agosto 29, 2009

Tudo o que vivêramos

A casa de família
de Fiama, em Carcavelos





Urbanização

Tudo o que vivêramos
um dia fundiu-se com o que estava
a ser vivido.
Não na memória
mas no puro espaço
dos cinco sentidos.
Havíamos estado no mundo, raso,
um campo vazio de tojo seco.

Depois, alguém
urbanizou o vazio,
e havia casas e habitantes
sobre o tojo. E eu,
que estivera sempre presente,
vi a dupla configuração de um campo,
ou a sós em silêncio
ou narrando esse meu ver.


Fiama Hasse Pais Brandão
As Fábulas, 2002

agosto 24, 2009

esperanças são discursos


Esperanças renovadas - óleo sobre tela 100X80cm

«esperanças são discursos
que cada um faz a si próprio
e imagens que se pintam em nós.»


Platão, Filebo, xxiv

agosto 23, 2009

Princesa Elizabeth de Boémia


Princesa Elizabeth da Boémia (1618-1680)


Sereníssima Princesa,

O mais importante fruto que colhi dos escritos que até agora

publiquei foi o facto de Vos terdes dignado lê-los e, por esse
motivo, me terdes admitido no Vosso conhecimento, o que
me deu ocasião de conhecer os Vossos dotes, que são tais
que considero ser um serviço à humanidade propô-los
como exemplo aos séculos vindouros.

Não faria sentido que eu adulasse ou afirmasse algo não

suficientemente examinado (...); e sei que será mais grato
à Vossa generosa modéstia o juízo não afectado e simples
de um Filósofo do que os louvores adornados de homens
lisonjeiros. (...)

É evidente que este sumo cuidado [o da vontade firme e

constante de nada omitir (do que conduza) ao conhecimento
do que é recto e de fazer tudo aquilo que julgar recto] existe
em Vossa Alteza, pois nem as distracções da corte, nem a
educação habitual que costuma condenar as raparigas
à ignorância puderam impedir que investigásseis todas
as boas artes e ciências. Além disso, a grande e incomparável
perspicácia do Vosso espírito manifesta-se também no facto
de terdes inspeccionado profundamente todos os segredos
destas ciências e de em pouco tempo os terdes conhecido
em pormenor. (...)

E quando observo que esse conhecimento tão diversificado

e perfeito de todas as coisas não existe em algum sábio mestre
já idoso que tenha dedicado muitos anos a meditar, mas sim
numa jovem Princesa, que pela forma e pela idade mais faz
lembrar uma das Graças do que a penetrante Minerva ou
alguma das Musas, não posso deixar de ser tomado pela
mais elevada admiração.

Por fim, verifico que não há nada que se requeira para

a absoluta e sublime sabedoria, tanto da parte da vontade
como da parte do conhecimento, que não brilhe nos
Vossos costumes. Pois aparece neles a benignidade
e a mansidão associadas a uma certa singular
majestade, ferida por contínuas injúrias da sorte,

mas nunca perturbada nem quebrada.

E esta sabedoria que em Vós observo de tal modo

de mim exige veneração, que não só considero
que devo dedicar-lhe e consagrar-lhe esta minha
Filosofia (pois ela própria mais não é do que o estudo
da sabedoria), como prefiro antes ser servidor
devotíssimo de Vossa Sereníssima Alteza
do que ser tido por filósofo.

...............................................................Descartes

agosto 19, 2009

Descartes

«Le plus profond c'est la peau»
Paul Valéry

«Mais pour procéder ici avec plus de franchise,
je ne dissimulerai point que je me persuade
qu’il n’y a rien autre chose par quoi nos sens
soient touchés, que cette seule superficie qui
est le terme des dimensions du corps qui
est senti ou aperçu par les sens.


Car c’est en la superficie seule
que se fait le contact, lequel est
si nécessaire pour le sentiment,
que j’estime que sans lui pas un
de nos sens pourrait être mû.»


(Descartes, Méditations métaphysiques,
"Quatrièmes réponses", AT, IX, 192)

agosto 18, 2009

E, com certeza, concluo rectamente


Imagem in Poéticas em Português

«Além disso, também a natureza me ensina que existem diversos corpos em volta do meu corpo, alguns dos quais devem ser procurados por mim, enquanto devo evitar outros. E, com certeza, concluo rectamente que do facto de sentir diversas espécies de cores, sons, odores, sabores, calor, dureza e coisa da mesma natureza, há nos corpos de que me chegam estas várias percepções dos sentidos diferenças correspondentes, embora talvez não semelhantes a elas. E, porque sucede que algumas daquelas percepções me são agradáveis, outras desagradáveis, é absolutamente certo que o meu corpo, ou melhor eu na totalidade, enquanto sou composto de corpo e espírito, posso ser afectado agradável e desagradávelmente pelos corpos circunjacentes.»

Descartes, Meditações sobre a filosofia primeira,
6ª Meditação [14]

agosto 17, 2009

Um relógio composto de rodas e pesos



«[...] Um relógio composto de rodas e pesos não observa menos cuidadosamente todas as leis da natureza quando é mal fabricado e não indica as horas certas do que quando satisfaz a todos os respeitos a intenção do artífice: analogamente, o mesmo se dá com o corpo do homem, se o considero como uma certa máquina equipada e composta de tal maneira, por ossos, nervos, músculos, veias, sangue e peles, que, mesmo que não existisse nela nenhum espírito, possuiria no entanto todos os movimentos que agora executa e não procedem do império da vontade e, por conseguinte, do espírito.»

Meditações sobre a filosofia primeira, 6ª Meditação [16]

E assim, ( ) senti que tinha uma cabeça, mãos, pés


Picasso, Mademoiselles d'Avignon

«E assim, em primeiro lugar, senti que tinha uma cabeça, mãos,
pés e os restantes membros de que consta aquele corpo
que eu considerava como parte de mim próprio
ou, possivelmente, como eu todo.

E senti que este corpo está entre muitos outros corpos,
pelos quais pode ser afectado de modo favorável ou desfavorável,
e eu media o favorável por um certo sentimento de prazer
e o desfavorável por um sentimento de dor.»


Meditações sobre a filosofia primeira,
6ª Meditação [6]

agosto 16, 2009

... de que pense um monte com vale não se conclui...


Mountain Valley
«Mas, [ ] ainda que na verdade eu não possa pensar um Deus
a não ser existente, nem um monte sem um vale, entretanto
como de que pense um monte com vale não se conclui,
com certeza, que existe no mundo algum monte
também não parece concluir-se que Deus existe,
pelo facto de eu pensar Deus como existente.

Com efeito, o meu pensamento não impõe necessidade
às coisas: assim como me é lícito imaginar um cavalo
alado, mesmo que nenhum cavalo tenha asas,talvez
eu também possa atribuir a existência a Deus,
embora não exista nenhum Deus.»
Descartes, Meditações sobre a filosofia primeira,
5ª Meditação [9]

agosto 15, 2009

concebo também inúmeras particularidades



[...] Além disso, se presto atenção, concebo também
inúmeras particularidades sobre as figuras, o número,
o movimento, e coisas semelhantes, cuja verdade
é tão clara e consentânea com a minha natureza
que, logo que as começo a descobrir, parece-me
que não aprendo qualquer coisa de novo,
mas que, ao contrário, me recordo
do que já anteriormente sabia
[...]

Descartes, 5ª Meditação[4]

agosto 14, 2009

Eu sou uma coisa que pensa



«Eu sou uma coisa que pensa, quer dizer,
que duvida, que afirma, que nega,
que conhece poucas coisas,
que ignora muitas,

que quer,
que não quer,

que também imagina,
e que sente.»

agosto 12, 2009

Sandra Costa



«Amar a ternura de um olhar
como se fossemos um pássaro e um peixe

e entre nós sobrasse o céu e o mar.»

Sandra Costa, Sobre a luz do mar,
Campo das Letras, Porto, 2002

Juliette Greco





Un petit poisson, un petit oiseau
S'aimaient d'amour tendre
Mais comment s'y prendre
Quand on est dans l'eau
Un petit poisson, un petit oiseau
S'aimaient d'amour tendre
Mais comment s'y prendre
Quand on est là-haut

Quand on est là-haut
Perdu aux creux des nuages
On regarde en bas pour voir
Son amour qui nage
Et l'on voudrait bien changer
Ses ailes en nageoires
Les arbres en plongeoir
Le ciel en baignoire

Un petit poisson, un petit oiseau
S'aimaient d'amour tendre
Mais comment s'y prendre
Quand on est là-haut
Un petit poisson, un petit oiseau
S'aimaient d'amour tendre
Mais comment s'y prendre
Quand on est dans l'eau

Quand on est dans l'eau
On veut que vienne l'orage
Qui apporterait du ciel
Bien plus qu'un message
Qui pourrait d'un coup
Changer au cours du voyage
Des plumes en écailles
Des ailes en chandail
Des algues en paille.

agosto 10, 2009

Zona Económica Exclusiva



Interessante, também, naquela entrevista
do Prof António Costa e Silva, o conceito
estratégico de Portugal como

"país-arquipélago"

com as potencialidades
que a sua Zona Económica Exclusiva,
dois milhões de quilómetros quadrados,
lhe proporciona para desenvolver
um cluster do mar.


E não se diga que o País
não tem futuro, porque
desde 1143 que Portugal
está p'ra acabar!

Matriz Energética



Há dias, o Prof. António Costa e Silva,
do IST, deu uma excelente e esperançosa

entrevista na SIC.Notícias no programa
"Negócios da Semana" de José Gomes Ferreira.

A matriz energética do futuro acentuará
a sobreposição da condição "produtor-consumidor";
a micro-geração de energia expandir-se-á; no limite,
idealmente, o próprio consumidor produziria a energia
que consome! :)). Por exemplo, os carros eléctricos
do futuro, porque não haveriam de ter tejadilho
com painel solar e ventoinha de produção
de energia eólica, do próprio vento
da deslocação automóvel,
carregando em contínuo
a bateria de lítio
de que até
há minas

em Portugal!?

:)

agosto 09, 2009

Offenbach



Le temps fuit et sans retour
Emporte nos tendresses,
Loin de cet heureux séjour
Le temps fuit sans retour.

Zéphyrs embrasés,
Versez-nous vos caresses,
Zéphyrs embrasés,
Donnez-nous vos baisers!
vos baisers! vos baisers! Ah!

Belle nuit, ô nuit d'amour,
Souris à nos ivresses,
Nuit plus douce que le jour,
Ô belle nuit d'amour!
Ah! Souris à nos ivresses!
Nuit d'amour, ô nuit d'amour!
Ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah!

Les contes d'Hoffmann
Jacques Offenbach

agosto 07, 2009

Maria del Mar Bonet

Outra bela canção
de Maria del Mar Bonet
indicada por eli:):




Cançión de la bruixa cremada

A Maria del Mar Bonet

Bruixa, que és de matinada, / Bruja, que es de mañana,
ja surten els muriacs / ja salen los murciélagos
que et fan nit a la finestra / que te velan la ventana
i t’enramen el portal. / y te enraman el portal

El portal t’enramen d’arços / El portal te enraman de espinos
i el balcó de tempestats. / y el balcón de tempestades.
Surt, la bruixa, a trenc de dia / Sale, la bruja, al apuntar el día
com una ombra al camí ral. / como una sombra en el camino real

Bruixa, arrenca’t de les trenes, / Bruja, arráncate de las trenzas,
que s’acosta el Sol botxí, / que se acerca el sol verdugo
amb el seu arc de sagetes / con su arco se flechas
mulladetes de verí. / mojaditas de veneno.

De la teva cabellera, / De tu cabellera
en farem coixí daurat / haremos cojín dorado
per als xiquets de la vila / para los mozos del pueblo
que la son els has robat. / a quien les robaste el sueño.

Bruixa, els teus ulls cremen massa: / Bruja, tus ojos queman demasiado:
per això els darem al foc. / por eso los prenderemos.
Cap fadrí darrere cendra / Ningún muchacho tras la ceniza
perdrà els passos ni la sort. / perderá ni pasos ni suerte.

Bruixa, plou sobre la vila. /Bruja, llueve en el pueblo.
Ja sols resta el teu vestit. / Sólo queda tu vestido.
A pleret la nit s’acosta / A sus anchas la noche se acerca
tota negra d’estalzim. / toda negra de tizne.


Maria Mercè Marçal Serra

agosto 04, 2009

Michel Onfray

Michel Onfray, a potência de existir
(«La puissance d'exister», 2006)
trad. José Luís Pérez
Campo da Comunicação, Lisboa, 2009


Li. Excelente manual hedonista que nos alerta contra as múltiplas atitudes nihilistas e alienantes que pululam em algumas doutrinas filosóficas. Nada objecto à posição de Onfray antes reconheço, como ele, a pura imanência de toda a sabedoria. Contudo, para lá da busca da felicidade, é legítimo acurar e acarinhar a grande curiosidade do ser humano em conhecer o real e perscrutar a matéria do mundo que "depois do fim e para lá do fim do homem e do indivíduo" visa enunciar os «grandes discursos» da representação do mundo.

agosto 03, 2009

Cristina Ali Farah



Cristina Ali Farah

No número 01 da revista “Próximo Futuro”
da Fundação Calouste Gulbenkian
encontrei um belo poema
da escritora ítalo-somali
Cristina Ali Farah

Ei-lo em versão trilingue

Espera, deixa-me atravessar o limiar de olhos fechados
a cadeira do rei está vazia, a luva mostra a investidura
o poder está desconexo
Vendas e desvendas, olhar oblíquo, ubíquo
Como é fácil, afinal, enganar à vista
(escondes o braço imputado)
Ser mestre dos confins do vazio

Cavei a terra com as mãos nuas procurando o segredo do que fica
de três mil virgens de terracota,
veias de água, ninhos e túmulos por baixo de camadas de areia e pele
Os meus dedos desenham fragmentos e espelhos,
cancelados na memória

Volto a subir as pulsações do tempo,
minha mãe, a mãe da minha mãe, matrioskas perfuradas
Dêem-me uma vela para que eu possa olhar dentro
E recompor o mapa do amor nos corpos desconsagrados


CRISTINA ALI FARAH
Tradução: Livia Apa

----------- // ------------

Wait, let me cross the threshold, my eyes closed,
the king’s chair is empty, the glove shows the investiture,
the power is disconnected
Veils and unveils, looking oblique, ubiquitous
How easy it is, after all, to deceive the sight
(you hide your imputed arm)
to be master of the confines of the void

I dug the earth with bare hands seeking the secret of what remains
of three thousand terracotta virgins,
veins of water, nests and tombs ’neath strata of sand and skin
My fingers draw fragments and mirrors,
cancelled from my memory

I reclimb the beats of time
My mother, my mother’s mother, perforated matryoshkas
Give me a candle so that I can I can look inside
And recompose the map of love in desecrated bodies


(Translation: John Elliott)

----------- // ------------

Espera, déjame trasponer el umbral con los ojos cerrados
El trono del rey está vacío, el guante muestra la investidura
el poder está desmembrado
Encubres y desvelas, mirada oblicua, ubicua
Es tan fácil, sin embargo, engañar a la vista
(escondes el brazo imputado)
amaestra los confines del vacío

He cavado la tierra con las manos desnudas buscando el secreto de lo que resta
de tres mil vírgenes de terracota,
venas de agua, nidos y tumbas bajo capas de arena y piel
Mis dedos dibujan fragmentos y espejos,
cancelados en la memoria

Vuelvo a subir las pulsaciones del tiempo,
mi madre, la madre de mi madre, matrioskas perforadas
Denme una vela para que pueda mirar dentro
Y recomponer el mapa del amor en los cuerpos desconsagrados


(Traducción: Alberto Piris Guerra)

agosto 02, 2009

fiama hasse pais brandão


Marie-Hélène, óleo sobre tela de Arpad Szenes, 1942

TERRAÇO

Por mais que vos olhe vos esqueço. Não sois
mais do que formas desordenadas. Riscos
díspares como peles de felinos.
Em cadeirões familiares distorcidos.


(fiama hasse pais brandão)

agosto 01, 2009


in Catharsis

haunt me
in my dreams
if you please
your breath is with me now and always
it's like a breeze

so should you ever doubt me
if it's help that you need
never dare to doubt me

and if you want to sleep
i'll be quiet
like an angel
as quiet as your soul could be
if you only knew
you had a friend like me

so should you ever doubt me
if it's help that you need
never dare to doubt me