setembro 15, 2009

A consciência intelectual. — Nunca mais acabo de refazer a experiência e de recalcitrar contra ela, não posso acreditar no facto, mau-grado a sua evidência; falta consciência intelectual à maior parte das pessoas; pareceu-me até muitas vezes que quando a possuímos, se está tão só no deserto como na cidade mais povoada. ( ) Quero dizer isto: que a maior parte das pessoas não acham desprezível acreditar nisto ou naquilo e agir de acordo com isso sem ter pesado o pró e o contra, sem ter tomado consciência profunda das suas supremas razões de agir, sem mesmo se ter incomodado a inquirir essas razões; ( ) Mas encontrar-se plantado no meio desta rerum concordia discors, desta maravilhosa incerteza, desta multiplicidade da vida, e não interrogar, não tremer com o desejo e a voluptuosidade de se interrogar, de nem sequer odiar aquele que o faz, talvez troçar disso até ficar doente, eis o que eu acho desprezível, e é esse desprezo que procuro em primeiro lugar em cada um de nós: não sei que loucura me persuade que qualquer homem, sendo homem, a possui. É a minha maneira de ser injusto.

(Gaia Ciência, Livro I, § 2)

2 comentários:

Unknown disse...

Texto fantástico.
Eu só discordo porque não acho "desprezível" o estar-se «plantado no meio desta rerum concordia discors», as coisas são como são, eu olho para as pessoas como para os outros fenómenos do Universo, não tento criticar, tento compreender. Mas, por outro lado, fascinam-me as pessoas que não se «plantam» e são capazes de pensamento autónomo.

Você é um pensador com alto sentido de oportunidade!... neste texto e na referência à questão da «realidade» no comentário no blogue do Peter - é que ando a perder noites a pensar no conceito de «realidade», que é uma questão importante na estrutura dum texto que ando a preparar para apresentar a teoria da Evanescência; sempre quero ver se vou conseguir tocar o assunto num texto destinado à comunidade científica sem ser logo tratado como um louco perigoso.

vbm disse...

:) Bom, não é complicado ser-se 'filósofo'... na net! Na profundidade, de onde flua um pensamento coerente, é que é mais difícil :)

O texto de Nietzsche, se o entendo, rende homenagem aos que fazem da razão de ser, uma razão de viver, desprezando, mesmo que com alguma injustiça, os que se limitam a existir sem a vontade de agir em conformidade com as razões de ser.

Quanto ao Peter, a noção de narrativa científica por muito que se adeque à explicação da realidade, não deixa de ser-lhe imanente; pelo que, no fundo, é a própria realidade que implica o que a explica!