junho 11, 2013

Bergson


«Voltemos a insistir, pois, nalguns traços salientes da vida, e vinquemos o carácter nitidamente empírico da concepção de um “impulso vital”.

O fenómeno vital será resolúvel, perguntávamos nós, em factos físicos e químicos? Quando o fisiologista o afirma, entende por isso, consciente ou inconscientemente, que o papel da fisiologia é investigar o que há de físico e químico no vital, que não se pode fixar antecipadamente um termo a esta investigação, e que por isso se deverá proceder como se a investigação não devesse vir a ter termo: só assim se continuará em frente. Com o que estabelece, pois, uma regra de método; não enuncia um facto. [ ] (p.102)

Agora, uma vez estabelecida a vida, como nos representaremos a evolução?
[ ] Invocando [ ] uma composição do acaso com o acaso, [ ] aplica-se a priori o princípio de economia recomendado pela ciência positiva, mas não se comprova seja como for um facto, e o resultado é deparar de imediato com dificuldades insuperáveis. [A] esta insuficiência do darwinismo [ ] opúnhamos um facto; constatávamos que a evolução da vida se realiza em direcções determinadas.

— Agora, serão as condições em que evolui a imprimir á vida aquelas direcções? Seria então necessário admitir que as modificações sofridas pelo indivíduo se transmitem aos seus descendentes [ ]. Mas a hereditariedade do adquirido é contestável e [ ] excepcional. [ ]

— Vamos mais longe. Quando se fala do progresso de um organismo ou de um orgão ao adaptar-se a condições mais complexas pretende-se, as mais das vezes, que a complexidade das condições impõe a sua forma à vida, como o molde ao gesso: só nessa condição, pensa-se, a explicação será mecânica e, por conseguinte, científica. (p.102-3)

Mas, [ ], raciocina-se, nos casos particulares, como se a adaptação fosse uma coisa completamente diferente — o que ela é com efeito —, a solução original encontrada pela vida do problema que as condições exteriores lhe põem. E é esta faculdade de resolver problemas que se deixa por explicar.
Fazendo então intervir um “impulso” [ o “impulso vital”], não fornecíamos também explicação; mas assinalávamos [ ] este carácter misterioso da vida.

Se a maravilhosa coordenação das partes com o todo não pode explicar-se mecanicamente, também não exige, em nosso entender, que a tratemos como finalidade.

O que, visto de fora, é decomponível como uma infinidade de partes coordenadas umas com as outras, talvez surgisse do interior como um acto simples: assim, um movimento da nossa mão, que sentimos indivisível, será exteriormente percebido como uma curva definível por uma equação, quer dizer como uma sobreposição de pontos em número infinito, que satisfazem todos uma mesma lei.

Evocando a imagem de um impulso, queríamos sugerir [ ] qualquer coisa mais: onde a nossa análise, permanecendo no exterior, descobre elementos positivos em número cada vez maior e os encontra, por isso, cada vez mais surpreendentemente coordenados entre si, uma intuição que se transportasse ao interior apreenderia, já não meis combinados, mas obstáculos contornados.

Uma mão invisível, atravessando bruscamente limalha de ferro, não faria mais que afastar uma resistência, mas a própria simplicidade deste acto, vista do lado da resistência, surgiria como a sobreposição, efectuada segundo uma determinada ordem, dos pedaços de limalha. [ ]

Se a vida não é resolúvel em factos físicos e químicos, age à maneira de uma causa especial, acrescentada áquilo a que chamamos comummente matéria: esta matéria é instrumento, e é também obstáculo. Divide aquilo que precisa. [ ] (p.103-4)

Se virmos duas ou três grandes linhas de evolução que se continuam livremente ao lado de outras vias que acabam num beco, e se ao longo dessas linhas se desenvolver cada vez mais um carácter essencial, poderemos conjecturar que a irrupção vital começava por apresentar tais caracteres no estado de implicação recíproca: instinto e inteligência, [ ] constitutivos de uma realidade simples na qual [ ] não seriam senão pontos de vista.

Mas ainda só implicitamente mencionámos o essencial: a imprevisibilidade das formas que a vida cria por inteiro, através de saltos descontínuos, ao longa da sua evolução.

Tanto para a doutrina do puro mecanicismo como para a da finalidade pura, as criaçõs da vida são predeterminadas, podendo o futuro ser deduzido do presente mediante um cálculo ou desenhando-se nele sob a forma de ideia, e sendo por conseguinte o tempo sem eficácia.

A experiência pura nada de semelhante sugere. [ ] Um impulso [élan] pode precisamente sugerir [ ] e fazer pensar também, pela indivisibilidade daquilo que é interiormente sentido e pela divisibilidade até ao infinito daquilo que é exteriormente percebido, nessa duração real, eficaz, que é o atributo da vida.

— Tais eram as ideias que encerrávamos na imagem do “impulso vital”. [ ] Se forem levadas em conta, teremos uma ideia carregada de matéria, empiricamente obtida, capaz de orientara a investigação, que resumirá a traço grosso o que sabemos do processo vital e assinalará também o que dele ignoramos. (p.104-5)

Henri Bergson, As duas fontes da moral e da religião,
(«Les deux sources de la morale et de la religion», 1939),
Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Almedina, 2005 p.102-5.

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