junho 30, 2013

Sá de Miranda


Deixai-me as minhas tristezas,
que já'gora outra alegria
maior poerigo seria.

Aos males acostumados
o mesmo costume é cura.
Bens tão vãmente esperados,
quem os sofre? E quem atura
senão desapaixonados?
Criei-me com meus cuidados;
já agora não saberia
andar noutra companhia.


Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p.60

junho 29, 2013

Bergson


«No fundo de todas as teorias encontramos [ ] as [ ] ilusões que muitas vezes denunciámos. [Uma] consiste em representarmos o movimento como a diminuição gradual de um intervalo entre a posição do móbil, que é uma imobilidade, e o seu termo supostamente atingido, que é imobilidade também, enquanto as posições não são mais que visões que o espírito tem do movimento indivisível: daqui a impossibilidade de restabelecermos a mobilidade verdadeira, quer dizer, as aspirações e as pressões que constituem, indirecta ou directamente, a obrigação.»

Henri Bergson, As duas fontes da moral e da religião,
(«Les deux sources de la morale et de la religion», 1939),
Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Almedina, 2005 p.226.

junho 28, 2013

Sá de Miranda




No sé por qué me fatigo,
pues con razón me vencí,
no siendo nadie comigo,
y vos y yo contra mí.

Yo por haveros querido,
y vos a mí desamado,
con vuestra fuerza y mi grado
havemos a mí vencido.

Y pues fuí mi enemigo
en me dar como me dí,
quién osará ser amigo
del enemigo de sí?


Cantiga de Dom Jorge Manrique,
que foi glosada por Sá de Miranda,
in "poesia e teatro", intr. e notas por
Silvério Augusto Benedito, Ulisseia,
Lisboa, 1989, p.53

junho 27, 2013

Bergson



«O instinto guerreiro bem pode existir por si mesmo: nem por isso se agarra menos a motivos racionais. A última guerra [a Grande Guerra de 1914-18], tal como as que entrevemos no futuro se por desgraça tivermos de continuar a ter guerras, ligou-se ao carácter industrial da nossa civilização.

Se quisermos proceder a uma figuração esquemática, simplificada e estilizada, dos conflitos de hoje, deveremos começar por representar as nações como populações puramente agrícolas.

Vivem dos produtos das suas terras. Suponhamos que têm à justa o suficiente para se alimentar. Crescerão na medida em que obtenham da terra um melhor rendimento. Até aqui tudo vai bem.

Mas se houver um excesso de população, e se esta não quiser distribuir-se pelo exterior, ou se não puder fazê-lo porque o estrangeiro lhe fecha as portas, onde poderá encontrar o alimento necessário?

A indústria arranjará as coisas. A população excedentária tornar-se-á operária. Se o país não possuir força motriz para fazer funcionar as máquinas, ferro para as construir, matérias-primas para o processo de fabrico, tentará ir buscá-los ao estrangeiro. Pagará a sua dívida, e receberá suplementarmente os géneros alimentares de que não dispunha, exportando para o estrangeiro produtos manufacturados.

Os operários descobrir-se-ão assim “emigrados do interior”. O estrangeiro emprega-os como teria feito no seu território; prefere deixá-los — ou talvez tenham sido eles a preferir ficar — onde estão; mas é do estrangeiro que dependem. Se o estrangeiro deixar de aceitar os seus produtos, ou deixar de lhes fornecer os meios que permitem fabricá-los, ei-los condenados a morrer de fome.

A menos que se decidam, arrastando o país atrás de si, a partir à conquista do que lhes é recusado. Será a guerra.

É óbvio que as coisas nunca se passam tão simplesmente. Embora não se esteja em rigor sob a ameaça de morrer de fome, considerar-se-á que a vida é sem interesse à falta de conforto, de diversão, de luxo; julgar-se-á a indústria nacional insuficiente se esta se limitar a viver, se não produzir riqueza; um país acha-se incompleto se não dispõe de bons portos, de colónias, etc. (p.240)

De tudo isto pode resultar a guerra. Mas o esquema que acabamos de traçar assinala suficientemente as causas essenciais: aumento da população, perda de vias de escoamento, privação de combustível e de matérias-primas.

Eliminar estas causas ou atenuar o seu efeito, tal é a tarefa por excelência de um organismo internacional que visa a abolição da guerra. A mais grave de entre elas é o excesso populacional.

Num país com uma natalidade demasiado fraca [ ] o Estado deve fomentar sem dúvida o crescimento da população [ ]. Mas não se poderia então, inversamente, nos países com uma população superabundante, impor taxas mais ou menos pesadas por cada filho a mais?

Reconhecemos a dificuldade de fixar administrativamente um limite à população [ ]. Se aqui esboçamos uma solução, é simplesmente para vincar que o problema não nos parece insolúvel [ ].

Mas o que é certo é que [ ] em breve [ ] o mundo estará sobrepovoado, e que se não se “racionalizar” a produção do próprio homem como se começa a fazer com o trabalho, teremos a guerra.

Em nenhum outro caso é mais perigoso confiarmo-nos ao instinto. A mitologia antiga compreendera-o muito bem quando associava a deusa do amor ao deus dos combates. Deixai agir Vénus, e ela tra-vos-á Marte.

Não evitaremos a regulamentação [da natalidade]. Que se passrá, quando se manifestarem problemas quase de igual gravidade, o da repartição das matérias-primas, o da circulação mais livre ou menos livre dos produtos e, mais geralmente, o de reconhecer exigências antagónicas apresentadas por um lado e pelo outro como vitais?

É um erro perigoso acreditar que um organismo internacional obterá a paz definitiva sem intervir, com autoridade, na legislação dos diversos países e até mesmo talvez na sua administração. Mantenha-se o princípio da soberania do Estado, se assim se quiser: este terá necessariamente de ser inflectido na sua aplicação aos casos particulares.» (p.241-2)

Henri Bergson, As duas fontes da moral e da religião,
(«Les deux sources de la morale et de la religion», 1939),
Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Almedina, 2005 p.240-42.

junho 25, 2013

Bergson


«É verdade que, quando se fala da pequenez do homem e da grandeza do universo, é na complicação deste que se pensa tanto como na sua dimensão. Uma pessoa produz o efeito de ser simples; o mundo material é de uma complexidade que desafia qualquer imaginação: a mais pequena parcela visível é já em si mesma um mundo. [ ]

Quando nos encontramos perante partes cuja enumeração prossegue sem fim, é possível que o todo seja simples [ ]. Leve o leitor a mão de um ponto para outro: é para si, que o percebe de dentro, um gesto indivisível. Mas eu, que o percebo de fora, e que fixo a minha atenção na linha percorrida, digo-me que o gesto teve de começar por transpor a primeira metado do intervalo, depois a metade da outra metade, depois a metade do que resta, e assim sucessivamente: poderia continuar durante biliões de séculos, nunca chegaria ao fim da enumeração dos actos nos quais se decompõe aos meus olhos o movimento que o leitor sente indivisível.

É verdade que os actos infinitamente numerosos em que decompomos um gesto de mão são puramente virtuais, determinados necessariamente na sua virtualidade pela a actualidade do gesto, enquanto as partes constitutivas do universo, e as partes dessas partes, são realidades: [ ].

Por isso, não pretendemos que a relação do complexo com o simples seja a mesma nos dois casos. Só quisemos mostrar por meio desta aproximação que a complicação, ainda que sem limites, não é sinal de importância, e que uma existência simples pode exigir condições cujo encadeamento é sem fim.»


Henri Bergson, As duas fontes da moral e da religião,
(«Les deux sources de la morale et de la religion», 1939),
Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Almedina, 2005 p.217-8.


junho 13, 2013

Bergson


«De um modo geral, consideramos que um objecto que existe é um objecto que é percebido ou que poderia sê-lo. É, portanto, dado numa experiência real ou possível. Somos livres de construir a ideia de um objecto ou de um ser, como o geómetra faz com uma figura geométrica; mas só a experiência estabelecerá se ele existe efectivamente fora da ideia assim construída.

Dir-me-ão que é aí que está toda a questão, e que se trata precisamente de saber se um certo Ser não se distinguiria de todos os outros por ser inacessível à nossa experiência e, contudo, tão real como os demais. Posso admiti-lo por um instante, embora uma afirmação desse género, e os raciocínios que se lhe acrescentam, me pareçam implicar uma ilusão fundamental. Mas faltará estabelecer que o Ser assim definido, assim demonstrado, é de facto Deus.

Alegar-se-á que o é por definição, e que somos livres de dar às palavras que definimos o sentido que entendermos? Admiti-lo-ei uma vez mais, mas se se atribuir à palavra um sentido radicalmente diferente daquele que comummente tem, será a um objecto novo que ela se aplicará; os racicínios que se fizerem deixarão de referir-se ao antigo objecto; teremos de entender, portanto, que é de outra coisa que se está a falar.

Tal é precisamente o caso, em geral, quando a filosofia fala de Deus. Trata-se tão pouco do Deus em que pensa a maior parte dos homens que, se por milagre, e contra a opinião dos filósofos, o Deus assi definido descesse ao campo da experiência, ninguém o reconheceria. Estática ou dinâmica, a verdade é que a religião o tem sobretudo por um Ser que pode entar em relação connosco: ora é disso que é incapaz o Deus de Aristóteles, adpotado com algumas modificações pela maior parte dos seus sucessores.

Sem entrarmos aqui num exame aprofundado da concepção aristotélica da divindade, digamos simplesmente que ela parece suscitar uma dupla questão: 1º porque pôs Aristóteles como primeiro princípio um Motor Imóvel, Pensamento que se pensa a si mesmo, fechado em si mesmo, e que não age senão por meio da atracção da sua perfeição? 2º porque foi que, tendo posto este princípio, Aristóteles lhe chamou Deus?

Mas a resposta é fácil nos dois casos: a teoria platónica das Ideias dominou todo o pensamento antigo, enquanto esperava o momento de penetrar a filosofia moderna; ora, a relação do primeiro princípio de Aristóteles é a mesma que Platão estbeleceu entre a Ideia e a coisa.

Para quem não vê nas ideias mais que produtos da inteligência social e individual, nada há de surpreendente em que ideias com um número determinado, imutáveis, correspondam às coisas indefinidamente variáveis e mutantes da nossa experiência: arranjamos, com efeito, maneira de descobrir semelhanças entre as coisas apesar da sua diversidade, e para assumir sobre elas pontos de vista estáveis apesar da sua instabilidade; obtemos assim ideias sobre as quais temos domínio ao passo que as coisas nos escorregam por entre as mãos. Tudo isto é de fabrico humano.

Mas aquele que começa a filosofar, quando a sociedade levou já bastante longe o seu trabalho, e descobre os respectivos resultados armazenados na linguagem pode sentir-se ferido de admiração por este sistema de ideias, pelo qual as coisas parecem regular-se.

Não seriam as ideias, na sua imutabilidade, modelos que as coisas mutantes e moventes se limitam a imitar? Não seriam a realidade verdadeira, e mudança e movimento não traduziriam a incessante e inútil tentativa de coisas quase inexistentes, correndo de certo modo atrás de si mesmas, em vista de coincidirem com a imutabilidade da Ideia?

Compreende-se, assim, que tendo posto acima do mundo sensível uma hierarquia de Ideias dominadas por essa Ideia das Ideias que é a Ideia do Bem, Platão tenha julgado que as Ideias em geral, e por maioria de razão o Bem, agiam mediante a atracão da sua perfeição. Tal é precisamente, segundo Aristóteles, o modo de acção do Pensamento do Pensamento, que não deixa de ter relação com a Ideia das Ideias.

É verdade que Platão identificava esta última com Deus: o Demiurgo do Timeu, que organiza o mundo, é distinto da Ideia do Bem. Mas o Timeu é um diálogo mítico; o Demiugo não tem, portanto, senão uma semi-existência; e Aristóteles, que renuncia aos mitos, faz coincidir com a divindade um Pensamento que mal chega a ser, dir-se-ia, um Ser pensante, e ao qual nós chamaríamos Ideia de preferência a Pensamento.

Sob este aspecto, o Deus de Aristóteles nada tem de comum com os que os gregos adoravam; também não se assemelha mais ao Deus da Bíblia, do Evangelho. Estática ou dinâmica a reiligião apresenta à filosofia um Deus que suscita problemas completamente diferentes.

No entanto, foi ao primeiro que a metafísica em geral atendeu, ainda que dispondo-se a adorná-lo com este ou aquele atributo incompatível com a sua essência.

Porque não foi procurá-lo na origem? Tê-lo-ia visto formar-se através da compressão de todas as ideias numa só. Porque não considerou estas ideias, por seu turno?

Teria visto que servem antes de mais para preparar a acção do indivíduo e da sociedade sobre as coisas, que é para isso que a sociedade as fornece ao indivíduo, e que erigir em divindade a sua quintessência consiste muito simplesmente na divinização do social.

Porque não analisou, enfim, as condições sociais de uma tal acção indivídual, e a natureza do trabalho que o indivíduo leva acabo com o auxílio da sociedade?

Teria constatado que se, para simplificar o trabalho e também para facilitar a cooperação, começamos por reduzir as coisas a um pequeno número de categorias ou de ideias traduzíveis em palavras, cada uma dessas ideias representa uma propiedade ou um estado estável colhido ao longo de um devir: o real é movente, ou antes movimento, e nós não percebemos senão continuidades de mudança; mas para agir sobre o real, e em particular para levar a bom termo o trabalho de fabrico que é o objecto próprio da inteligência humana, devemos fixar estádios por meio do pensamento, do mesmo modo que esperamos por alguns instantes de abrandamento ou de paragem relativa para disparar sobre um alvo móvel.

Mas estes repousos, que não são mais que acidentes do movimento e que se reduzem de resto a puras aparências, estas qualidades que não são mais que instantâneos tomados sobre a mudança, tornam-se aos nossos olhos o real e o essencial, justamente porque são de molde a interessar a nossa acção sobre as coisas.

O repouso torna-se assim para nós anterior e superior ao movimento, que não passaria de uma agitação visando alcançá-lo. A imutabildade estaria assim acima da mutabilidade, que não seria senão uma deficiência, uma privação, uma busca da forma definitiva.

Bem mais ainda, é por esta distância entre o ponto onde a coisa é e aquele onde deveria, onde quereria ser, que se irá definir e até mesmo medir o movimento e a mudança. A duração torna-se assim uma degradação do ser, o tempo uma privação da eternidade.

É toda esta metafísica que a concepção aristotélica da divindade implica. Consiste em divinizar tanto o trabalho social que prepara a linguagem como o trabalho indivídual de fabrico que exige padrões ou modelos: o eidos (Ideia ou Forma) é o que corresponde a este duplo trabalho; depara-se, portanto, que a Ideia das Ideias ou Pensamento do Pensamento é a própria divindade.

Quando reconstituimos assim a origem e a significação do Deus de Aristóteles, perguntamo-nos como podem os modernos tratar da existência eda natureza de Deus embaraçando-se com problemas insolúveis que só se põem quando encaramos Deus do ponto de vista aristotélico e se consentirmos dar esse nome a um ser que aos homens nunca ocorreu invocar.»

Henri Bergson, As duas fontes da moral e da religião,
(«Les deux sources de la morale et de la religion», 1939),
Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Almedina, 2005 p.203-6.

junho 11, 2013

Bergson


«Voltemos a insistir, pois, nalguns traços salientes da vida, e vinquemos o carácter nitidamente empírico da concepção de um “impulso vital”.

O fenómeno vital será resolúvel, perguntávamos nós, em factos físicos e químicos? Quando o fisiologista o afirma, entende por isso, consciente ou inconscientemente, que o papel da fisiologia é investigar o que há de físico e químico no vital, que não se pode fixar antecipadamente um termo a esta investigação, e que por isso se deverá proceder como se a investigação não devesse vir a ter termo: só assim se continuará em frente. Com o que estabelece, pois, uma regra de método; não enuncia um facto. [ ] (p.102)

Agora, uma vez estabelecida a vida, como nos representaremos a evolução?
[ ] Invocando [ ] uma composição do acaso com o acaso, [ ] aplica-se a priori o princípio de economia recomendado pela ciência positiva, mas não se comprova seja como for um facto, e o resultado é deparar de imediato com dificuldades insuperáveis. [A] esta insuficiência do darwinismo [ ] opúnhamos um facto; constatávamos que a evolução da vida se realiza em direcções determinadas.

— Agora, serão as condições em que evolui a imprimir á vida aquelas direcções? Seria então necessário admitir que as modificações sofridas pelo indivíduo se transmitem aos seus descendentes [ ]. Mas a hereditariedade do adquirido é contestável e [ ] excepcional. [ ]

— Vamos mais longe. Quando se fala do progresso de um organismo ou de um orgão ao adaptar-se a condições mais complexas pretende-se, as mais das vezes, que a complexidade das condições impõe a sua forma à vida, como o molde ao gesso: só nessa condição, pensa-se, a explicação será mecânica e, por conseguinte, científica. (p.102-3)

Mas, [ ], raciocina-se, nos casos particulares, como se a adaptação fosse uma coisa completamente diferente — o que ela é com efeito —, a solução original encontrada pela vida do problema que as condições exteriores lhe põem. E é esta faculdade de resolver problemas que se deixa por explicar.
Fazendo então intervir um “impulso” [ o “impulso vital”], não fornecíamos também explicação; mas assinalávamos [ ] este carácter misterioso da vida.

Se a maravilhosa coordenação das partes com o todo não pode explicar-se mecanicamente, também não exige, em nosso entender, que a tratemos como finalidade.

O que, visto de fora, é decomponível como uma infinidade de partes coordenadas umas com as outras, talvez surgisse do interior como um acto simples: assim, um movimento da nossa mão, que sentimos indivisível, será exteriormente percebido como uma curva definível por uma equação, quer dizer como uma sobreposição de pontos em número infinito, que satisfazem todos uma mesma lei.

Evocando a imagem de um impulso, queríamos sugerir [ ] qualquer coisa mais: onde a nossa análise, permanecendo no exterior, descobre elementos positivos em número cada vez maior e os encontra, por isso, cada vez mais surpreendentemente coordenados entre si, uma intuição que se transportasse ao interior apreenderia, já não meis combinados, mas obstáculos contornados.

Uma mão invisível, atravessando bruscamente limalha de ferro, não faria mais que afastar uma resistência, mas a própria simplicidade deste acto, vista do lado da resistência, surgiria como a sobreposição, efectuada segundo uma determinada ordem, dos pedaços de limalha. [ ]

Se a vida não é resolúvel em factos físicos e químicos, age à maneira de uma causa especial, acrescentada áquilo a que chamamos comummente matéria: esta matéria é instrumento, e é também obstáculo. Divide aquilo que precisa. [ ] (p.103-4)

Se virmos duas ou três grandes linhas de evolução que se continuam livremente ao lado de outras vias que acabam num beco, e se ao longo dessas linhas se desenvolver cada vez mais um carácter essencial, poderemos conjecturar que a irrupção vital começava por apresentar tais caracteres no estado de implicação recíproca: instinto e inteligência, [ ] constitutivos de uma realidade simples na qual [ ] não seriam senão pontos de vista.

Mas ainda só implicitamente mencionámos o essencial: a imprevisibilidade das formas que a vida cria por inteiro, através de saltos descontínuos, ao longa da sua evolução.

Tanto para a doutrina do puro mecanicismo como para a da finalidade pura, as criaçõs da vida são predeterminadas, podendo o futuro ser deduzido do presente mediante um cálculo ou desenhando-se nele sob a forma de ideia, e sendo por conseguinte o tempo sem eficácia.

A experiência pura nada de semelhante sugere. [ ] Um impulso [élan] pode precisamente sugerir [ ] e fazer pensar também, pela indivisibilidade daquilo que é interiormente sentido e pela divisibilidade até ao infinito daquilo que é exteriormente percebido, nessa duração real, eficaz, que é o atributo da vida.

— Tais eram as ideias que encerrávamos na imagem do “impulso vital”. [ ] Se forem levadas em conta, teremos uma ideia carregada de matéria, empiricamente obtida, capaz de orientara a investigação, que resumirá a traço grosso o que sabemos do processo vital e assinalará também o que dele ignoramos. (p.104-5)

Henri Bergson, As duas fontes da moral e da religião,
(«Les deux sources de la morale et de la religion», 1939),
Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Almedina, 2005 p.102-5.

junho 09, 2013

Bergson


«Digamos apenas [ ] que as antigas desigualdades de classe, primitivamente impostas sem dúvida pela força, admitidas depois como desigualdades de valor e de serviços prestados, se vêem cada vez mais submetidas à crítica da classe inferior: os dirigentes valem de resto cada vez menos, porque, demasiado seguros de si, afrouxam a tensão interior à qual tinham ido buscar uma maior força de inteligência e de vontade e que havia consolidado a sua dominação.

Conservar-se-iam, contudo, se continuassem unidos; mas, devido precisamente à tendência que os leva a afirmarem a sua individualidade, aparecerão, mais tarde ou mais cedo, entre eles ambiciosos que pretenderão ser os senhores e que buscarão apoio na classe inferior, sobretudo se esta já tiver conseguido certa participação nos asuntos: acabou-se, então, a superioridade nativa daquele que pertence à classe superior; quebrou-se o encanto.

É assim que as aristocracias tendem a perder-se na democracia, simpelsmente porque a desigualdade política é coisa instável, como o será de resto a igualdade políticas uma vez realizada, se não passar de um facto, se admitir por conseguinte excepções, se por exemplo tolerar a escravatura no interior da cidade.»

Henri Bergson, As duas fontes da moral e da religião,
(«Les deux sources de la morale et de la religion», 1939),
Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Almedina, 2005 p.73.

junho 07, 2013

Bergson



«A moral compreende assim duas partes distintas, das quais uma tem a sua razão de ser na estrutura original da sociedade humana, e a outra no princípio explicativo dessa estrutura.

Na primeira, a obrigação representa a pressão que os elementos da sociedade exercem uns sobre os outros a fim de manter a forma do todo, pressão cujo efeito é prefigurado em cada um de nós por um sistema de hábitos que por assim dizer a precedem: este mecanismo, cujas peças são, cada uma delas, um hábito mas cujo conjunto é comparável a um instinto, foi preparado pela natureza.

Na segunda, há ainda obrigação, se assim se quiser, mas a obrigação é a força de uma aspiração ou de um impulso, do próprio impulso que desembocou na espécie humana, na vida social, num sistema de hábitos mais ou menos assimilável ao instinto: o princípio de propulsão intervém directamente e já não por intermédio dos mecanismos que montara, nos quais provisoriamente se detivera.»

Henri Bergson, As duas fontes da moral e da religião,
(«Les deux sources de la morale et de la religion», 1939),
Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Almedina, 2005 p.59

junho 04, 2013



A propósito de as populações
dos estados capitalistas ocidentais

andarem aflitas...


E os capitalistas-aforradores,
não andarão também?

Convém não perder de vista a condicionalidade
de todo o sistema capitalista

Aqui deixo um texto tacteante dessa realidade:

O clamor geral da aflição das populações faz-me divagar para uma "narrativa" de hecatombe a nível de rendimentos de capitais.

Não sei a pertinência deste eventual 'contra-texto', pouco reexaminado, que avanço sem me comprometer a não o apagar!

Ei-lo:

Bem, não vejo que um banco central tenha mais força do que o Governo (USA) ou Governos (UE), dado que políticos são os governantes, que o são de países com exércitos, e não os bancos centrais. O banco central compra, conserva e, ou, vende títulos em função da política monetária adequada à regulação económica.

Sei que “as pessoas” “bradam” imenso contra o lucro dos bancos centrais nacionais, que contraem empréstimos no Banco de Frankfurt (BCE) a 1%
e põem o dinheiro logo a render a 3 e 4 e a 5% ao comprarem obrigações do Estado que vendem – um pouco abaixo do nominal – mal precisem de dinheiro, engrossando assim a sua conta de lucros sem perdas!

Mas isto não tem nada de especial, nem é censurável no modo como as pessoas o imaginam e julgam, e pode circunstancialmente ser o meio de evitar que os bancos caiam na insolvência e no descalabro da bancarrota ao restituirem os depósitos do público.

O que pode censurar-se, sim, é a porventura escandalosa ou excessiva distribuição de lucros dos bancos comerciais aos seus accionistas e gestores,

isto é a indivíduos, a particulares, agravando a tolerável desigualdade social na distribuição de rendimento, e não propriamente

o facto de as instituições terem lucros e ganharem dinheiro, o que parece muito fácil, — pagar juros a 1% e cobrar a 4% —,

mas esquece o conjunto da actividade bancária: imparidades, incobráveis, falências, moratórias nos empréstimos à actividade económica e a responsabilidade de satisfazer os levantamentos de depósitos.

Embora os bancos “joguem” com algum dinheiro próprio — o dos accionistas — movimentam, sobretudo, capitais alheios, das famílias, dos cidadãos, das empresas, capitais que circulam nas inúmeras transacções intersectoriais e no pagamento de salários, além das poupanças globais de fundos de pensões, e fundos soberanos, em busca de um rendimento mínimo, ou apenas de algum rendimento, seja ele qual for e, se negativo, o menos negativo possível.

As “pessoas” não percebem estas questões dos lucros e dos juros, dos salários e dos impostos… E, contudo, as explicações têm mais de duzentos anos! :)

Examine-se o tema da chamada taxa média de lucro dos capitais.

O juro, não é simplesmente o que o mutuante cobra do mutuário pelo tempo de duração do mútuo. Isso é a descrição jurídica do contrato, que se cumpre ou incumpre, o que não depende do contrato em si. Não há juro nenhum se o devedor nada pagar. As coisas, portanto, passam-se segundo uma causalidade extra-jurídica.

Quem trabalha no sector produtivo de bens e serviços, — cuja utilidade garante o interesse da população em os possuir e consumir —, consegue uma fonte de receita que lhe dá não só para pagar os custos em que incorre para obter a produção como ainda lhe sobra dinheiro para o que bem entender: esbanjar, poupar, sustentar parentes e amigos, doar,  etc., tudo, claro, depois de pagar impostos que o Estado cobra.

Esta margem líquida de lucro, este excedente do valor da produção sobre os consumos produtivos (salários, materiais, equipamentos) requeridos à sua formação anual, é apropriada pelos diferentes agentes económicos e redistribuída socialmente.

Nesta redistribuição intervêm o juro e a taxa média de lucro.

O “filme” é assim: O empresário X ou o sector de actividade Y qualificável de altamente lucrativo seja porque explora alguma invenção, seja porque satisfaz a necessidade de algum bem ou recurso, de súbito, altamente procurado ou qualquer outra situação de vantagem comparativa;

Quem opera num sector de negócio assim próspero, depressa recebe propostas para trespassá-lo. O que facilmente conseguirá por um preço vantajoso que, ainda assim, proporcionará ao novo empresário beneficiar de um rendimento esperado acima da rendibilidade média do investimento noutras opções de actividade e bem acima da taxa de juro média do mercado de capitais.

E aqui se processa uma primeira redistribuição de capitais e cuja taxa de rendimento — a chamada eficiência marginal do capital —, tenderá a nivelar-se pela taxa média de juro de empréstimo de capitais, através da variação da cotação do capital-acções das sucessivas transacções do mesmo em bolsa.

A maior “anormalidade” bolsista, não apenas a queda geral de cotações, mas a perspectiva de depressão prolongada, leva os investidores ao ponto de aceitarem taxas de juro negativas para colocarem os seus capitais ao abrigo de maiores perdas ainda na bolsa, para supostos países com economias mais confiáveis de segurança. Bem entendido, uma remuneração negativa de capitais é ainda um rendimento positivo se comparado com uma perda receada de capital ainda mais gravosa!

Portanto, nem o próprio juro, seja de emissão de obrigações públicas ou de empresas privadas, tem mais certeza do que qualquer outro negócio, porque sempre o futuro é incerto e só o efectivo crescimento económico viabiliza e garante a normal remuneração de poupanças investidas.

Para concluir que,

embora em termos individuais, a nível de particulares, alguns possam ganhar muito dinheiro, — e a justiça redistributiva deve zelar para só tolerar as desigualdades de rendimento que correspondam a vantagens líquidas para o bem-estar colectivo —,

a pressão é a de baixa tendencial da taxa média de lucro,
estrito resultado da lei dos rendimentos decrescentes,

com o equilíbrio de longo prazo a consolidar-se
quando os investimentos se compatibilizam  
com níveis adequados de consumo 

em conformidade com

o grau de tecnologia, ciência e civilização alcançado,
o controlo demográfico apropriado e adequada
redistribuição do rendimento.  

junho 03, 2013

Há uma história de amor,
também contada na Bíblia
e no cinema, que desde menino,
sempre achei empolgante:

Sansão e Dalila,
de Cecil B. de Mille,
com Victor Mature
e a formosíssima
Heddy Lamarr!



Há dias, encontrei uma referência
a este filme em Frederico Lourenço
que tanto admirei na juventude:

«Eu estava bastante habituado a ouvir música clássica.

E conhecia bem a história de Sansão e Dalila, pois uma experiência
cinematográfica inesquecível da minha infância inglesa foi ver,
na televisão, o famoso filme com Hedy Lamarr e Victor Mature.

Além de que o próprio facto de ter tido uma infância inglesa
dava-me uma solidez de conhecimentos respeitantes
ao Antigo Testamento que a catequese portuguesa
dos meus colegas não lhes proporcionara.»

Frederico Lourenço, Amar não acaba,
Lisboa, Cotovia, 2004, p.41


junho 01, 2013


«Para obedecer às leis do pensamento tenho de me mostrar perto das coisas ou antes no íntimo delas, porque pensar é conceber o que é, e escrever verdade, ou por outra escrever de acordo com o pensamento, é revelar o que é, e não enfiar frases. Por isso o segrêdo de escrever consiste em colocar-se ardentemente diante das coisas, até que elas vos falem e determinem os têrmos que as devem exprimir. [ ]

A verdade do estilo afasta o molde. Chamo molde a uma verdade antiga, a uma fórmula que passou para o uso comum, a um lote de expressões outrora novas e que já o não são por terem perdido o contacto com a realidade donde nasceram, por flutuarem no ar, vãos ouropéis que tomam o lugar do autêntico oiro, o lugar da transcrição directa e imediata da ideia.

Como observa Paul Valéry, o automatismo gasta as línguas. Para viver [ ] temos de utilizar sempre a sintaxe «em plena consciência», aplicando-nos a articular com vigilância todos os elementos, evitando certos efeitos que espontâneamente se ingerem esperando a vez de se fazerem valer.»

A.-D. Sertillanges, A Vida Intelectual —
Espírito, Condições, Métodos (1920), Trad. e Pref.
A. Pinto de Carvalho, Arménio Amado-Editor,
Coimbra, 1941. p.181.