setembro 17, 2013

Dom Quixote de la Mancha


«E nisto começou a chorar tão amargamente, que D. Quixote, zangado e colérico, disse-lhe:

— Que receias, cobarde criatura? Porque choras, coração de manteiga com açucar? Quem te persegue ou te maltrata, espírito de ratazana caseira, ou que te falta, pobretão no meio das entranhas da abundância?

Porventura caminhas a pé descalço pelas montanhas rifenhas ou vais sentado numa tábua, como um arquiduque, pelo sereno curso deste agradável rio, de onde me breve sairemos para o vasto mar?

Mas já devemos ter saído e percorrido, pelo menos, setecentas ou oitocentas léguas; e se eu tivesse aqui um astrolábio para medir a altura do pólo, eu dir-te-ia quantas percorremos; embora, ou eu sei pouco, já passámos ou passaremos dentro de momentos pela linha equinocial, que separa e corta os opostos polos em igual distância.

— E quando chegarmos a essa lenha que vossa mercê disse — perguntou Sancho —, quanto teremos percorrido?

— Muito — repicou D. Quixote —; porque de trezentos e sessenta graus que tem o globo, da água e da terra, segundo o cômputo de Ptolomeu, que foi o maior cosmógrafo que se conhece, teremos percorrido metade, chegando à linha que te disse.»

Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 664.

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