«Oh tu, bem-aventurado mais que quantos vivem sobre a face da terra, pois sem sentir inveja nem ser invejado, dormes com tranquilo espírito, não te sobressaltam encantamentos nem te perseguem os seus fazedores.
Dormes, digo outra vez, e di-lo-ei outras cem, sem que te mantenham em contínua vigília ciúmes de tua dama, nem te causem insónia e preocupações de pagar dívidas que devas, nem do que hás-de fazer para comer no dia seguinte tu e a tua pequena miserável família.
Nem a ambição te inquieta, nem a pompa vã do mundo te atormenta, pois os limites dos teus desejos não vão para além de pensar o teu jumento; o que o de tua pessoa sobre os meus ombros o tens posto, contrapeso e carga que a natureza e o costume puseram aos senhores.
Dorme o criado e o senhor mantém-se acordado, a pensar como há-de sustentá-lo, fazer-lhe bem e pagar-lhe a soldada. A aflição de ver que o céu se torna de bronze sem acudir à terra com o benéfico orvalho não aflige o criado, mas o senhor, que tem de sustentar na infertilidade e na fome aquele que o serviu na fertilidade e abundância
Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p.599-600.
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