setembro 13, 2013
Dom Quixote de la Mancha
«Mas nesta nossa época triunfa a moleza sobre a acção, a ociosidade sobre o trabalho, o vício sobre a virtude, a arrogância sobre a valentia e a teoria sobre o exercício das armas, que só viveram e resplandeceram nas idades do ouro e dos cavaleiros andantes.
Se não, digam-me: quem há mais honesto e mais valente que o famoso Amadis de Gaula? Quem mais sensato que Palmeirim de Inglaterra? [ ] Todos estes cavaleiros, e muitos outros que eu poderia mencionar, senhor cura, foram cavaleiros andantes, luz e glória da cavalaria.
Destes, ou tais como estes, quisera eu que fossem os escolhidos por mim; que, se o fossem, Sua Majestade se encontraria bem servido e pouparia muitos gastos, e o Turco ficaria a arrancar as próprias barbas, e, com isto, não quero ficar em minha casa, pois nenhum capelão me vem tirar daqui; e se Júpiter, como disse o barbeiro, não chover, aqui estou eu, aqui estou eu, que choverei quando me apetecer. [ ]
— Pois com esse beneplácito — respondeu o cura —, digo que o que me pesa é eu não poder convencer-me de maneira alguma que toda a caterva de cavaeiros andantes que vossa merçê, senhor D. Quixote, mencionou tenha sido real e verdadeiramente de pessoas de carne e osso no mundo; pelo contrário, imagino que tudo é ficção, fábula e mentira, sonhos contados por homens acordados, ou, para falar mehor, meio adormecidos.
— Esse é outro erro — respondeu D. Quixote — em que cairam muitos, que não acreditam que tenham existido tais cavaleiros no mundo; e eu muitas vezes, com diversas gentes e motivos, procurei trazer para a luz da verdade este quase vulgar engano; mas algumas vezes não consegui ter êxito no meu intento, e outras vezes sim, sustentando-o sobre os ombros da verdade.»
Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 481-2.
Sem comentários:
Enviar um comentário