«— Deus fará pelo melhor — disse Sancho —, que Deus que dá a chaga, dá o remédio; ninguém sabe o que está para vir, daqui até amanhã muitas horas há, e numa e até num só momento, cai a casa; já vi chover e fazer sol, tudo ao mesmo tempo; há quem se deite cheio de saúde à noite e não se possa mover no dia seguinte.
E digam-me — porventura haverá quem se gabe de ter pregado um cravo a parar a roda da fortuna? Não, por certo, e entre o sim e o não da mulher não me atreveria eu a pôr uma ponta de alfinete, porque não caberia. [ ]
— Onde vais parar, Sancho, que te tornas um malvado? — disse D. Quixote. — Que quando começas a enfiar provérbios e patranhas, não te pode esperar senão o próprio Judas, que te leve. Diz-me, animal — que sabes tu de cravos e de rodas da fortuna, ou de qualquer outra coisa?
— Oh! Pois se não me entendem — respondeu Sancho —, não me assombra que as minhas sentenças sejam tidas por disparates. Mas não me importa: eu entendo-me e sei que não disse muitas asneiras naquilo que disse; [ ]»
Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 594.
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