dezembro 30, 2011
«Qu'est-ce tout cela qui n'est pas universelle?» :)
Notável ensaio de Raymond Aron (1905-1983),
datado de 1954, antes da destalinização
de Khrushchev, do Tratado de Roma,
da descolonização da Argélia,
da Vª República de Gaulle!
Um manifesto desassombrado
contra o narcótico religioso
da esquerda comunista militante,
denunciando-lhe a ilusão utópica
em que se debate ou, franqueado
o limiar da militância,
o sacrifício do livre
e independente
julgamento
da razão.
dezembro 22, 2011
dezembro 21, 2011
Quebrado o espelho
resta ainda a face
impessoal e exacta
a desvendar
Quebrado o espelho
estamos face a face
mais um do outro
do que de nós mesmos.
Quebrado o espelho
meu amor
busquemos
tanto um no outro
que se reconstrua
dos nossos corpos
contra a morte erguidos
a essência mortal que os definiu.
Helder Macedo, Poemas Novos e Velhos,
Editorial Presença, Lisboa 2011
dezembro 20, 2011
Não disse tudo
ainda.
Nem nunca poderia com palavras
libertar
o fogo original
que tenho a revelar
em ti.
Comigo morrerá o fogo eterno
que me cabe
morrendo o tempo e o espaço do meu corpo
que deu à morte a forma exacta
e obscura
de um destino.
Mas não há palavras para falar da morte
nem da morte há palavras para ouvir
salvo o grito gelado
que enclausurou o tempo
em prazos de uma vida.
As palavras da morte somos nós
és tu e eu
meu solitário amor
altivos no pavor do seu grito de comando.
Helder Macedo, Poemas Novos e Velhos,
Editorial Presença, Lisboa 2011
dezembro 19, 2011
dezembro 18, 2011
Destak — 14.12.2011
“Coluna Vertical” — José Luís Seixas, Advogado
Não há conferência de imprensa ou comunicação pública convocada pelo Banco Central Europeu em que o Dr. Victor Constâncio não figure na mesa ladeando o Presidente. Assemelha-se a um adereço obrigatório, como os ramos de cravos nas cerimónias do 25 de Abril. Ou, numa outra perspectiva, a um acólito que marca a sua presença na cerimónia litúrgica sem, porém, nela participar, nem sequer para entoar os salmos. Não ouso comparar o Dr. Victor Constâncio a um cravo ou mesmo a uma flor. Pelo que prefiro equivalê-lo à figura respeitável do acólito., De qualquer forma, julgo que todos ficamos um pouco espantados com esta sua persistente aparição. É muito recente a memória da sua governação do Banco de Portugal, das omissões no acompanhamento do BPN e do BPP, na fiscalização da actividade finanaceira, designadamente nas práticas de concessão de crédito, no controlo da dívida pública e no crescimento demencial do endividamento do Estado. Integra, em lugar de destaque, a galeria dos maiores responsáveis da situação a que chegámos que nos custa o presente e compromete o futuro. Por isso, se foram os mandatos do Dr. Constâncio à frente do Banco de Portugal que o alcandoraram a segunda figura do BCE estamos bem tramados. É que, como diz o Povo, “pela montra se vê a loja”. Resta a esperança de que a sua função seja, realmente, de acólito. Arrogante e sobranceiro embora, como é da sua idiossincracia. Mas com isto todos podemos bem.
dezembro 17, 2011
Destak — 14.12.2011
Cartas do Leitor — JosÉ Amaral, V.N. Gaia
Após o elevadíssimo sorvedouro público para manter em funcionamento o BPN — Banco para alguns Nabos —, sem que qualquer administrador fosse obrigado a repor o que tivera desviado em proveito próprio, ou beneficiado amigalhaços nessas dolosas negociatas, ou ainda desbaratando muitos milhões em loucuras de verdadeira sumptuosidade, sem sequer irem parar à prisão, o Estado, segundo novas notícias vindas a lume e que são altamente lesivas e sempre ultrajantes, lá vai dá-lo por 40 milhões de euros, repartidos em quatro suaves prestações , ao BCI — Banco Comprador de Insolvências Fictícias —, em que, para cúmulo do admissível, o Estado ainda é obrigado a injectar no abismo de tal buraco negro a módica quantía de 500 milhões de euros e ficar obrigado a receber no seu seio social metade dos trabalhadores.
E é por causa de iguais negociatas e roubos de igual jaez, dirimidos por dragonados estrategos pagos a peso de ouro e intocáveis a tudo que de mal têm engendrado, que Portugal está mergulhado na maior e mais nefasta encruzilhada de toda a sua honrosa e heróica História multissecular. E o mais exótico desta e outras palhaçadas é o interlocutor, metido na compra/venda/BCI/Estado/BPN, ser o reformado mais bem pago de Portugal.
dezembro 08, 2011
dezembro 03, 2011
novembro 30, 2011
«O intelecto é uma grandeza de intensidade,
não uma grandeza de extensão, por isso,
a esse respeito, pode-se sem dúvida
pegar em dez mil tolos e não
conseguir formar
um único
sábio.»
Arthur Schopenhauer, Aforismos,
Public. Europa-América, Colecção
Livros de Bolso nº 605, Lisboa, 1998, p. 16
novembro 24, 2011
«Faz, Senhor, que a soberba deste homem
seja cortada com a sua própria espada; seja ele
preso ao laço dos seus olhos, fixos sobre mim;
fere-o com as doces palavras dos meus lábios.
Dá firmeza ao meu coração para eu o desprezar, e
fortaleza para o perder. Ganhará o teu nome uma
glória memorável, se a mão de uma mulher o derrubar.
O teu poder, Senhor, não está na multidão,
nem tu te comprazes na força dos cavalos;
nunca te agradaram os soberbos, mas
sempre te agradou a súplica dos
humildes e dos mansos.»
Judit, 9, 12—16
novembro 19, 2011
«Toda a aquisição de saber autêntico significa um alargamento do nosso Eu. ( )
Na contemplação, [ ] de onde nós partimos é do Não-Eu, e
é por intermédio da grandeza deste que se logra ampliar os confins do Eu;
( ) O conhecer, em suma, é uma forma da união do Não-Eu e do Eu;
( ) O livre intelecto deverá enxergar assim como Deus poderia ver: -
sem aqui, nem agora; sem esperança e sem medo;
isento das crenças costumeiras e dos preconceitos tradicionais
(...)
O espírito que se habituou, na contemplação filosófica, a ser livre e equânime,
algo trará dessa imparcialidade livre para o mundo da acção e da emoção.
A contemplação amplifica por esta forma,
além dos objectos do pensamento,
também os objectos da nossa acção,
e outrossim os objectos do nosso afecto;
de nós faz ela cidadãos do universo,
e não somente de uma cidade murada,
em estado de guerra com tudo o mais. »
Bertrand Russell, Os problemas da filosofia
novembro 17, 2011
«[ ] Todo o mundo se transformou na aldeia global da informação
simultânea, como o consequente aparecimento de uma engenharia
social que molda uma opinião pública mundializada [ ].
O homem massa transformou-se em audiência,
em consumidor, em vítima potencial
de novas armas de destruição
massiça.
Com a transmissão de dados à velocidade da luz,
com a banalização dos satélites de telecomunicações,
grupos poderosos como Estados tratam a informação.
[ ] São agências globais de informação audiovisual [ ].
[ ]
Não será que a guerra não passa da continuação da política
por outros meios e vice-versa? O comércio como o substituto
da guerra ou aquilo com que se faz o comércio é aquilo com que
se faz a guerra?
Qual a fronteira que separa a informação da propaganda,
a comunicação da acção psicológica? Não será
que a informação-espectáculo do poder
mediático nos faz viver em regime
de realidade virtual?»
Bem Comum dos Portugueses, Jorge Braga de Macedo,
José Adelino Maltez, Mendo Castro Henriques,
Lisboa, Vega, 1999, p.202-3
novembro 15, 2011
»Vivemos num tempo de vertiginosa aceleração dos acontecimentos
globais que a hiperinformação efemeriza. E as lentes utilizadas pelos
analistas do curto prazo, descrevendo, com os mais pormenorizados
zooms das reportagens directas, as árvores da nossa floresta, quando
não a casca ou um pedaço de folha, não nos têm deixado perspectivar
a própria floresta.»
Bem Comum dos Portugueses, Jorge Braga de Macedo,
José Adelino Maltez, Mendo Castro Henriques,
Lisboa, Vega, 1999, p. 199
novembro 13, 2011
novembro 12, 2011
novembro 11, 2011
«O político português [anos 90], ainda preocupado em demarcar-se dos consensos implícitos ou forçados do tempo da ditadura [Salazar-Caetano], adora reivindicar hoje [1999] aquilo que nem nos «amanhãs que cantam» poderá obter. Esta incultura cívica não é contudo apanágio dos políticos eleitos a nível local e nacional. Pelo contrário, afirmou-se também nas ocupações mais sujeitas à falta de participação e à censura no regime anterior. Estão seguramente nessas condições jornalistas e sindicalistas, classes que mais tempo conseguiram [já não conseguem] uma imagem de abertura e responsabilização democráticas, mantendo contudo práticas corporativas [agora (2011), só prosseguidas por magistrados judiciais, polícias, exército] muito para além do exigido pelas características da transição portuguesa.»
Bem Comum dos Portugueses, Jorge Braga de Macedo,
José Adelino Maltez, Mendo Castro Henriques,
Lisboa, Vega, 1999, p.195
novembro 09, 2011
«E embora devamos esforçar-nos por
tornar os nossos princípios tão universais quanto possível,
ampliando ao máximo as nossas experiências e explicando
todos os efeitos pelas causas mais simples e menos numerosas,
continua a ser certo
que não podemos ir além da experiência e
que qualquer hipótese que pretenda descobrir
as qualidades originais últimas da natureza ( )
deve desde logo ser rejeitada como presunçosa e quimérica.»
David Hume, Tratado da natureza humana
novembro 05, 2011
Uma argumentação surpreendente e persuasiva
contra o intervencionismo do Estado na actividade
económica, - que voltou a aparecer nos escaparates
das livrarias -, em defesa do liberalismo político.
Ver no site de filosofia portuguesa, a refutação
da filosofia nórdica, oriunda de Stº Agostinho
e Duns Escoto e triunfante com Descartes.
Vale a pena ler Orlando Vitorino,
que mais não seja pelo rigor
da argumentação.
outubro 27, 2011
«Quando o curso da civilização toma um rumo inesperado, em vez do progresso contínuo que esperávamos, nos encontramos ameaçados pelos erros e males que acumulámos ao longo dos anos de barbárie, atribuímos a culpa de tal situação a tudo menos a nós próprios.
Pois não lutámos todos pelos mais nobres ideais? Pois não trabalharam incessantemente os nossos mais elevados espíritos para fazer deste mundo um mundo melhor? E todos esses esforços e esperanças não tiveram sempre como fim uma maior liberdade, justiça e prosperidade?
Se o resultado veio a ser tão diferente dos nossos objectivos e se em vez da liberdade é a escravidão e a miséria que vemos à nossa frente, não será evidente que existem forças sinistras que fizeram malograr as nossas intenções e que somos vítimas de algum poder demoníaco que teremos de vencer caso queiramos retomar a estrada que nos leva a um melhor destino?
Por maior que seja o nosso desacordo quanto ao nome do culpado, seja ele o malvado capitalismo, seja o espírito perverso de determinada nação, seja a estupidez dos nossos antepassados, seja ainda um sistema social contra o qual lutamos há meio século sem o conseguirmos derrubar completamente, há uma coisa sobre a qual todos nos pomos de acordo ou, pelo menos até há bem pouco tempo, todos nos púnhamos de acordo:
— as ideias triunfantes que, durante a última geração, se tornaram comuns à maior parte das pessoas bem intencionadas e que determinaram as principais modificações da nossa vida social, essas de modo algum as consideramos erradas.
Poderemos aceitar todas as explicações para a crise actual da nossa civilização, excepto uma: a de que o estado actual do mundo possa ser consequência de um erro nosso e de que a fidelidade a alguns dos nossos mais queridos ideais nos tenha conduzido a resultados totalmente diferentes daqueles que prevíamos.»
Frederico Hayeck, O caminho para a servidão,
(«The road to serfdom»), trad. Mª Ivone Serrão
de Moura, rev. de Orlando Vitorino, Teoremas,
Lisboa, 1977, pp.35-6
outubro 25, 2011
«O trabalho anual de uma nação é o fundo de que provêm originariamente todos os bens necessários à vida e ao conforto que a nação anualmente consome, e que consistem sempre ou em produtos imediatos desse trabalho, ou em bens adquiridos às outras nações em troca deles.
Portanto, consoante esta produção, ou aquilo que é adquirido mediante ela, se apresente em maior ou menor proporção relativamente ao número daqueles que vão consumi-la, a nação estará melhor ou pior fornecida de todos aqueles bens necessários à vida e ao conforto que estaria em condições de consumir.
Mas esta proporção deve, em todas as nações, ser regulada por duas circunstâncias diferentes: em primeiro lugar, pela perícia, destreza e bom senso com que o seu trabalho é geralmente executado; e em segundo lugar, pela proporção entre o número dos que estão empregados em trabalho útil e o daqueles que o não estão. Sejam quais forem o solo, o clima e a extensão do território de uma nação, a abundância ou escassez do seu suprimento anual dependerão sempre, em cada caso particular, destas duas condições.»
op.cit., pp.69-70
outubro 20, 2011
Pequena Fábula
«"Ai de mim", disse o rato. "O mundo está a ficar cada dia mais pequeno. Ao princípio era tão grande que eu tinha medo, estava sempre a correr, a correr, e fiquei contente quando finalmente vi paredes lá ao longe, à esquerda e à direita, mas estas longas paredes estreitaram-se tão depressa que eu agora estou já no último compartimento e ali no canto está a ratoeira para a qual sou obrigado a correr." "Só precisas de mudar de direcção", disse o gato, que logo o engoliu.»
in blog Catharsis: - Franz Kafka, Contos
Pequena Grande Fábula!
E ainda e sempre o problema
eterno d'o que parece e não é,
e também o do seu inverso
o d'o que é e não parece...
Sempre estamos posicionados
num dado referencial, e
não nos apercebermos
do referencial de
que o nosso
depende!
Dou este exemplo: - viajamos
num carro a cem à hora, até
fumamos os nossos cigarros.
Tal e qual como se num
sofá estivessemos
conversando.
Apenas, sucede
que esse convívio
de bem-estar referencia-se
ele próprio à condição de uma
velocidade em que algum ínfimo
detalhe pode causar a hecatombe
do primeiro habitat, tudo em estrita
obediência às leis invioláveis da Física.
Assim o caso
quando nos movemos
num referencial que parece, mas não é,
impossibilitando-nos de antever o que pode acontecer.
outubro 14, 2011
Noto que os "governantes"
- da troika dos credores -,
andam todos com a bandeira
nacional à lapela.
Ora, discordo desse
monopólio e já o destituí
usando-o e não governando.
Não que não concorde
com as medidas de austeridade
já tomadas, mas porque discordo
das que continuam a não ser tomadas.
A saber: trabalhar; vender, não comprar
e pagar ao estrangeiro, permita-o ou não
a legislação europeia e o comércio internacional.
Só assim procedendo se verá quem está certo e quem está errado.
outubro 11, 2011
Eco, publicou um novo 'policial-histórico',
a que chamou Il Cimitero di Praga, a trama
política ao longo do século xix,
a "teoria da conspiração"
ao rubro, digladiando
entre si, carbonários,
maçons, jesuítas
e católicos,
ante-câmara onde teriam sido forjados
os famosos Protocolos dos Sábios do Sião.
Numa mescla muito própria, Umberto Eco
mistura a história e a literatura,
a realidade e a ficção, num enredo de distância
crítica que, sob a capa de um aparente cepticismo,
vai destilando uma crença genuína e envergonhada
na cabala da "Forma Universal de Conluio",
onde o "povo eleito" acabará por
'administrar' o mundo inteiro!
Em boa verdade, não gostei :(
Sem dúvida, U. Eco é habilidoso
e tem talento, mas a trama
apresenta uma linearidade
algo infantil, embora
obscura.
E não gosto de ver misturada a História
com fantasias conspirativas e manias
de perseguição.
Pode bem dar-se que hajam muitas
sociedades secretas que almejam
fins de interesse pessoal
ou mesmo de interesse
universal e civilizacional.
No entanto, aprecio mais
ler o transcurso histórico
de um ou alguns séculos,
segundo a interacção intelectual e objectiva
do homem colectivo com a natureza
— em que se insere e de que depende —,
e não só pela rivalidade entre estados,
sociedades e classes sociais
em que a humanidade
se pluraliza.
setembro 29, 2011
setembro 24, 2011
setembro 23, 2011
«Deixa andar, deixa correr — o rio sentir-se-á
mais alegre no balouçar das margens e
os pássaros saltarão para fora dos
arbustos num perguntar
admirado.
As coisas caminharão na indiferença do destino,
alheias ao que nós pensamos ou fazemos.
Tudo irá sentir-se num gravar de memória
cheio de imprevistos e colhendo
os frutos defesos do porvir.
[ ]
Enche-se o futuro de ilusões e
na companhia de enganos fáceis
apronta-se o destino.»
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, pp.302-3
setembro 22, 2011
«Havia nos Barbelas um orgulho de casta que em alguns se transmitia
em vaidade de pecado mortal, mas mesmo esta vaidade era uma vaidade
académica, secundária, vingativa, vaidade que mais tarde se exteriorizou
[ ] em preocupações exclusivas de que só eles eram sapientes.
Uma vaidade sem grandeza, desprezível onde o desequilíbrio entre
o ser que pensava e o ser que se envaidecia era tal que o vaidoso
dominava o inteligente [ ] E nessa mistura de sensações,
sentimentos, reacções, uma coisa era aquilo que
os Barbelas pensavam, outra o que faziam.
Falavam, falavam, conversavam fiado por tempos sem conta,
discutiam, assentavam decisões e conversas, e ao fim
encaminhavam-se ao natural de nada se ter passado.
[ ] Enfim, o que havia, era, bem ou mal, a prata da casa.»
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, pp.233-4
setembro 21, 2011
setembro 19, 2011
setembro 18, 2011
«Os dois em cima do garrano continuavam silenciosos.
O passio frustrara-se. Da posição ligeiramente imprópria
de mariposa o Cavaleiro voltou-se de costas para a frente
e à queima-roupa disse à Madeleine: «Que bonito peito que a prima
tem! Deita fumo?» Madeleine ficou perplexa com a tirada. A frase
sintetizava, com certeza, a ruminação de muitas horas. Madeleine
entupiu. Sair fumo dos peitos! Estavam calados, a mirar-se e
a compor palavras. Olharam-se mais intimamente. Desceram
como de um altar. Viraram as costas à fauna e à flora.
Estavam quase. Vilancete pastava, alheio àquela
história de gente. Os segundos eternizavam-se
e só se ouvia o piar de uns mochos
atarefados em agoiros.
Momento quase horrível!
Vilancete sacudiu as orelhas arredando-se
e então os dois corpos agarraram-se de salto
para caírem em absoluto delírio.
Madeleine descobria que o Cavaleiro era virgem.
O seu emaranhar transmitia uma loucura nunca até aí
vivida por Madeleine. Era um coito que atravessava séculos.
Uma coisa de sempre e de nunca, como os desejos escondidos
de todos os que se passeiam pelo mundo. A noite clareava-se
e os raios de extinta luz lembravam o fumeiro da Beringela.
Discretamente, Vilancete escondera-se com o rabo entre as pernas.»
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, pp.34-5.
setembro 15, 2011
imagem in blog Octávio V. Gonçalves
«Parece Espinho no Inverno,
não se vê vivalma.»
:))
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, pp.227.
setembro 14, 2011
Dali à Moutosa ainda se contavam duas léguas bem andadas.
Iam a meio caminho, no subir da encosta que se debruçava
vagarosamente sobre o Lima. A neblina rala espalhava-se
aos balões pelas cabeças mais salientes. Aquela procissão
de burras e mulas parecia uma bicha tum-tum-tum entrando
por um buraco da natureza e aparecendo do lado oposto. A
conversa obcecava os primos da Barbela sabido que todos
conheciam de cor e salteado o córrego da Moutosa.
Só Madeleine não estava iniciada naquela visão;
era a mais atenta no vislumbrar da paisagem.
Como aquilo, nunca vira nada.
Um outro mundo.
O que se começava a ver não tinha sido feito pelo homem;
sentia-se a própria Criação à solta, liberta de peias
domésticas e preconcebidas. Se a Beleza tivesse
refúgio secreto para os Deuses da Flora,
seria ali o reino desse sonho desmedido.
Madeleine extasiava-se, dela se apoderava
uma inclusão diáfana que trespassava a panorâmica.»
:)
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, pp.121-2.
setembro 13, 2011
«Ao fim da tarde, antes do crepúsculo cantar as suas loas e
sem se descortinar a realidade, apoderava-se da Barbela
um sentido incógnito da existência.
Forte como as nacionalidades e rija como a têmpera da
lâmina do Xasco, o maior escanhoador da Ribeira Lima,
a Torre preparava-se para o banho noctívago
na sua vida de séculos.
Existissem ou não estrelas, fosse breu ou
luar a jorros pelos campos marginais,
o mundo abria-se então
dividindo o tempo. [ ]
Quando a linha do horizonte baixava em intensidade e
os fumos azulados batiam a favor do vento e do andar das coisas,
naquela dimensão abrupta que testemunhava o acender das constelações,
os Barbelas realizavam-se vindos do sonho e da fantasia
para os reais domínios da Torre.
De noite, ressuscitavam e, de companhia, traziam
os amores e os ódios de outras eras e
de outras sensibilidades [ ].
Aquele ressuscitar transfigurava a Torre.»
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, pp.17;18.
setembro 12, 2011
«E aqueles dois seres humanos caminhavam indistintos de compreensão futura,
aos bordos sentimentais, a polir arestas salientes do dia a dia. Para os dois
o mundo estava isolado por um dique intransponível.
A vida projectava-se de um lado e do outro,
como as margens adormecidas do Rio Lima.
Podiam parar, olhar para a noite, fazer tudo aquilo que aos
outros humanos era sentimento passageiro de igualdade.
Pouco importava agora a sua separação. Sentiam-se diferentes,
como as caras das pessoas que se cruzam nas ruas.
Só a tragédia ou a aventura os podia aproximar.»
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, p. 102-3
setembro 11, 2011
«Afasta-te, diabo, que andas sempre distraído,
não vês Dona Urraca a rezar com o breviário
debaixo do braço. Parece sonâmbula, nem
repara em nós. Deito-lhe as mãos e
obrigo-a a confessar-se de
pecadoria geral.
Raios me partam se aquele fedúncias
do Menino das Enguias não é filho dela.
E a quererem passar por santos,
lá na terra querem todos ser santos,
dizem que são santos e ficam contentes,
bastam-se com pouco.
Fazem as maiores poucas-vergonhas
e são todos uns santos.
Então os primos mais
sociais da Grande Barbela
quanto mais pouca-vergonha,
mais missa e mais santos na família.»
:)
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, p. 230
setembro 10, 2011
«Torna-se também difícil explicar o que se passava
no espírito de Dom Raymundo. Parece haver a certeza
de que Dom Raymundo era um destes seres que se
deixa amar sem perguntar porquê. Irresponsável
e poeta, com uma barbicha e um encanto de deitar
abaixo as piores intenções, deixava-se amar com um
ar olímpico de quem à superfície da terra é um Deus
e, como tal, não pode medir as consequências
benéficas ou maléficas dos seus actos. Vivia num
laissez faire que amedrontava os homens como
Frey Cyro, procuradores honestos de uma verdade
nas coisas e nos indivíduos. Não era o enfant terrible
da Barbela, sim um homem terrível, que deixava ao
deus-dará as consequências dos amores com que
queimava vidas alheias. E nisto constituía-se muito
latino e muito português. Generoso no amor, cruel
na desgraça. A memória que varresse o passado;
mesmo a saudade ficava apenas dos bons momentos,
que dos maus não se lembrava.»
op.cit., pp.180-81
setembro 03, 2011
"Post blanda veneris"
Depois do suave ardor
Do sexo,
Dos nervos se distende
O nexo.
Como que flutuando
Da treva a um mundo novo
Os olhos vêm vogando
Num remar das pálpebras!
Ah, como é doce o trânsito
Da posse ao entressonho!
Mas mais doce é o regresso
Do entressonhar à posse.
De Carmina Burana,
conjunto de poemas medievais
agosto 30, 2011
agosto 29, 2011
agosto 27, 2011
O cheiro da praia tornando-se abstracto.
não fui eu a primeira a transpô-lo.
dos restos de água para a espuma
das lembranças. da ressaca
que distribui conchas ao acaso
até à narração literária desse abandono.
Aónio recolheu os fragmentos enquanto
Desencadeava os ecos atás do Amor.
as algas amontoam-se estendidas com perfeição
ao longo dos limites. Riscam a água
com um diamante. dali tudo jorra
como o cheiro de um vapor brando
que aparece.
mas eu perco-o como algo
volátil. impregno-me do que flutua.
na imagem que me resta um papel arde
e contorce-se. a tinta esbate-se
em forma de onda. as letras emocionantes
diluem-se. os poemas antigos
banhados pelo mar tornam-se matéria
pura. piso-os e observo no refluxo
pequenos orifícios. Lambem a sombra
ou o que eu sou quando o poente
bate sobre um lado do corpo.
Fiama Hasse Pais Brandão, Areia Branca,
in Obra Breve, Assíro & Alvim, Lisboa, 2008, p. 312
agosto 20, 2011
Epístola para Dédalo
Porque deste a teu filho asas de plumagem e cera
se o sol todo-poderoso no alto as desfaria?
Não me ouviu, de tão longe, porém pensei que disse:
todos os filhos são Ícaros que vão morrer no mar.
Depois regressam, pródigos, ao amor entre o sangue
dos que eram e dos que são agora, filhos dos filhos.
Fiama Hasse Pais Brandão,
in Epístolas e Memorandos, 1996