeceram nas idades do ouro e dos cavaleiros andantes.

Se não, digam-me: quem há mais honesto e mais valente que o famoso Amadis de Gaula? Quem mais sensato que Palmeirim de Inglaterra? [ ] Todos estes cavaleiros, e muitos outros que eu poderia mencionar, senhor cura, foram cavaleiros andantes, luz e glória da cavalaria.

Destes, ou tais como estes, quisera eu que fossem os escolhidos por mim; que, se o fossem, Sua Majestade se encontraria bem servido e pouparia muitos gastos, e o Turco ficaria a arrancar as próprias barbas, e, com isto, não quero ficar em minha casa, pois nenhum capelão me vem tirar daqui; e se Júpiter, como disse o barbeiro, não chover, aqui estou eu, aqui estou eu, que choverei quando me apetecer. [ ]

— Pois com esse beneplácito — respondeu o cura —, digo que o que me pesa é eu não poder convencer-me de maneira alguma que toda a caterva de cavaeiros andantes que vossa merçê, senhor D. Quixote, mencionou tenha sido real e verdadeiramente de pessoas de carne e osso no mundo; pelo contrário, imagino que tudo é ficção, fábula e mentira, sonhos contados por homens acordados, ou, para falar mehor, meio adormecidos.

— Esse é outro erro — respondeu D. Quixote — em que cairam muitos, que não acreditam que tenham existido tais cavaleiros no mundo; e eu muitas vezes, com diversas gentes e motivos, procurei trazer para a luz da verdade este quase vulgar engano; mas algumas vezes não consegui ter êxito no meu intento, e outras vezes sim, sustentando-o sobre os ombros da verdade.»

Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha
, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha»
, 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 481-2.


setembro 11, 2013

Dom Quixote de la Mancha


«Era meia-noite em ponto, pouco mais ou menos, quando D. Quixote e Sancho deixaram o monte e entraram no Toboso. Estava a aldeia num sossegado silêncio, porque todos os seus habitantes dormiam e repousavam à perna solta, como costuma dizer-se. Na noite havia uma frouxa claridade, embora Sancho preferisse que fosse completamente escura, para achar na escuridão desculpa para a sua patetice.

Não se ouvia em toda a povoação senão ladridos de cães, que atroavam os ouvidos de D. Quixote e perturbavam o coração de Sancho. De vez em quando um jumento zurrava, grunhiam porcos, miavam gatos, cujas vozes, de sons diferentes, aumentavam com o silêncio da noite, o que o enamorado cavaleiro considerava um mau agoiro; mas, apesar de tudo isto, disse a Sancho:

— Sancho, filho, dirige-te para o palácio de Dulcineia; talvez ainda achemos acordada.
— Para que palácio tenho de seguir, diabo do raio — respondeu Sancho —, que naquele onde a vi a sua grandez não era mais que a de uma casa muito pequena?
— Devia então estar retirada — respondeu D. Quixote — em algum pequeno aposento do se alcácer, a espairecer com as suas donzelas, como é uso e costume das altas senhoras e princesas.

— Senhor — disse Sancho —, já que vossa mercê quer, contra minha vontade, que seja alcácer a casa da minha senhora Dulcineia — esta é porventura a hora de achar a porta aberta? E será conveniente que demos aldrabas para que nos ouçam e venham abrir a porta, pondo em alvoroço e barulho toda a gente? Vamos acaso nater à porta das nossas concubinas, como fazem os amancebados, que chegam, e chamam e entram a qualquer hora, por tarde que seja?

— Achemos primeiro o alcácer — replicou D. Quixote —; que então te direi o que será conveniente que façamos. E repara, Sancho, que eu vejo mal, ou aquele volume enorme e sombra que daqui se descobre deve ser do palácio de Dulcineia.

— Pois vá vossa mercê adiante — respondeu Sancho —; talvez seja isso que diz; ainda que eu o veja com os olhos e o toque com as mãos, hei-de acreditar tanto nisso como acredito que agora é de dia.

D. Quixote foi à frente e, tendo andado uns duzentos passos deu com o vulto que fazia sombra e viu uma grande torre, e depois reconheceu que o tal edifício não era um alcácer mas a igreja principal da povoação. E disse:

— Encontramos a igreja, Sancho.

— Já vejo — respondeu Sancho. — E praza a Deus que não achemos a n/a sepultura, que não é bom indício andar pelos cemitérios a uma hora destas, e mais tendo eu dito a vossa mercê, se não me lembro mal, que a casa desta senhora há-de ficar num beco sem saída.

— Maldito sejas por Deus, mentecapto! — disse D. Quixote. — Onde achaste que os alcáceres e palácios reais estejam edificados em becos sem saida?

— Senhor — respondeu Sancho —, cada terra tem seu uso; talvez se use aqui no Toboso edificar em becos os palácios e os grandes edifícios; e assim suplico a vossa mercê que me deixe buscar por estas ruas ou becos que se me oferecem: poderia ser que nalgum canto topasse com esse alcácer, que o veja eu comido pelos cães, que assim nos obriga a correr e procurar por caminhos e carreiros.

— Fala com respeito, Sancho, das coisas da minha senhora — disse D. Quixote —, gozemos a nossa festa em paz, e não atiremos a corda atrás do caldeiro.

— Eu conter-me-ei — respondeu Sancho —; mas — com que paciência poderei aguentar que vossa mercê queira que com uma única vez que vi a casa da n/a senhora a tenha de saber sempre e achá-la à meia-noite, não a achando vossa mercê, que deve tê-la visto milhares de vezes?

— Tu fazes-me irritar, Sancho — disse. — Vem cá, herege. Não te disse mil vezes que em todos os dias da minha vida nunca vi a sem par Dulcineia, nem ultrapassei jamais os umbrais do seu palácio, e que estou enamorado só por ter ouvido falar dela e pela grande fama que tem de formos e fina?

— Agora ouço-o — respondeu Sancho —; e digo que vossa mercê nunca a viu, nem eu tão-pouco.

— Isso não pode ser — replicou D. Quixote —; que, pelo menos, já me disseste que a viste crivar trigo, quando me trouxeste a resposta da carta que lhe enviei por tua mão.

— Não faça caso disso, senhor — respondeu Sancho —; porque lhe faço saber que também foi por ouvir falar dela a imagem e a resposta que lhe trouxe; porque sei tanto quem é a senhora Dulcineia como dar um soco no céu.

— Sancho, Sancho — respondeu D. Quixote —, há ocasiões que são boas para brincar e ocasiões onde caem e parecem mal as brincadeiras. Não porque eu diga que nunca vi nem falei à senhora da minha alma hás-de tu dizer também que nunca lhe falaste nem a viste, sendo tão o contrário disso, como sabes.»

Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha
, (
«Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha»
, 1605)

Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 524-28.

setembro 09, 2013

Dom Quixote de la Mancha


«— Deus fará pelo melhor — disse Sancho —, que Deus que dá a chaga, dá o remédio; ninguém sabe o que está para vir, daqui até amanhã muitas horas há, e numa e até num só momento, cai a casa; já vi chover e fazer sol, tudo ao mesmo tempo; há quem se deite cheio de saúde à noite e não se possa mover no dia seguinte.

E digam-me — porventura haverá quem se gabe de ter pregado um cravo a parar a roda da fortuna? Não, por certo, e entre o sim e o não da mulher não me atreveria eu a pôr uma ponta de alfinete, porque não caberia. [ ]

— Onde vais parar, Sancho, que te tornas um malvado? — disse D. Quixote. — Que quando começas a enfiar provérbios e patranhas, não te pode esperar senão o próprio Judas, que te leve. Diz-me, animal — que sabes tu de cravos e de rodas da fortuna, ou de qualquer outra coisa?

— Oh! Pois se não me entendem — respondeu Sancho —, não me assombra que as minhas sentenças sejam tidas por disparates. Mas não me importa: eu entendo-me e sei que não disse muitas asneiras naquilo que disse; [ ]»

Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 594.

setembro 07, 2013

Dom Quixote de la Mancha


«— Se todos os que se querem bem tivessem de casar-se — disse D. Quixote —, tirava-se aos pais o poder de escolher e mandar casar os filhos com quem devem e quando; e se à vontade das filhas ficasse escolher os maridos, haveria uma que escolheria o criado do seu pai e outra o que ela viu passar na rua, que lhe pareceu airoso e presumido, embora fosse um espadachim doidivanas; pois o amor e a afeição facilmente cegam os olhos do entendimento, tão necessários para decidir o casamento, e neste muito existe o perigo de errar, e é preciso grande cuidado e especial ajuda do céu para acertar.

Quer alguém fazer uma longa viagem, e se for prudente, antes de pôr-se ao caminho busca alguma companhia segura e aprazível para acompanhá-lo; portanto — porque não fará o mesmo o que há-de caminhar a vida inteira, até à paragem da morte, e mais se a companhia o há-de acompanhar na cama, na mesa e em todas as partes, como é a da mulher com o marido?»

Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 593.

setembro 05, 2013

Dom Quixote de la Mancha



«— Não se podem nem devem chamar armadilhas — disse D. Quixote — aos meios usados para alcançar virtuosos fins.

E que o de casar-se os enamorados era o objectivo de maior grandeza, salientando que o maior inimigo que o amor tem é a fome e contínua necessidade, porque o amor é todo alegria, regozijo e contentamento, e mais quando o amante possui a coisa amada, contra a qual são inimigos que se lhe opõem de modo evidente a necessidade e a pobreza;

e que tudo isto D. Quixote dizia para o senhor Basílio não voltar a empregar as manhas que sabe, que, embora lhe dessem fama, não lhe davam dinheiro, e que se preocupasse em conseguir bens por meios lícitos e sagazes, que nunca faltam aos prudentes e trabalhadores.»

Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 613.

setembro 03, 2013

Dom Quixote de la Mancha


«Não, não, nem Deus o permita ou queira! Os varões prudentes, as repúblicas bem organizadas, só por quatro coisas hão-de pegar em armas e desembainhar as espadas e pôr em perigo as suas pessoas, vidas e fazendas: a primeira, para defender a fé católica; a segunda, para defender a sua vida, que é de lei natural e divina; a terceira, em defesa de sua honra, da sua família e bens; a quarta, em serviço do seu rei, na guerra justa; e se quisermos acrescentar a quinta, que se pode contar por segunda, na defesa da sua pátria.

A estas cinco causas, como capitais, podem juntar-se algumas outras que sejam justas e razoáveis e que obriguem a pegar em armas; mas pegar nestas por ninharias e por causas que são mais para fazer rir e divertir que para ofender, parece que quem nelas pega tem falta de todo o pensamento razoável; tanto mais que o querer vingar-se injustamente, que justa não pode haver alguma que o seja, vai directamente contra a santa lei que professamos, na qual se nos manda que façamos bem aos nossos inimigos e amemos aqueles que nos detestam, mandamento que, embora pareça um pouco difícil de cumprir, não o é a não ser para aqueles que têm menos de Deus que do mundo, e mais de carne que de espírito;

porque Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, que nunca mentiu, nem pôde nem pode mentir, sendo nosso legislador, disse que o seu jugo era suave e a sua carga leve; e assim, não havia de nos mandar fazer nada que fosse impossível cumprir. Portanto, meus senhores, vossas mercês estão obrigados por leis divinas e humanas a fazer as pazes.»

Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 656.


setembro 01, 2013

Dom Quixote de la Mancha


«Oh tu, bem-aventurado mais que quantos vivem sobre a face da terra, pois sem sentir inveja nem ser invejado, dormes com tranquilo espírito, não te sobressaltam encantamentos nem te perseguem os seus fazedores.

Dormes, digo outra vez, e di-lo-ei outras cem, sem que te mantenham em contínua vigília ciúmes de tua dama, nem te causem insónia e preocupações de pagar dívidas que devas, nem do que hás-de fazer para comer no dia seguinte tu e a tua pequena miserável família.

Nem a ambição te inquieta, nem a pompa vã do mundo te atormenta, pois os limites dos teus desejos não vão para além de pensar o teu jumento; o que o de tua pessoa sobre os meus ombros o tens posto, contrapeso e carga que a natureza e o costume puseram aos senhores.

Dorme o criado e o senhor mantém-se acordado, a pensar como há-de sustentá-lo, fazer-lhe bem e pagar-lhe a soldada. A aflição de ver que o céu se torna de bronze sem acudir à terra com o benéfico orvalho não aflige o criado, mas o senhor, que tem de sustentar na infertilidade  e na fome aquele que o serviu na fertilidade e abundância

Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p.599-600.