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junho 12, 2010




«Um idiota preguiçoso continua sempre a ser um idiota! E um preguiçoso inteligente é alguém que reflectiu acerca do mundo em que vive. Não se trata, pois, de preguiça. É tempo de reflexão. E quanto mais preguiçoso fores, mais tempo tens para reflectir. E é por isso que no Oriente, isso se designa por filosofia oriental... A maior parte das pessoas tem tempo. Quanto mais se desce para sul, mais encontramos profetas, magos, pessoas que reflectiram sobre o mundo.»





Michel Mitrani, Conversas com Albert Cossery,
(«Conversation avec Albert Cossery», 1995),
Antígona, Lisboa, 2002

junho 11, 2010

(continuação)

«Esta novidade ainda não o saciara. Até a leitura do jornal, que costumava ser o alimento essencial da sua boa disposição, — graças a um universo fértil em demências de toda a espécie — vinha agora em segundo lugar, depois de ele ficar ali espraiando a vista até ao horizonte.

Daquele sexto andar, como um explorador no cimo de uma montanha, Karim dominava a cidade e os seus múltipos antros — onde agitava, com os olhos postos na prosperidade, a multidão dos imbecis e dos filhos da puta.

Esta vista geral de uma sociedade entregue à mais sangrenta ladroeira transmitia-lhe um prazer sem limites. Cada vez mais, considerava a sua nova residência um observatório onde as suas faculdades humorísticas podiam medrar com toda a liberdade.»

(fim da transcrição)

Albert Cossery, A violência e o escárnio,
(«La violence et la dérision», 1964),
trad. Júlio Henriques, Antígona,
Lisboa, 1999, pp. 17-18

Até a leitura do jornal... vinha agora em segundo lugar

... espraiando a vista até ao horizonte.

Esta vista geral de uma sociedade...

junho 10, 2010

«Ao ouvir a porta fechar-se atrás da rapariga, Karim sentiu-se aliviado de um grande peso. Ia por fim poder respirar à vontade. Saltou da cama e, apertando o cordão das calças do pijama, saiu para o terraço.

Morava desde há uns oito dias neste quarto, onde desfrutava uma soberba vista para o mar; fora uma agradável mudança, pois o seu precedente alojamento, sombrio e sem ar, era um autêntico pardieiro dos bairros indígenas.

E desde que ali morava, acordava todas as manhãs com um sentimento de descuidosa alegria. A primeira coisa que fazia era ir para o terraço, para gozar o espectáculo que aquela situação privilegiada lhe oferecia.»

(continua)

Albert Cossery, A violência e o escárnio,
(«La violence et la dérision», 1964),
trad. Júlio Henriques, Antígona,
Lisboa, 1999,

A primeira coisa que fazia era ir para o terraço...

junho 09, 2010

«— Sei apenas duas coisas muito simples, disse Heikal. [ ]
— Diz-me então a primeira dessas coisas. Sou todo ouvidos.
— A primeira é que o mundo emque vivemos é regido pela mais ignóbil quadrilha de tratantes que alguma vez pisou o chão deste planeta.
— Subscrevo por inteiro essa afirmação. E a segunda?
— A segunda é esta: acima de tudo, convém não os levarmos a sério; é isso que eles querem, que os levemos a sério.»

(do capítulo V, na contracapa)




Albert Cossery, A violência e o escárnio,
(«La violence et la dérision», 1964),
trad. Júlio Henriques, Antígona,
Lisboa, 1999,

junho 08, 2010


«Era Inverno, o terrível Inverno do Egipto miserável. O dia começara no horror de um frio glacial. De início, o vento importunara a cidade moderna e as suas construções em betão armado, semelhantes a fortalezas invencíveis. Depois, irrompeu como um selvagem nos bairros populares. Aí, nenhum obstáculo sério se opunha à grandeza do seu ímpeto. Fizera as suas investidas no infinito dos casebres e inundara as vielas com o seu fôlego devastador. Um vento glacial, carregado de uma humidade nociva, passava através das paredes vacilantes dos tugúrios, modelava ruínas, enrolava-se em torno de escombros infames, suscitando,por toda a parte, o odor pestilento da miséria.»

Albert Cossery, A casa da morte certa,
(«La maison de la mort certain», 1975),
trad. Ana Margarida Paixão, Antígona,
Lisboa, 2001, (p.7)

junho 07, 2010

(continuação 2)

«Por cima das ruelas, por detrás das persianas
fechadas, invisíveis, as mulheres
falavam de uma janela para outra
e os seus discursos aéreos,
com sonoridades perturbadoras,
faziam lembrar um conciliábulo
de bruxas preparando sortilégios.

Toda aquela populaça parecia
viver na ignorância das tormentas
que pairavam por cima da cidade,
apesar da aparência de um céu
ultrajantemente limpo.»

(fim da transcrição)

Albert Cossery, Uma ambição no deserto,
(«Une ambition dans le désert», 1975),
trad. Ernesto Sampaio, Antígona, Lisboa, 2002,
(p.27-8)

falavam de uma janela para outra
apesar da aparência de um céu
ultrajantemente limpo

junho 06, 2010

(continuação 1)

«Em redor das fontes públicas, as crianças, seminuas,
empurravam-se enquanto se refrescavam
molhando-se umas às outras, num tumulto
alegre trespassado por gritos e injúrias.

Jovens elegantes, retesados nos seus trajes
de gala, exercitavam-se a lançar olhares
enamorados em direcção a criaturas
voluptuosas inexistentes.»

(continua)

Albert Cossery, Uma ambição no deserto,
(«Une ambition dans le désert», 1975),
trad. Ernesto Sampaio, Antígona, Lisboa, 2002,
(p.27-8)

Foto in World of Stock
Em redor das fontes públicas, as crianças, seminuas

olhares enamorados em direcção
a criaturas voluptuosas inexistentes

junho 05, 2010

«A tarde caía e uma população em azáfama
apoderava-se das esplanadas dos cafés,
onde intermináveis discursos decorriam já.

Vendedores ambulantes, ainda a despertar
da sesta, apregoavam com uma voz lânguida
a suculência dos frutos e dos legumes,
fazendo uso de comparações disparatadas
e, por vezes, mesmo obscenas.»

(continua)

Albert Cossery, Uma ambição no deserto,
(«Une ambition dans le désert», 1975),
trad. Ernesto Sampaio, Antígona, Lisboa, 2002,
(pp. 27-28)

apoderava-se das esplanadas dos cafés

Vendedores ambulantes

junho 04, 2010

(continuação 7)

«Era precisamente essa linguagem humana
que encantava Samantar, linguagem que,
um pouco por todo o mundo,

fora substituída por um idioma bastardo
— apanhado nos caixotes do lixo do comércio
e da publicidade —, não visando em bom rigor
o homem, e do qual toda e qualquer noção
de emoção ou de sentimento estava excluída.»

(fim da transcrição)

Albert Cossery, Uma ambição no deserto,
(«Une ambition dans le désert», 1975),
trad. Ernesto Sampaio, Antígona, Lisboa, 2002,
(pp. 15-16-17)

essa linguagem humana que encantava