agosto 23, 2009

Princesa Elizabeth de Boémia


Princesa Elizabeth da Boémia (1618-1680)


Sereníssima Princesa,

O mais importante fruto que colhi dos escritos que até agora

publiquei foi o facto de Vos terdes dignado lê-los e, por esse
motivo, me terdes admitido no Vosso conhecimento, o que
me deu ocasião de conhecer os Vossos dotes, que são tais
que considero ser um serviço à humanidade propô-los
como exemplo aos séculos vindouros.

Não faria sentido que eu adulasse ou afirmasse algo não

suficientemente examinado (...); e sei que será mais grato
à Vossa generosa modéstia o juízo não afectado e simples
de um Filósofo do que os louvores adornados de homens
lisonjeiros. (...)

É evidente que este sumo cuidado [o da vontade firme e

constante de nada omitir (do que conduza) ao conhecimento
do que é recto e de fazer tudo aquilo que julgar recto] existe
em Vossa Alteza, pois nem as distracções da corte, nem a
educação habitual que costuma condenar as raparigas
à ignorância puderam impedir que investigásseis todas
as boas artes e ciências. Além disso, a grande e incomparável
perspicácia do Vosso espírito manifesta-se também no facto
de terdes inspeccionado profundamente todos os segredos
destas ciências e de em pouco tempo os terdes conhecido
em pormenor. (...)

E quando observo que esse conhecimento tão diversificado

e perfeito de todas as coisas não existe em algum sábio mestre
já idoso que tenha dedicado muitos anos a meditar, mas sim
numa jovem Princesa, que pela forma e pela idade mais faz
lembrar uma das Graças do que a penetrante Minerva ou
alguma das Musas, não posso deixar de ser tomado pela
mais elevada admiração.

Por fim, verifico que não há nada que se requeira para

a absoluta e sublime sabedoria, tanto da parte da vontade
como da parte do conhecimento, que não brilhe nos
Vossos costumes. Pois aparece neles a benignidade
e a mansidão associadas a uma certa singular
majestade, ferida por contínuas injúrias da sorte,

mas nunca perturbada nem quebrada.

E esta sabedoria que em Vós observo de tal modo

de mim exige veneração, que não só considero
que devo dedicar-lhe e consagrar-lhe esta minha
Filosofia (pois ela própria mais não é do que o estudo
da sabedoria), como prefiro antes ser servidor
devotíssimo de Vossa Sereníssima Alteza
do que ser tido por filósofo.

...............................................................Descartes

3 comentários:

Ana Paula Sena disse...

Olá, Vasco :))

Que bem ele escrevia!

Na verdade, a princesa Elizabeth era uma princesa extraordinária, interessada pela busca do conhecimento. Que maior brilho pode ter a juventude, a não ser esse precoce amor pelo saber, que pode dar outra consistência até aos encantos físicos?

Como é bela a forma pela qual ele se lhe dirige: "Sereníssima princesa..." :)

Encantador.

Muito obrigada por esta leitura excelente.

vbm disse...

São flagrantes de intimidade transacta, sepultada, quase esquecida nos baús fundos da História... A mim, comovem-me porque foram situações vividas e que nos são relatadas com toda a sinceridade com que foram sentidas. Tens razão sobre aquela escrita do filósofo: uma delicadeza extrema. A princesa, jovem, era muito bela e sabe-se que foi pelas dificuldades que ela levantou sobre as ideias dualistas de Descartes que este escreveu o seu último Tratado d' As Paixóes da Alma; onde, por muito que Damásio o censure, Descartes reconhece a fragilidade do seu sistema, recomenda à princesa que 'não pense muito nisso' - da alma, do corpo, etc. - :))) -, e propõe a 'glândula pineal' para a solução do 'mistério' da junção da "coisa que pensa com a coisa que existe"... :) No fundo, aquilo que o Damásio se esfalfa a procurar, mas, «Será que a minha mente está dentro da minha cabeça?» (Sofia Miguens)

:)

Ana Paula Sena disse...

É como dizes :)