junho 27, 2013

Bergson



«O instinto guerreiro bem pode existir por si mesmo: nem por isso se agarra menos a motivos racionais. A última guerra [a Grande Guerra de 1914-18], tal como as que entrevemos no futuro se por desgraça tivermos de continuar a ter guerras, ligou-se ao carácter industrial da nossa civilização.

Se quisermos proceder a uma figuração esquemática, simplificada e estilizada, dos conflitos de hoje, deveremos começar por representar as nações como populações puramente agrícolas.

Vivem dos produtos das suas terras. Suponhamos que têm à justa o suficiente para se alimentar. Crescerão na medida em que obtenham da terra um melhor rendimento. Até aqui tudo vai bem.

Mas se houver um excesso de população, e se esta não quiser distribuir-se pelo exterior, ou se não puder fazê-lo porque o estrangeiro lhe fecha as portas, onde poderá encontrar o alimento necessário?

A indústria arranjará as coisas. A população excedentária tornar-se-á operária. Se o país não possuir força motriz para fazer funcionar as máquinas, ferro para as construir, matérias-primas para o processo de fabrico, tentará ir buscá-los ao estrangeiro. Pagará a sua dívida, e receberá suplementarmente os géneros alimentares de que não dispunha, exportando para o estrangeiro produtos manufacturados.

Os operários descobrir-se-ão assim “emigrados do interior”. O estrangeiro emprega-os como teria feito no seu território; prefere deixá-los — ou talvez tenham sido eles a preferir ficar — onde estão; mas é do estrangeiro que dependem. Se o estrangeiro deixar de aceitar os seus produtos, ou deixar de lhes fornecer os meios que permitem fabricá-los, ei-los condenados a morrer de fome.

A menos que se decidam, arrastando o país atrás de si, a partir à conquista do que lhes é recusado. Será a guerra.

É óbvio que as coisas nunca se passam tão simplesmente. Embora não se esteja em rigor sob a ameaça de morrer de fome, considerar-se-á que a vida é sem interesse à falta de conforto, de diversão, de luxo; julgar-se-á a indústria nacional insuficiente se esta se limitar a viver, se não produzir riqueza; um país acha-se incompleto se não dispõe de bons portos, de colónias, etc. (p.240)

De tudo isto pode resultar a guerra. Mas o esquema que acabamos de traçar assinala suficientemente as causas essenciais: aumento da população, perda de vias de escoamento, privação de combustível e de matérias-primas.

Eliminar estas causas ou atenuar o seu efeito, tal é a tarefa por excelência de um organismo internacional que visa a abolição da guerra. A mais grave de entre elas é o excesso populacional.

Num país com uma natalidade demasiado fraca [ ] o Estado deve fomentar sem dúvida o crescimento da população [ ]. Mas não se poderia então, inversamente, nos países com uma população superabundante, impor taxas mais ou menos pesadas por cada filho a mais?

Reconhecemos a dificuldade de fixar administrativamente um limite à população [ ]. Se aqui esboçamos uma solução, é simplesmente para vincar que o problema não nos parece insolúvel [ ].

Mas o que é certo é que [ ] em breve [ ] o mundo estará sobrepovoado, e que se não se “racionalizar” a produção do próprio homem como se começa a fazer com o trabalho, teremos a guerra.

Em nenhum outro caso é mais perigoso confiarmo-nos ao instinto. A mitologia antiga compreendera-o muito bem quando associava a deusa do amor ao deus dos combates. Deixai agir Vénus, e ela tra-vos-á Marte.

Não evitaremos a regulamentação [da natalidade]. Que se passrá, quando se manifestarem problemas quase de igual gravidade, o da repartição das matérias-primas, o da circulação mais livre ou menos livre dos produtos e, mais geralmente, o de reconhecer exigências antagónicas apresentadas por um lado e pelo outro como vitais?

É um erro perigoso acreditar que um organismo internacional obterá a paz definitiva sem intervir, com autoridade, na legislação dos diversos países e até mesmo talvez na sua administração. Mantenha-se o princípio da soberania do Estado, se assim se quiser: este terá necessariamente de ser inflectido na sua aplicação aos casos particulares.» (p.241-2)

Henri Bergson, As duas fontes da moral e da religião,
(«Les deux sources de la morale et de la religion», 1939),
Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Almedina, 2005 p.240-42.

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