dezembro 31, 2014

DESTE  OUTONO

Novembro, som absoluto,
com as suas sílabas suaves,
as vogais pairando na aragem,
e na luz lenta dourada outros
sons soltos consoantes.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.715

dezembro 29, 2014

DOS  NOMES

Nomeamos os nomes e nunca
as criaturas ou as coisas.
Essas recebem apenas o eco.
Todavia tornam-se únicas e são
vistas no seu próprio tempo.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.715

dezembro 27, 2014

DA  VOZ  DAS  COISAS

Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.717

dezembro 25, 2014

QUINTA-FEIRA,  ÁS  TRÊS  HORAS  DA  TARDE

Oiço o amola facas e tesouras
com a sua flauta no concerto dos países,
a sua pedra de afiar, na arqueologia do mundo,
o seu lugar na esquina da minha rua,
o seu tempo nesta hora e no milénio.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.724

dezembro 23, 2014

DO  RAIO  DE  SOL

Raio de Sol na ombreira da porta,
na trave da cadeira, vindo da gelosia,
peço-te para amanhã voltares
mais arqueado pela esfericidade da Terra,
um raio não tão decididamente recto
cravado no meu tórax côncavo,
mas no meu coração curvo como um globo.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.724

dezembro 22, 2014

DO  AMOR  III

Se alguém descrevesse
o meu rosto, pálpebra
a pálpebra, aleta a aleta
do nariz, a curva
de lábio a lábio,
a fronte agora, a face depois
eu poderia desdenhar
da solitária alheada
imagem num espelho


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.713-14.

dezembro 21, 2014

Madeleine Peyroux - Smile (Rounder Records 2006)


DOS  PINHAIS

Ondulando, os pinhais
quiseram ser o mar.
Murmurando, quiseram ser
o vento. Mas somente
no meu ouvido eram vento,
nos meus olhos, mar.

E hoje, ali na encosta,
pinhais bordejam
o mar, sustêm o vento.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.730

dezembro 19, 2014

DA  ÁRVORE  NUMA  RUA  DE  LISBOA

Esta árvore só, insana,
chamou a si todos os pássaros
da rua. E aceita, assim,
mil olhos que, no crepúsculo
da tarde, se fecham,
mil olhos, abertos
no crepúsculo da manhã.

                                       Av. da República, 1996

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.725-26

dezembro 17, 2014













DAS LÁGRIMAS

A pequeníssima aranha assusta
a criança que eu estava a olhar,
e chora. «Meu duplo filho,
não temas a intensa labuta
da caçadora de insectos.
Ela estende uma rede, tão frágil
que a podes romper com o menor dedo.
A menos que, antes do gesto, encontres
a beleza do tecido luminoso,
quando a aranha ofende o Sol
roubando-lhe alguns raios,
ou a beleza da água que ela retém,
como diamantes sem preço,
rosácea de lágrimas.»

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.726

dezembro 15, 2014


DO AMOR I

A névoa disse à árvore:
tu, cedro, perdes a tua forma,
se eu te abraço. Disse
o cedro: o Sol ama-me mais,
toma o meu corpo inteiro
no seu corpo e dá-lhe
ser, figura.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.727

dezembro 13, 2014

DA PEDRA

A pedra crê: esta
esta criança é de pedra.
Não crê que veio do ventre
e que um cordão de sangue
a liga à Natureza.

Diz a criança um dia:
aqui estamos no mundo,
a pedra é como eu.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.731

dezembro 11, 2014

VERO VERSO

Percorri os meus poemas e vi
não ter o verso consubstancial
para falar de ti

A palavra real para tornar
o verso vero e equidistante
de ser e nomear


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.432

dezembro 08, 2014

DO AMOR IV


Esta vista do mar, solitariamente,
dói-me. Apenas dois mares,
dois sóis, duas luas
me dariam  riso e bálsamo.
A arte da Natureza pede
o amor em dois olhares.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.711

dezembro 06, 2014

DE UMA RUA CITADINA

Folhas secas de plátano
cobrem esta rua. Só assim
me é possível aceitar o caminho
entre as paredes e as casas.

Pisando o pavimento de folhas,
estou salva dos calafrios do medo,
entre janelas que soluçam e se calam
e portas que aprisionam os corpos.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.716

dezembro 04, 2014

Editorial do 'Jornal de Angola' sobre o Acordo Ortográfico

Notável. E que lição para muitos de cá….

Património em risco

"Osministros da CPLP estiveram reunidos em Lisboa, na nova sede da organização, e em cima da mesa esteve de novo a questão do Acordo Ortográfico que Angola e Moçambique ainda não ratificaram. Peritos dos Estados membros vão continuar a discussão do tema na próxima reunião de Luanda.

A Língua Portuguesa é património de todos os povos que a falam e neste ponto estamos todos de acordo. É pertença de angolanos, portugueses, macaenses, goeses ou brasileiros. E nenhum país tem mais direitos ou prerrogativas só porque possui mais falantes ou uma indústria editorial mais pujante.

Uma velha tipografia manual em Goa pode ser tão preciosa para a Língua
Portuguesa como a mais importante empresa editorial do Brasil, de Portugal ou de Angola. O importante é que todos respeitem as diferenças e que ninguém ouse impor regras só porque o difícil comércio das palavras assim o exige.

Há coisas na vida que não podem ser submetidas aos negócios, por mais
respeitáveis que sejam, ou às "leis do mercado". Os afectos não são
transaccionáveis. E a língua que veicula esses afectos, muito menos.

Provavelmente foi por ter esta consciência que Fernando Pessoa
confessou que a sua pátria era a Língua Portuguesa.

Pedro Paixão Franco, José de Fontes Pereira, Silvério Ferreira e outros
intelectuais angolenses da última metade do Século XIX também juraram amor eterno à Língua Portuguesa e trataram-na em conformidade com esse sentimento nos seus textos. Os intelectuais que se seguiram, sobretudo os que lançaram o grito "Vamos Descobrir Angola", deram-lhe uma roupagem belíssima, um ritmo singular, uma dimensão única.

Eles promoveram a cultura angolana como ninguém. E o veículo utilizado foi o português. Queremos continuar esse percurso e desejamos que os outros falantes da Língua Portuguesa respeitem as nossas especificidades. Escrevemos à nossa maneira, falamos com o nosso sotaque, desintegramos as regras à medida das nossas vivências, introduzimos no discurso as palavras que bebemos no leite das nossas Línguas Nacionais. Sabemos que somos falantes de uma língua que tem o Latim como matriz. Mas mesmo na origem existiu a via erudita e a via popular. Do "português tabeliónico" aos nossos dias, milhões de seres humanos moldaram a língua em África, na Ásia, nas Américas.

Intelectuais de todas as épocas cuidaram dela com o mesmo desvelo que se tratam as preciosidades.

Queremos a Língua Portuguesa que brota da gramática e da sua matriz latina. Os jornalistas da Imprensa conhecem melhor do que ninguém esta realidade: quem fala, não pensa na gramática nem quer saber de regras ou de matrizes. Quem fala quer ser compreendido. Por isso, quando fazemos uma entrevista, por razões éticas mas também técnicas, somos obrigados a fazer a conversão, o câmbio, da linguagem coloquial para a linguagem jornalística escrita. É certo que muitos se esquecem deste aspecto, mas fazem mal. Numa entrevista até é preciso levar aos destinatários particularidades da linguagem gestual do entrevistado.

Ninguém mais do que os jornalistas gostava que a Língua Portuguesa não
tivesse acentos ou consoantes mudas.

O nosso trabalho ficava muito facilitado se pudéssemos construir a mensagem informativa com base no português falado ou pronunciado. Mas se alguma vez isso acontecer, estamos a destruir essa preciosidade que herdámos inteira e sem mácula. Nestas coisas não pode haver facilidades e muito menos negócios. E também não podemos demagogicamente descer ao nível dos que não dominam correctamente o português.

Neste aspecto, como em tudo na vida, os que sabem mais têm o dever sagrado de passar a sua sabedoria para os que sabem menos.

Nunca descer ao seu nível. Porque é batota!

Na verdade nunca estarão a esse nível e vão sempre aproveitar-se social e economicamente por saberem mais. O Prémio Nobel da Literatura, Dário Fo, tem um texto fabuloso sobre este tema e que representou com a sua trupe em fábricas, escolas, ruas e praças. O que ele defende é muito simples: o patrão é patrão porque sabe mais palavras do que o operário!

Os falantes da Língua Portuguesa que sabem menos, têm de ser ajudados a saber mais. E quando souberem o suficiente vão escrever correctamente em português. Falar é outra coisa. O português falado em Angola tem características específicas e varia de província para província. Tem uma beleza única e uma riqueza inestimável para os angolanos mas também para todos os falantes.

Tal como o português que é falado no Alentejo, em Salvador da Baía ou em Inhambane tem características únicas. Todos devemos preservar essas diferenças e dá-las a conhecer no espaço da CPLP. A escrita é "contaminada" pela linguagem coloquial, mas as regras gramaticais, não. Se o étimo latino impõe uma grafia, não é aceitável que, através de um qualquer acordo, ela seja simplesmente ignorada. Nada o justifica. Se queremos que o português seja uma língua de trabalho na ONU, devemos, antes do mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das palavras."

Quando escrevo, os meus mails são redigidos em profundo desacordo e intencional desrespeito pelo novo Acordo Ortográfico!