setembro 30, 2009

Um romance mágico,
poético da primeira
à última página.



«África é o mais sensual dos continentes.»


«Assim que saímos da cidade,
desabou o céu: nunca vi tamanho dilúvio.
Tivemos que parar porque a estrada
não oferecia segurança.
[ ]
Pensava que sabia o que era chover.
Naquele momento, porém, eu revia os verbos
e receava que, em lugar da viatura,
deveria ter alugado um barco.

Depois de a chuva terminar, porém,
é que sucedeu a inundação:
um dilúvio de luz.
Intensa, total, capaz de cegar.

E me surgiram quase indistintas:
a água e a luz. Ambas em excesso, ambas
confirmando a minha infinita pequenez.

Como se houvesse milhares de sóis,
incontáveis fontes de luz
dentro e fora de mim.

Eis o meu lado solar,
nunca antes revelado.

Todas as cores descoloriram,
todo o espectro se tornou num
lençol de brancura.»

(p. 184-5)

setembro 28, 2009

O nosso novo «infinito». — Até aonde vai o carácter perspectivo da existência? possui ela mesmo outro carácter? uma existência sem explicação, sem «razão» não se torna precisamente uma «irrizão»? e, por outro lado, não é qualquer existência essencialmente «explicativa»? é isso que não podem decidir, como seria necessário, as análises mais zelosas do intelecto, as mais pacientes e minuciosas introspecções: porque o espírito do homem, no decurso destas análises, não se pode impedir de se ver conforme a sua própria perspectiva e só pode ver de acordo com ela. Só podemos ver com os nossos olhos; é uma curiosidade sem esperança de êxito procurar saber que outras espécies de intelecto e de perspectivas podem existir; ( ) Espero contudo que estejamos hoje longe da ridicula pretensão de decretar que o nosso cantinho é o único de onde se tem o direito de possuir uma perspectiva. Muito pelo contrário o mundo, para nós, voltou a tornar-se infinito, no sentido em que não lhe podemos recusar a possibilidade de se prestar a uma infinidade de interpretações.

(Gaia Ciência, Livro V, § 374)


O que nada surpreende
nem na física, nem na política
ou na lógica. Sem que tal implique
qualquer queda no relativismo. De facto,
toda a dedução parte de um núcleo variável
de premissas, a política destitui as conclusões
apenas derivadas de opções metafísicas - e exige
o acordo num terreno comum de razoabilidade -,
e a física assenta os seus fundamentos num princípio
de indeterminação o que apela à observação, experiência
e cálculo de probabilidade. De qualquer modo, nada disto
nos precipita no relativismo porque o 'homem colectivo'
selecciona as explicações teóricas mais elegantes e
mais económicas, de postulados independentes,
reconhece a vantagem da cooperação
sobre a da exploração, e sabe-se
incluído num mundo a que
deve a sua existência.

setembro 27, 2009

No horizonte do infinito. — Deixamos a terra, subimos a bordo! Destruímos a ponte atrás de nós, melhor destruímos a terra atrás de nós. E agora, barquinho, toma cuidado! Dos teus lados está o oceano; é verdade que nem sempre brame; a sua toalha estende-se às vezes como seda e ouro, um sonho de bondade. Mas, virão as horas em que reconhecerás que ele é infinito e que não existe nada que seja mais terrível do que o infinito. Ah! pobre pássaro, que te sentias livre e que esbarras agora com as grades desta gaiola! Desgraçado de ti se fores dominado pela nostalgia da terra, como se lá em baixo tivesse havido mais liberdade,... agora que deixou de haver «terra»!

(Gaia Ciência, Livro III, § 124)

setembro 26, 2009


Roy Lichtenstein in Modus Vivendi

PARA NOVOS MARES


Para lá — quero eu ir; e em mim
E nos meus pulsos confio.
Aberto o mar, para o azul
Vara de Génova o meu navio.

Tudo novo e mais novo aos olhos brilha,
Por sobre Espaço e Tempo o Meio-Dia dorme —:
Só o teu olhar, ó Infinidade!,
Olha pra mim, enorme!


Poema de Nietzsche
Tradução de Paulo Quintela

setembro 25, 2009

Nunca vi o filme India Song
de Margueritte Duras.

Pela estranheza e impressão
que causa nalguns espectadores
fico com grande curiosidade
de o ver...

Como poderei?
Em que grande ecrã vai?


Contudo, adivinho,
causa a impressão
que me deixou
o seu livro
Verão 80


«Disse para comigo
que se continuava a escrever sobre
o corpo morto do mundo e,
do mesmo modo
sobre o corpo morto do amor.


Que era nos estados de ausência
que o escrito se engolfava
para não substituir nada do que
tinha sido vivido
ou suposto tê-lo sido,

mas para ali consignar
o deserto por ele deixado.»


(Marguerite Duras, Verão 80)



Sempre em nossa casa. — Um dia, tendo alcançado o nosso fim, só com orgulho falaremos das longas peregrinações que fomos obrigados a fazer. Mas na realidade, não nos tínhamos apercebido da viagem. Se chegámos tão longe foi precisamente porque em todos os lugares nos parecia estarmos em nossa casa.

(Gaia Ciência, Livro III, § 253)

setembro 24, 2009

Mais vale dever. — «Mais vale dever do que pagar com
uma moeda que não traz a nossa efígie!»
assim o quer a nossa soberania.

(Gaia Ciência, Livro III, § 252)

setembro 23, 2009

Nobreza e vulgaridade. — Aos olhos das naturezas vulgares os sentimentos nobres e generosos parecem faltos de pertinência, por consequência de verosimilhança em primeiro lugar; ( ) Reconhece-se a natureza vulgar porque nunca perde de vista o seu proveito, pelo facto desta obsessão do objectivo, do lucro, ser nela mais forte do que o mais violento instinto: não se deixar arrastar pelo impulso desarrazoável das acções intempestivas: eis o que lhe serve de sageza e de dignidade. ( ) O gosto das naturezas superiores prende-se a coisas excepcionais, a coisas que deixam fria a maior parte dos outros homens e não parece ter nenhuma atracção: a natureza superior mede os valores por uma escala pessoal. ( )

(Gaia Ciência, Livro I, § 3)

setembro 22, 2009

"Matéria e Memória" ou
"Alta Velocidade à Meia- Noite"



CANAIS FERROVIÁRIOS

O reflexo aqui é o ponto estável
num mundo percorrido; a imagem
exausta na lívida ou na escura noite
em que no teu rosto havia a densidade
dos vapores que eram o opaco. Regresso
a esse ciclo, ao vidro; são duas noites vivas e cindidas,
laterais. A, do lado, de águas que eram espaço
negro, e negras, a esfera absoluta. Imaginar?
Do outro lado, de uma ou de outra noite, o rebordo
das luzes, entre clarões. Seria
essa recta ou o infindável? Vou neste afastamento
agora entre o metálico, a porcelana, o vidro.

Nesta soturna câmara são punidos
presença, luzes, fogos nus. De fora dos meus olhos
ou no interior do mundo que Hegel me dissera ser dos olhos,
sendo por sua vez os olhos o precipício
para a alma, e alma exactamente só no mundo e não algures.

Só tu depois do espaço e do início,
na escrita deixaste-me o teu rosto, porém cercado de ferragens
e mais móvel do que o meu. Que vidro te cobria
que sem moveres o corpo, este e o rosto diminuíram
lentamente entre hastes e os cais ferroviários.
Não te perdi, só a distância assim aumenta entre dois corpos
e o tempo da memória oculta imagens.

Neste labor nocturno em que vejo
sobre campos de cereais o opalino
e contra o foco forte incandescente, a corrupção das vinhas,
noite absoluta. Tão coesa que confunde mesmo a da memória,
noite do rio, noite, o não saber.
A meio deste sítio transformável
em zonas de sentido e zonas nulas,
em faixas metalúrgicas e dúvidas, nestas imagens mistas,
pois novamente a água oscila no jarro biselado.

Só depois do extenso e tempo, o discurso inverte
estas propostas: uma cancela branca,
o quer que se ilumine nessa dispersa esfera (ainda) dos campos.
Na retina, imagem pronta
para o próximo ponto de fusão, para que não se perca nunca
sendo imagem, a tua boca chegada a um lugar distante
é a mais confusa boca e permanente.


fiama hasse pais brandão


«À medida que o meu horizonte se alarga,
as imagens que me cercam parecem desenhar-se
sobre um fundo mais uniforme e tornarem-se
indiferentes para mim.

Quanto mais contraio esse horizonte,
tanto mais os objectos que ele circunscreve
se escalonam distintamente de acordo com
a maior ou menor facilidade do meu corpo
para tocá-los e movê-los.

Eles devolvem, portanto, ao meu corpo,
como faria um espelho, a sua influência eventual;
ordenam-se conforme os poderes crescentes
ou decrescentes do meu corpo.

Os objectos que cercam o meu corpo
reflectem a acção possível do meu corpo sobre eles



[Assim sendo], o que [isto] significa [é] que
a minha percepção [do mundo] traça precisamente
no conjunto das imagens, à maneira de uma sombra
ou de um reflexo, as acções virtuais ou possíveis
do meu corpo [ ].

Donde, provisoriamente, estas duas definições:
Chamo de matéria o conjunto das imagens,
e de percepção da matéria, essas mesmas
imagens relacionadas à acção possível
de uma certa imagem determinada,
o meu corpo.

Henri Bergson, Matéria e Memória,
Livraria Martins Fontes, S. Paulo, 1990, p. 12-13.

setembro 21, 2009



O SEXTO SENTIDO

Estamos aqui
Em estado de liberdade
Condicionada pela enorme filáucia do próximo
Que um poeta desconhecido confirmou
Quando disse:
O sexo existe
Vem da palavra six
Igual a sexto sentido
Que é feminino


E acresecentou:
A maçã
É para ser comida


Ana Hatherly, A neo-Penélope,
&etc, Lisboa, 2007

setembro 20, 2009


Jean Serge Seiler, "Le fleuve de la vie"

«O homem que vive entre a terra e o ar
e que é feito de água
vive prisioneiro como o rio,
que tem terra por baixo e ar por cima.

O rio é como o homem.»


Mercè Rodoreda, A Morte e a Primavera,
Lisboa, Relógio d´Água, 1992, p. 83

setembro 19, 2009


«eu não estou em sítio algum… mas por ter sido,
alguma coisa resta… numa pedra da floresta
há ainda um sinal de mim… não estou
em sítio algum mas nalgum sítio
alguma coisa ficou de mim…»

Mercè Rodoreda, A Morte e a Primavera,
Lisboa, Relógio d´Água, 1992, p. 155

setembro 18, 2009

Ainda a propósito do belo pensamento de Schopenhauer
subscrito pelo blog Direito e Avesso, lembro
este impressivo enunciado de Leibniz
do seu Discurso de Metafísica:

«Cada substância singular exprime todo o universo à sua maneira
e ( ) na sua noção estão compreendidos todos os seus

acontecimentos, com todas as suas circunstâncias
e toda a sequência das coisas exteriores.» (§ IX)

ou, nas palavras da escritora catalã,
Mercê Rodoreda, em A Morte e a Primavera, p.149

«… e cravei o ferro à altura do meu coração e a minha vida
ficou fechada. E eu posso começar a contar a minha vida
por onde quiser, posso-a contar de uma forma diferente…
mas faça o que fizer a minha vida ficou fechada…
não posso mudar nada da minha vida.

A morte fugiu pelo coração e
quando já não tinha a morte
dentro de mim,
morri…»

:))

setembro 17, 2009

Contra o remorso. — O pensador vê nas suas próprias acções, pesquisas e perguntas destinadas a dar-lhe este ou aquele esclarecimento: o êxito, o fracasso, ou, pior, sentir remorsos, deixa isso aos que agem sob uma ordem e que esperam a varada, se o gracioso senhor não se mostrar satisfeito com o resultado.

(Gaia Ciência, Livro I, § 41)

setembro 16, 2009


Muito bela a epígrafe
escolhida pela Maria Josefa
para o seu blog Direito e Avesso

«A vida pode ser comparada a um bordado
que no começo da vida vemos pelo lado direito
e, no final, pelo avesso. O avesso não é tão bonito,
mas é mais esclarecedor, pois deixa ver como são dados os pontos.»

A. Schopenhauer

setembro 15, 2009

A consciência intelectual. — Nunca mais acabo de refazer a experiência e de recalcitrar contra ela, não posso acreditar no facto, mau-grado a sua evidência; falta consciência intelectual à maior parte das pessoas; pareceu-me até muitas vezes que quando a possuímos, se está tão só no deserto como na cidade mais povoada. ( ) Quero dizer isto: que a maior parte das pessoas não acham desprezível acreditar nisto ou naquilo e agir de acordo com isso sem ter pesado o pró e o contra, sem ter tomado consciência profunda das suas supremas razões de agir, sem mesmo se ter incomodado a inquirir essas razões; ( ) Mas encontrar-se plantado no meio desta rerum concordia discors, desta maravilhosa incerteza, desta multiplicidade da vida, e não interrogar, não tremer com o desejo e a voluptuosidade de se interrogar, de nem sequer odiar aquele que o faz, talvez troçar disso até ficar doente, eis o que eu acho desprezível, e é esse desprezo que procuro em primeiro lugar em cada um de nós: não sei que loucura me persuade que qualquer homem, sendo homem, a possui. É a minha maneira de ser injusto.

(Gaia Ciência, Livro I, § 2)

setembro 14, 2009

Amizade estelar. — Éramos dois amigos, somos dois estranhos. Mas isso é realmente assim: não iremos procurar escondê-lo ou calá-lo como se tivéssemos de corar. Somos dois navios cada um dos quais com o seu objectivo e a sua rota particular; ( ) esses corajosos barcos estavam lá tão tranquilos, debaixo do mesmo sol, no mesmo porto, que se teria acreditado que tinham alcançado o objectivo, que tinham tido o mesmo objectivo. Mas a omnipotência das nossas tarefas separou-nos em seguida, empurrados para mares diferentes, debaixo de outros sóis, e talvez nunca mais nos voltemos a ver: mares diferentes, sóis diversos nos mudaram! Era preciso que nos tornássemos estranhos um ao outro: era a lei que pesava sobre nós: é precisamente por isso que nos devemos mais respeito! ( ) Existe provávelmente uma formidável trajectória, uma pista invisível, uma órbita estelar, sobre a qual os nossos caminhos e os nossos objectivos diferentes estão inscritos como pequenas etapas;... elevemo-nos até este pensamento. Mas a nossa vida é demasiado curta e a nossa vista demasiado fraca para que possamos ser amigos, a não ser no sentido em que o permite esta sublime possibilidade... Acreditemos portanto na nossa amizade estelar, mesmo se tivermos de ser inimigos na terra.

(Gaia Ciência, Livro IV, § 279)

setembro 12, 2009

No Sul

( )

Razão! Ó razão importuna!
Levas-nos muito depressa ao nosso fim.
Mas ao voar aprendi o meu limite...
Já sinto coragem, e sangue, e novas seivas
Para uma vida nova e para novo jogo...

Pensar sózinho, sim, é a sabedoria,
Mas cantar sózinho... seria estúpido!
Ouvi pois uma canção em vossa honra,
E fazei silêncio em redor,
Pássaros maldosos.

( )


(Excerto do poema, de Nietzsche)

Gentil, a Sol, do Branco no Branco, premiou-me com a distinção do mérito do Vale a pena ficar de olho neste blog, que me honra e anima por o meu ser um simples blog de leituras. Pelo regulamento, deveria retribuir nomeando outros dez blogs a premiar, mas a verdade é que estou com dificuldade em fazê-lo porque quase não conheço blogs nenhuns... Já me comprometi a eliminar esta ignorância. Em todo o caso, gostaria de substituir aquela obrigação do regulamento e mencionar, em alternativa, dez ou doze escritores ou poetas que só depois de ter ingressado neste universo da net vim a conhecer pela primeira vez ou a alargar o conhecimento. Ei-los, com o meu obrigado ao convívio e estímulo que os amigos da net desde há dez anos me proporcionam:



  • Clarice Lispector
    Eugénio de Andrade
    Amin Maalouf
    Emily Dickinson
    Maria Gabriela Llansol
    Michel Tournier
    António Ramos Rosa
    Fiama Hasse Paes Brandão
    Franz Kafka
    Thomas Mann
    Fiodor Dostoiévski
    Jorge Luís Borges