«Não, não, nem Deus o permita ou queira! Os varões prudentes, as repúblicas bem organizadas, só por quatro coisas hão-de pegar em armas e desembainhar as espadas e pôr em perigo as suas pessoas, vidas e fazendas: a primeira, para defender a fé católica; a segunda, para defender a sua vida, que é de lei natural e divina; a terceira, em defesa de sua honra, da sua família e bens; a quarta, em serviço do seu rei, na guerra justa; e se quisermos acrescentar a quinta, que se pode contar por segunda, na defesa da sua pátria.
A estas cinco causas, como capitais, podem juntar-se algumas outras que sejam justas e razoáveis e que obriguem a pegar em armas; mas pegar nestas por ninharias e por causas que são mais para fazer rir e divertir que para ofender, parece que quem nelas pega tem falta de todo o pensamento razoável; tanto mais que o querer vingar-se injustamente, que justa não pode haver alguma que o seja, vai directamente contra a santa lei que professamos, na qual se nos manda que façamos bem aos nossos inimigos e amemos aqueles que nos detestam, mandamento que, embora pareça um pouco difícil de cumprir, não o é a não ser para aqueles que têm menos de Deus que do mundo, e mais de carne que de espírito;
porque Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, que nunca mentiu, nem pôde nem pode mentir, sendo nosso legislador, disse que o seu jugo era suave e a sua carga leve; e assim, não havia de nos mandar fazer nada que fosse impossível cumprir. Portanto, meus senhores, vossas mercês estão obrigados por leis divinas e humanas a fazer as pazes.»
Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 656.
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