dezembro 31, 2014

DESTE  OUTONO

Novembro, som absoluto,
com as suas sílabas suaves,
as vogais pairando na aragem,
e na luz lenta dourada outros
sons soltos consoantes.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.715

dezembro 29, 2014

DOS  NOMES

Nomeamos os nomes e nunca
as criaturas ou as coisas.
Essas recebem apenas o eco.
Todavia tornam-se únicas e são
vistas no seu próprio tempo.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.715

dezembro 27, 2014

DA  VOZ  DAS  COISAS

Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.717

dezembro 25, 2014

QUINTA-FEIRA,  ÁS  TRÊS  HORAS  DA  TARDE

Oiço o amola facas e tesouras
com a sua flauta no concerto dos países,
a sua pedra de afiar, na arqueologia do mundo,
o seu lugar na esquina da minha rua,
o seu tempo nesta hora e no milénio.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.724

dezembro 23, 2014

DO  RAIO  DE  SOL

Raio de Sol na ombreira da porta,
na trave da cadeira, vindo da gelosia,
peço-te para amanhã voltares
mais arqueado pela esfericidade da Terra,
um raio não tão decididamente recto
cravado no meu tórax côncavo,
mas no meu coração curvo como um globo.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.724

dezembro 22, 2014

DO  AMOR  III

Se alguém descrevesse
o meu rosto, pálpebra
a pálpebra, aleta a aleta
do nariz, a curva
de lábio a lábio,
a fronte agora, a face depois
eu poderia desdenhar
da solitária alheada
imagem num espelho


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.713-14.

dezembro 21, 2014

Madeleine Peyroux - Smile (Rounder Records 2006)


DOS  PINHAIS

Ondulando, os pinhais
quiseram ser o mar.
Murmurando, quiseram ser
o vento. Mas somente
no meu ouvido eram vento,
nos meus olhos, mar.

E hoje, ali na encosta,
pinhais bordejam
o mar, sustêm o vento.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.730

dezembro 19, 2014

DA  ÁRVORE  NUMA  RUA  DE  LISBOA

Esta árvore só, insana,
chamou a si todos os pássaros
da rua. E aceita, assim,
mil olhos que, no crepúsculo
da tarde, se fecham,
mil olhos, abertos
no crepúsculo da manhã.

                                       Av. da República, 1996

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.725-26

dezembro 17, 2014













DAS LÁGRIMAS

A pequeníssima aranha assusta
a criança que eu estava a olhar,
e chora. «Meu duplo filho,
não temas a intensa labuta
da caçadora de insectos.
Ela estende uma rede, tão frágil
que a podes romper com o menor dedo.
A menos que, antes do gesto, encontres
a beleza do tecido luminoso,
quando a aranha ofende o Sol
roubando-lhe alguns raios,
ou a beleza da água que ela retém,
como diamantes sem preço,
rosácea de lágrimas.»

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.726

dezembro 15, 2014


DO AMOR I

A névoa disse à árvore:
tu, cedro, perdes a tua forma,
se eu te abraço. Disse
o cedro: o Sol ama-me mais,
toma o meu corpo inteiro
no seu corpo e dá-lhe
ser, figura.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.727

dezembro 13, 2014

DA PEDRA

A pedra crê: esta
esta criança é de pedra.
Não crê que veio do ventre
e que um cordão de sangue
a liga à Natureza.

Diz a criança um dia:
aqui estamos no mundo,
a pedra é como eu.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.731

dezembro 11, 2014

VERO VERSO

Percorri os meus poemas e vi
não ter o verso consubstancial
para falar de ti

A palavra real para tornar
o verso vero e equidistante
de ser e nomear


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.432

dezembro 08, 2014

DO AMOR IV


Esta vista do mar, solitariamente,
dói-me. Apenas dois mares,
dois sóis, duas luas
me dariam  riso e bálsamo.
A arte da Natureza pede
o amor em dois olhares.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.711

dezembro 06, 2014

DE UMA RUA CITADINA

Folhas secas de plátano
cobrem esta rua. Só assim
me é possível aceitar o caminho
entre as paredes e as casas.

Pisando o pavimento de folhas,
estou salva dos calafrios do medo,
entre janelas que soluçam e se calam
e portas que aprisionam os corpos.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.716

dezembro 04, 2014

Editorial do 'Jornal de Angola' sobre o Acordo Ortográfico

Notável. E que lição para muitos de cá….

Património em risco

"Osministros da CPLP estiveram reunidos em Lisboa, na nova sede da organização, e em cima da mesa esteve de novo a questão do Acordo Ortográfico que Angola e Moçambique ainda não ratificaram. Peritos dos Estados membros vão continuar a discussão do tema na próxima reunião de Luanda.

A Língua Portuguesa é património de todos os povos que a falam e neste ponto estamos todos de acordo. É pertença de angolanos, portugueses, macaenses, goeses ou brasileiros. E nenhum país tem mais direitos ou prerrogativas só porque possui mais falantes ou uma indústria editorial mais pujante.

Uma velha tipografia manual em Goa pode ser tão preciosa para a Língua
Portuguesa como a mais importante empresa editorial do Brasil, de Portugal ou de Angola. O importante é que todos respeitem as diferenças e que ninguém ouse impor regras só porque o difícil comércio das palavras assim o exige.

Há coisas na vida que não podem ser submetidas aos negócios, por mais
respeitáveis que sejam, ou às "leis do mercado". Os afectos não são
transaccionáveis. E a língua que veicula esses afectos, muito menos.

Provavelmente foi por ter esta consciência que Fernando Pessoa
confessou que a sua pátria era a Língua Portuguesa.

Pedro Paixão Franco, José de Fontes Pereira, Silvério Ferreira e outros
intelectuais angolenses da última metade do Século XIX também juraram amor eterno à Língua Portuguesa e trataram-na em conformidade com esse sentimento nos seus textos. Os intelectuais que se seguiram, sobretudo os que lançaram o grito "Vamos Descobrir Angola", deram-lhe uma roupagem belíssima, um ritmo singular, uma dimensão única.

Eles promoveram a cultura angolana como ninguém. E o veículo utilizado foi o português. Queremos continuar esse percurso e desejamos que os outros falantes da Língua Portuguesa respeitem as nossas especificidades. Escrevemos à nossa maneira, falamos com o nosso sotaque, desintegramos as regras à medida das nossas vivências, introduzimos no discurso as palavras que bebemos no leite das nossas Línguas Nacionais. Sabemos que somos falantes de uma língua que tem o Latim como matriz. Mas mesmo na origem existiu a via erudita e a via popular. Do "português tabeliónico" aos nossos dias, milhões de seres humanos moldaram a língua em África, na Ásia, nas Américas.

Intelectuais de todas as épocas cuidaram dela com o mesmo desvelo que se tratam as preciosidades.

Queremos a Língua Portuguesa que brota da gramática e da sua matriz latina. Os jornalistas da Imprensa conhecem melhor do que ninguém esta realidade: quem fala, não pensa na gramática nem quer saber de regras ou de matrizes. Quem fala quer ser compreendido. Por isso, quando fazemos uma entrevista, por razões éticas mas também técnicas, somos obrigados a fazer a conversão, o câmbio, da linguagem coloquial para a linguagem jornalística escrita. É certo que muitos se esquecem deste aspecto, mas fazem mal. Numa entrevista até é preciso levar aos destinatários particularidades da linguagem gestual do entrevistado.

Ninguém mais do que os jornalistas gostava que a Língua Portuguesa não
tivesse acentos ou consoantes mudas.

O nosso trabalho ficava muito facilitado se pudéssemos construir a mensagem informativa com base no português falado ou pronunciado. Mas se alguma vez isso acontecer, estamos a destruir essa preciosidade que herdámos inteira e sem mácula. Nestas coisas não pode haver facilidades e muito menos negócios. E também não podemos demagogicamente descer ao nível dos que não dominam correctamente o português.

Neste aspecto, como em tudo na vida, os que sabem mais têm o dever sagrado de passar a sua sabedoria para os que sabem menos.

Nunca descer ao seu nível. Porque é batota!

Na verdade nunca estarão a esse nível e vão sempre aproveitar-se social e economicamente por saberem mais. O Prémio Nobel da Literatura, Dário Fo, tem um texto fabuloso sobre este tema e que representou com a sua trupe em fábricas, escolas, ruas e praças. O que ele defende é muito simples: o patrão é patrão porque sabe mais palavras do que o operário!

Os falantes da Língua Portuguesa que sabem menos, têm de ser ajudados a saber mais. E quando souberem o suficiente vão escrever correctamente em português. Falar é outra coisa. O português falado em Angola tem características específicas e varia de província para província. Tem uma beleza única e uma riqueza inestimável para os angolanos mas também para todos os falantes.

Tal como o português que é falado no Alentejo, em Salvador da Baía ou em Inhambane tem características únicas. Todos devemos preservar essas diferenças e dá-las a conhecer no espaço da CPLP. A escrita é "contaminada" pela linguagem coloquial, mas as regras gramaticais, não. Se o étimo latino impõe uma grafia, não é aceitável que, através de um qualquer acordo, ela seja simplesmente ignorada. Nada o justifica. Se queremos que o português seja uma língua de trabalho na ONU, devemos, antes do mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das palavras."

Quando escrevo, os meus mails são redigidos em profundo desacordo e intencional desrespeito pelo novo Acordo Ortográfico!

novembro 14, 2014

«Cada sentimento que a vida diária apreende
de um modo difícil ou astucioso
é eterno. [ ]

Não procuro fugir às referências
mais do que o que necessito
para tornar legítimos
os contornos duvidosos. [ ]

Cada consciência, ao atingir uma grande fracção
de factos ou, por vezes, de pontos siderais,
deixa de ser súbdita do universo.»


Fiama Hasse Pais Brandão, F de Fiama,
Ed. Teorema, Lisboa, 1986, p.71

novembro 07, 2014
















A fala final de Sócrates a Teeteto,
sumariando o que lhe terá ensinado:

«Se daqui em diante tentares conceber outros pensamentos,
e os deres à luz, Teeteto, serão melhores graças a esta discussão;
e se te conservares estéril, tornar-te-ás menos impertinente para
aqueles com quem conversares, e mais compreensivo,
porque serás bastantes sensato para não supores
que sabes o que desconheces.»

Platão, Teeteto, Trad, A. Lobo Vilela,
Edições da «Seara Nova», Lisboa, 1947, p.148

novembro 06, 2014

novembro 05, 2014

 
 

Passagem do Outono entre formas
com o interior dourado. Eu também
na borda do rio observo o gradeamento
gasto, o insecto da ferrugem a roê-
lo. Mais do que ausente o mundo
dos insectos é oculto, fabuloso e
mortal. Os olhos são feitos de
centelhas. O Outono dá-me pate-
ticamente um tom de cobre.




Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.430

novembro 04, 2014

[Economistas]*

Habituados a decifrar a faixa de nuvens
sobre a serra de Sintra no  horizonte,
ao fim da tarde falávamos
como arúspices. As nossas palavras
seriam no dia seguinte os próprios ventos.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.442


(*) Título meu.

setembro 24, 2014

setembro 02, 2014

(continuação 2)

A  FOLHA  E  A  SOMBRA  DELA

      III

Mas na verdade não é bem assim.

No instante em que as duas se encontram,
a sombra morre sem mais consequências.

A folha porém, despojada da sombra,
levará muito mais tempo a morrer
e morrendo dissolver-se-á na terra,
servirá de nutriente a outras árvores,
que por sua vez darão as suas próprias folhas
que terão as suas próprias sombras
e que cada ano os ventos do Outono
pintarão de amarelo e soprarão para longe
com a sombra a persegui-las até ao reencontro

– deixando acaso uma folha solitária
com que esta fabula se repita e se renove
até ao fim dos tempos.


   a.m. pires cabral, gaveta de fundo,
   Lisboa, Tinta da China, 2013, p. 65

setembro 01, 2014

 (continuação 1)


A  FOLHA  E  A  SOMBRA  DELA

      II

Folha e sombra não são, é evidente,
feitas da mesma matéria, Mesmo assim
existe algo que as liga, uma espécie
de instável mas tenaz cordão umbilical.

Senão, vejamos.

Para maior facilidade, imaginemos
que está sol e faz vento,
e que nesse vento chega por fim a hora
de cair a folha de que vimos falando.

Observe-se: no momento em que a folha
se desprende e vem, revolvendo-se no ar
caprichosamente, em direcção ao solo

– a sombra faz exactamente a mesma coisa:
desprende-se também da sombra da árvore
e faz o seu caminho, repetindo ao rés-da-terra
os gestos e solavancos da folha no ar

– e converge para ela com sofreguidão,
como quem está há longo tempo
separado de si mesmo
e anseia por reunir-se.

E o encontro dá-se no preciso instante
em que a folha pousa no chão
e como que absorve a sua sombra,
reunindo-se as duas na completa
e decisiva identidade final
a que ambas aspiravam.

Ou talvez melhor: reavendo a folha
uma parte de si que andava ausente.

Parece isto uma coisa de Platão,
não parece?

   a.m. pires cabral, gaveta de fundo,
   Lisboa, Tinta da China, 2013, p. 63-4

agosto 31, 2014

Mas a sombra existir e não existir,
o que depende não só da matriz
mas de «haver sol ou não haver»,

continua a ser explicado pelo poeta,
nas fases II e III do poema
A folha e a sombra dela


(continua)

agosto 30, 2014

A  FOLHA  E  A  SOMBRA  DELA

Para maior facilidade de compreensão,
tomemos um exemplo: uma árvore
a que o Outono sucessivamente
arrebatou todas as folhas – menos uma.

Essa folha poupada pelo Outono
parece solitária na nudez da árvore.
Porém, se o sol abrir, logo projecta
uma sombra no chão.

Reparem, agora que justamente
acaba de abrir o sol:
a sombra da árvore, e algures no meio
da sombra dos ramos em desordem
a sombra da tal folha solitária.
É insofismável: ela está lá, existe.

Digamos, pois, que por ter umasombra,
a folha não está inteiramente só:
ela tem, cá em baixo, uma réplica exacta.
(Bem entendido: uma réplica incolor,
incorpórea. Mas deixemos isso agora,
que podia levar-nos muito longe.)

Para já, digamos apenas que, embora
dependendo da folha para existir,
a sombra é exterior a ela.
Uma espécie de alter ego à distância,
mas também algo que uma simples nuvem
que oculte o sol ocultará também.

Ou seja, a sombra existe e não existe:
isso não depende apenas de ter uma matriz,
mas também de haver sol ou não haver.

a.m. pires cabral, gaveta de fundo,
Lisboa, Tinta da China, 2013, p. 61-2

agosto 29, 2014

FECHOU  A  ESCOLA  EM  GRIJÓ

   Ao Frederico Amaral Neves

Dantes ouviam-se as crianças a caminho da escola
e eram como pássaros de som nas manhãs de Grijó.
Não eram muitas, mas as vozes joviais
davam sinal de que a aldeia resistia,
continha à distância o deserto que a ronda
como a alcateia ronda uma rês tresmalhada.


Agora as crianças, todas as manhãs,
são acondicionadas como mercadorias
numa viatura com vocação de furgoneta.
Lembram judeus amontoados
em vagões jota a caminho de algures.
Vão aprender em terra estranha o que os seus pais
e os pais dos seus pais aprenderam em Grijó.


a.m. pires cabral, gaveta de fundo,
Lisboa, Tinta da China, 2013, p. 33

agosto 28, 2014

SEARA

Qualquer lugar onde tenha havido trigo
guarda sempre dele algum sinal
que não deixa esquecer a antiga seara

— aquela que ondulava aos ventos de Maio
igual a um rebanho verde subindo encosta acima,
sem pastor nem cães para o guiar.
(Quem precisa de guias quando é Maio?)

Talvez se trate de uma questão de cheiro.
Ou de algum outro sentido
que ainda está por identificar.
Ou de uma espécie ignorada de memória
que se agarra ao lugar e nele persiste.

Seja o que for,
anda ainda no ar a presença de espigas
mesmo quando o desuso as expulsou
e ervas bravias lhes tomaram o lugar

– e por isso tanto nos magoa
toda a terra de que lavoura alguma
já não extrai o pão.

a.m. pires cabral, gaveta de fundo,
Lisboa, Tinta da China, 2013, p. 16






























Só conhecia de nome, a.m. pires cabral.
Mas folheando a [i]gaveta do fundo[/i]
fiquei encantado com a expressiva simplicidade
do que o poeta nos faz ver.

Destaco três poemas,
que me lembram como a agricultura
e a educação deste país desgovernado,
se desterritorializa e despovoa
num ensombramento progressivo
de «cinzas, pó e nada»!

agosto 08, 2014

agosto 05, 2014

O sistema (monetário) tem de ser mudado, não pode continuar a anarquia de o endividamento automaticamente equivaler a emissão de moeda. É verdade que a economia de um país não é nunca um reflexo mimético da economia de uma família - nem esta uma mimese da de um país como ensaiou o grupo Espírito  Santo! - mas, justamente por serem abordagens distintas importa ancorar o crédito e o endividamento a algum rigor que imponha a exigência de uma preferência por aplicações não apenas individual mas também colectivamente rentáveis! Antigamente, a sóbria e difícil extracção de ouro, disciplinava preços, valorizava poupanças e requeria boas taxas de retorno de investimento para avançar empréstimos.  Depois, a ligação do ouro ao dólar, nos acordos de Bretton Woods, prosseguiu mais aliviadamente essa disciplina. A partir da 2ª crise de petróleo de 1979, e dado o desgoverno em que o dólar já andava com a administração Nixon e a guerra do Vietnam, tudo se desregulou e o único critério de emprestar dinheiro passou a ser a especialidade dos investimentos puramente inflacionários em bolhas especulativas que arruínam países e populações. Ora, é bom que as respectivas explosões de bolhas passem também a rebentar como verdadeiras implosões nas mãos manipuladoras das próprias especulações, para que os bancos e os mutuantes aprendam a distinguir quem trabalha e produz a riqueza de um povo, de quem somente vigariza os incautos e aparvalhados zés ninguém!
"O bom gosto costuma ser sempre
um ante-gosto das palavras mais modestas.»

Nietzsche, in Para Além do Bem e do Mal
(«Jenseits von Gut und Böse»), trad.
de Hermann Pflüger, Guimarães Editores,
Lisboa, 1958, aforismo 186, p. 91

julho 27, 2014


Reciprocity

There are catalogues of catalogues.
There are poems about poems.
There are plays about actors played by actors.
Letters due to letters.
Words used to clarify words.
Brains occupied with studying brains.
There are griefs as infectious as laughter.
Papers emerging from waste papers.
Seen glances.
Conditions conditioned by the conditional.
Large rivers with major contributions from small ones.
Forests grown over and above by forests.
Machines designed to make machines.
Dreams that wake us suddenly from dreams.
Health needed for regaining health.
Stairs leading as much up as down.
Glasses for finding glasses.
Inspiration born of expiration.
And even if only from time to time
hatred of hatred.
All in all,
ignorance of ignorance
and hands employed to wash hands.


Wislawa Szymborska
(translated from the Polish by Clare Cavanagh)
in The New Yorker, Feb. 3, 2014

 

junho 26, 2014

















«Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos. E Eu pedirei ao Pai, que vos dará outro Paráclito, para estar sempre convosco. Ele é o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não O vê nem O conhece, mas que vós conheceis, porque habita convosco e está em vós. Não vos deixarei orfãos: voltarei para junto de vós. Daqui a pouco o mundo já não Me verá, mas vós ver-Me-eis, porque Eu vivo e vós vivereis. Nesse dia reconhecereis que Eu estou no Pai e que vós estais em Mim e Eu em vós. Se alguém aceita os meus mandamentos e os cumpre, esse realmente Me ama. E quem Me ama será amado por meu Pai e Eu amá-lo-ei e manifestar-Me-ei a ele.» (Jo 14, 15-21)


junho 21, 2014





 

MAP

Flat as the table
It’s placed on.
Nothing moves beneath it
and it seeks no outlet.
Above – my human breath
creates no stirring air
and leaves its total surface
undisturbed.

Its plains, valleys are always green,
uplands, mountains are yellow and brown,
while seas, oceans remain a kindly blue
beside the tattered shores.

Everything here is small, near accessible.
I can press volcanoes with my fingertip,
stroke the poles without thick mittens,
I can with a simple glance
encompass every desert
with the river lying just beside it.
A few trees stand for ancient forests,
you couldn’t lose your way among them.

In the east and west,
above and below the equator –
quiet like pins dropping,
and in every black pinprick
people keep on living.
Mass graves and sudden ruins
are out of the picture.

Nations’ borders are barely visible
as if they wavered – to be or not.
I like maps, because they lie.
Because they give no access to the vicious truth.
Because great-heartedly, good-naturedly
they spread before me a world
not of this world.


Wislawa Szymborska, in ‘The New Yorker, April 14, 2014
(translated from the Polish, by Clare Cavanagh)

junho 19, 2014




















As horas que emolduram, com um brando
lavor o doce olhar em que se habita,
hão-de tiranizá-lo, desfeando
o que de sublimarem tinham dita.
O tempo sem descanso leva o verão
ao terrível inverno e os mistura:
a seiva com geada, a folha ao chão,
nudez geral e neve em formusura.
Não destilasse o verão algum proveito,
líquido prisioneiro em vidro posto,
passava co’a beleza o seu efeito:
nem ele nem lembrança de seu gosto.
      No inverno, destilada e só fragrância,
      a flor, perdida a forma, é só substância. 


 


Shakespeare, Sonetos, trad.
Vasco Graça-Moura, Bertrand, 2002, p.21


junho 12, 2014

The closing of american mind



«There is one thing a professor can be absolutely certain of: almost every student entering the university believes, or says he believes, that truth is relative. If this belief is put to the test, one can count on the students' reaction: they will be uncomprehending. That anyone should regard the proposition as not self-evident astonishes them, as though he were calling into question 2 + 2 = 4 . These are things you don't think about. The students' backgrounds are as various as America can provide. Some are religious, some atheists; some are to the Left, some to the Right; some intend to be scientists, some humanists or professionals or businessmen; some are poor, some rich. They are unified only in their relativism and in their allegiance to equality. And the two are related in a moral intention.

The relativity of truth is not a theoretical insight but a moral postulate, the condition of a free society, or so they see it. They have all been equipped with this framework early on, and it is the modern replacement for the inalienable natural rights that used to be the traditional American grounds for a free society. That it is a moral issue for students is revealed by the character of their response when challenged—a combination of disbelief and indignation: "Are you an absolutist?," the only alternative they know, uttered in the same tone as "Are you a monarchist?" or "Do you really believe in witches?" This latter leads into the indignation, for someone who believes in witches might well be a witchhunter or a Salem judge.

The danger they have been taught to fear from absolutism is not error but intolerance. Relativism is necessary to openness; and this is the virtue, the only virtue, which all primary education for more than fifty years has dedicated itself to inculcating. Openness and the relativism that makes it the only plausible stance in the face of various claims to truth and various ways of life and kinds of human beings —is the great insight of our times. The true believer is the real danger.

The study of history and of culture teaches that all the world was mad in the past; men always thought they were right, and that led to wars, persecutions, slavery, xenophobia, racism, and chauvinism. The point is not to correct the mistakes and really be right; rather it is not to think you are right at all.»  

 
Quem conhece?

maio 18, 2014

















«[ ] para a multidão ignara, quem for portador de uma nova sabedoria, passará por inútil, e não por sábio. E quem, na cidade, for julgado melhor do que aqueles que aparentem saber muitas coisas
será tido como indesejável.»

Eurípides, Medeia (292-301)

abril 17, 2014




















«A major change occurred in markets around the turn of this century: most trading [ ] on the stock exchange was done by computers trading with other computers, using certain algorithms. Offers to buy and sell were based not on market research, on informed news about the prospects of [this or that industry or particular company], but rather on extracting information from the pattern of prices and trades, and on whatever other information a computer could absorb and processo n the fly. Offers to buy and sell were held open for a nanosecond. [ ] Of course, the prices that were determined in those nanoseconds were of no relevance to any real decision taking. [ ]

The algorithmic traders claimed that they were making markets more liquid (“deeper”), but it was a liquidity that disappeared when it was needed,when a real disturbance occurred to which the market needed to adjust. The result was that the market began to exhibit unprecedented volatility. [ ]

In fact, there are reasons to believe that flash trading actually makes markets not just more volatile but also less “informative”. Computers attempt to use complex mathematical algorithms to extract whatever information is in the market, in a modern and more sophisticated version of front runnnig, the old-style ilegal activities by which brokers try to use information they glean from those placing orders to enhance their own profits. (negrito, meu)

Of course, market participants know this. If some market researcher discovered that some company was going to do well (had just made a valuable discovery), he might rush, placing a large order. But the computer traders would immediately sense this and try to use his information for their own purpose. Today, of course, the first trader knows the game he’s playing, so he would never place alarge order, but would place a myriad of small orders.   

There´s been an arms race, where those doing the hard work of research try to keep their information away from the algorithms traders, and the algorithms traders try to break their code. One might say it’s just a waste of resources – a fight over the rents associated with early information. But it’s worse than that.

To the extent that the algorithmic traders succeed in outwitting those who do the real research, the returns to research fall; there will be less investment in information, and markets actually will convey less of the information that we care about.»   
 
Joseph Stiglitz, The Price of Inequality,
Penguin Books, London, 2013, pp. 206-8

 

abril 16, 2014

A Bolsa, há duzentos anos atrás!



«Desde a paz de 1815, o Nucingen compreendera aquilo que nós, hoje em dia, não compreendemos: que dinheiro é um poder quando existe em quantidades desproporcionadas. Tinha secretamente ciúmes dos irmãos Rosthschild. Possuía cinco milhões e queria dez! [ ] Resolveu, portanto, pôr em prática uma terceira liquidação!

O grande homem sonhava, então, pagar aos credores com valores fictícios, guardando o dinheiro para si. [ ] O Nucingen podia ter sido alvo de suspeitas, mas usou da maior esperteza: fez com que fosse outro a ficar à frente dessa máquina destinada a desempenhar o papel de Mississipi no sistema de Law.

O que era característico no Nucigen era fazer com que as pessoas hábeis acabassem por servir os seus próprios desígnios sem nada lhes comunicar. Então o Nucingen deixou escapar, perante o du Tillet, a ideia piramidal e vitoriosa da criação de uma empresa por  acções com um capital bastante forte para poder beneficiar os seus accionistas com grandes dividendos durante os primeiros tempos.

Lançada, pela primeira vez, num momento em que abundavam os capitais dos tolos, esta combinação devia provocar uma subida nas acções, e por consequência um benefício para o banqueiro que as emitia. [ ]

Era a infância da arte! Não se fazia sequer intervir a publicidade através desses anúncios gigantescos com que se estimulam as imaginações, enquanto se vai pedindo dinheiro a toda a gente… [ ]

– Enfim, a concorrência nessa espécie de empresas não existia – prosseguiu Bixiou. – [ ] Os belos negócios por acções, como diz o Couture, que tão ingenuamente se divulgam, apoiados por relatórios de peritos (os príncipes da Ciência!), tratavam-se vergonhosamente no silêncio e na sombra da Bolsa. [ ]

Progrediam [ ], com ligeiros murmúrios acerca das vantagens do negócio, ditos de ouvido para ouvido. Só exploravam o paciente, o  accionista, no domicílio, na Bolsa ou em sociedade, através desse rumor habilmente criado e que crescia até ao tutti de uma quota de quatro algarismos…

– No meu entender [– respondeu Couture], o novo método é infinitamente menos pérfido, mais leal, menos assassino que o antigo. A publicidade permite a reflexão e o exame. Se algum accionista é comido, ele foi lá propositadamente, e ninguém lhe vendeu gato por lebre. A indústria…   


– Pronto! Lá vem a indústria!... – interveio Bixiou

– A indústria ganha com isso – continuou Couture, sem ligar importância à interrupção. – Qualquer governo que se mete no comércio e não o deixa livre faz uma asneira que lhe custa caro: chega ao maximum ou ao monopólio. Segundo penso nada está mais de acordo com os princípios da liberdade do comércio que a sociedade por acções! Mexer nisso é querer ficar fiador do capital e dos lucros, o que é estúpido!

Em qualquer negócio os benefícios estão em proporção com os riscos! Que importa ao estado a maneira como se obtém o movimento rotativo do dinheiro, desde que ele esteja em perpétuo movimento? Que importa quem é rico, quem é pobre, se existe sempre a mesma quantidade de ricos colectáveis? [ ] Aliás, [ ], as sociedades por acções [ ] estão em moda no país mais comercial do mundo: a Inglaterra. E lá tudo se contesta! [ ]

– É uma bela cura para os cofres cheios!... – exclamou Bixiou. – Com artimanhas!...

– Ora essa!... – respondeu Couture, inflamado. – [ ] Senhores, confessemos entre nós que as pessoas que protestam são hipócritas desesperadas por não terem nem a ideia para um negócio, nem o poder de a lançar, nem a sensatez de a explorar. A prova não se fará esperar.

Dentro de pouco tempo verão a  aristocracia, as pessoas da corte, as que fazem parte dos ministérios descendo em colunas compactas à especulação, e avançando com as mãos aduncas e ideias mais tortuosas que as nossas, sem terem a nossa superioridade.

Que cabeça é preciso para iniciar um negócio numa época em que a avidez do accionista é igual à do inventor! [ ] Sabeis qual é a moral disto? O nosso tempo não vale mais do que nós próprios! Vivemos numa época de avidez em que ninguém se importa com o valor da coisa, desde que possa ganhar com ela transmitindo-a ao vizinho, e faz-se isso porque a avidez de um accionista que acredita num lucro é igual à do criador que lho propõe!

– É lindo o Couture, uma beleza! – chasqueou Bixiou dirigindo-se a Blondet. – Vai exigir que lhe erijamos uma estátua como a um benfeitor da humanidade.

– Será necessário, apenas, levá-lo a concluir que o dinheiro dos tolos é, por direito divino, o património dos espertos! – exclamou Blondet.

– Meus senhores – continuou Couture –, riamos aqui para compensar a seriedade que vamos manter quando ouvirmos falar dos respeitáveis idiotas que consagram as leis feitas de improviso.

– Ele tem razão! Que época, meus senhores!... – disse Blondet. – Uma época onde desde que o fogo da inteligência surge, se faz com que se extinga rapidamente pela aplicação duma lei circunstancial.


Os legisladores, quase todos provenientes dum pequeno bairro onde estudaram a sociedade através dos jornais, abafam agora o fogo graças à máquina. Quando a máquina rebenta surgem o choro e o ranger de dentes!

Um tempo em que apenas se fazem leis fiscais e penais! A grande definição do que se está passando, querem saber qual é? Já não há religião no estado!

– Ah! – proferiu Bixiou. –Bravo, Blondet! Puseste o dedo na chaga da França! O sistema fiscal conseguiu roubar mais conquistas ao nosso país que os vexames da guerra.

No ministério, onde cumpri sete anos de galés, a par com burgueses, havia um funcionário, homem de talento, que resolvera mudar todo o sistema das finanças…

Ah! Bom!... Despedimo-lo lindamente! A França teve muita sorte. Divertir-se-ia a reconquistar a Europa e nós agimos no interesse da tranquilidade das nações. Dei cabo desse [funcionário] com uma caricatura!»
 

Honoré de Balzac, “A Casa Nucingen” in
A Comédia Humana, VII Volume (Cenas da Vida
da Província), Livraria Civilização,
Lisboa, 1980, pp. 556-60.

 

abril 15, 2014

Progressão geométrica da desigualdade distributiva do rendimento
Pretendo exemplificar aritmeticamente a alteração da desigualdade da distribuição do rendimento no tempo, segundo a diferença que exista nas taxas de crescimento do rendimento disponível nas duas classes da população num país: a classe rica e a classe média, pobre ou remediada.

Seja uma sociedade distinguível em duas classes de rendimento, A e B(=1-A), com taxas de crescimento anual, a e b, repartindo-se a produção anual, e consequente rendimento líquido, pelas ditas classes nas proporções, A/(A+B) e B/(A+B); tomando o rendimento líquido (Y) distribuído pela unidade (Y=1), reportaremos todos os resultados em fracção da unidade; assim, A e (1-A) compõem o rendimento unitário (1=Y).

Podemos imaginar, para ilustração aritmética da evolução que a repartição de rendimento conhecerá no decorrer do tempo, que a situação 0, ponto de partida, seja por exemplo, 20% do rendimento (A=.2) seria obtida por 5% da população activa e o rendimento restante, 80%, (B=.8), seria distribuído por 95% dos activos. Neste estado de repartição, o rendimento médio percebido por cada 1 por cento da classe rica atinge 4 por cento do rendimento total (.2/.05=4), enquanto cada 1 por cento da classe B, equivale a 0.8 por cento do rendimento total (.8/.95=.84211). Assim, o leque de rendimento entre as duas classes é superior a 4.2 vezes (4/.84211=4.24579).

A questão interessante é a de simular a alteração da repartição de partida no decorrer do tempo, segundo a taxa de crescimento médio do produto em dado período e consoante a diferença que ocorra entre a taxa de crescimento do rendimento (produto) da classe A e a da classe B.

Partimos da partição do produto acima, A=.2; B=1-A=.8. Analisamos o resultado ao cabo de um período n, de 30 anos (n=30). Supomos uma taxa, r, de crescimento médio anual do produto Y(=1) de 4.5% (r=.045), que assumirá a grandeza a, para a classe, possidente, A e, a grandeza b, para a classe B de menores rendimentos.

Calculamos quatro casos, dois com a taxa a>r, e outros dois com a taxa a<r, ou seja, com a taxa b>r. (Vide cálculos dos casos 1 a 4, abaixo indicados)

Teremos, assim:

(1)   Y = (1+r)^n = A . (1+a)^n + (1-A) . (1+b)^n
(2)   Y1 = A . (1+a)^n
(3)   Y2 = B . (1+b)^n
(4)   Y = (1+r)^n = Y1 + Y2

Dados:  r = .045; n = 30; A =.2; B = 1-A = .8; Y = 1.045^30 = 3.74532 = Y1 + Y2

Com estes dados, a conclusão é a seguinte:

i)   quando a taxa de crescimento da classe afluente ultrapassa a do crescimento do produto (a>r), a proporção de repartição inicial de 20% e 80%, respectivamente das classes de maiores (Y1) e menores (Y2) rendimento passa a 23% e 77%, com a=5%; e, a 21% e 79%, com a=4.75%.

ii)   quando a taxa de crescimento da classe possidente é inferior à do crescimento do produto (a<r), o que, complementarmente, equivale à taxa (b), a da população de menores rendimentos ser maior que a do crescimento do produto (b>r), a partição entre as classes passa dos iniciais 20% e 80% para 14 e 86%, com b=4.75%; e, a 16% e 84%, com b=4.65%.

Para entender o que vem sucedendo na economia desde o último quartel do século XX, o forista Lark, no tema do “Portugal Falido ou no de Krugman et alter”, p.67, editou alguns artigos de Thomas Pickety, Krugman e Thomas B. Edsall que melhor abordam a evolução da repartição do produto obtido com a combinação dos factores de trabalho e capital, geradores do rendimento total, ou seja, salários e lucros, a contrapartida remuneratória dos produtores, i.e., da população activa, trabalhadores e empresários.

Parece-me algo ousada a conclusão surpreendente de Picketty de que só no período de 60 anos, de 1913 a 1973, é que historicamente sucedeu a taxa de crescimento do rendimento dos detentores de capital (= mercadorias, stocks, equipamentos, edifícios, terra, dinheiro) ter sido inferior à do crescimento do produto, e isso tomando em consideração as duas guerras mundiais com as enormes perdas de capital que ocasionaram, assim como a Grande Depressão de 1929-33, o New-Deal, a inflação monetária, e o poder dos sindicatos. Fora desse período excepcional, sempre as classes possidentes conheceram taxas de crescimento da fortuna bem superiores às das classes dependentes do trabalho assalariado e classe média.

Penso isto exagerado, e só sustentável em causas extraeconómicas, de carácter político e militar. Porque, o facto é os rendimento monopolistas (rendas, juros, direitos de autor e de patentes, etc.), assim como os de natureza de lucros sobre-normais, não podem eternizar-se e  absorver em excesso a normal produtividade dos produtores (trabalhadores independentes, assalariados e empresários).

De qualquer modo, é admirável que finalmente alguém, tal Thomas Picketty, regressa aos clássicos e elege a repartição do produto como o problema genuinamente económico, tal como o fizeram Quesnay, Adam Smith, Ricardo, Malthus e Marx.


Cálculos de repartição do rendimento em 4 casos de taxas de crescimento diferenciadas

Dados:  r = .045; n = 30; A =.2; B = 1-A = .8; Y = 1.045^30 = 3.74532 = Y1 + Y2

1º caso) a = .05 > r

Y1 = .2 x 1.05^30 = .86439
Y2 = Y - Y1 = 2.88093 = .8 x (1+b)^30
b = 3.60116^(1/30) – 1 = 4.363%
Y1 / Y = 23.079%
Y2 / Y = 76.921%

2º caso) a = .0475 > r

Y1 = .2 x 1.0475^30 = .80473
Y2 = Y - Y1 = 2.94059 = .8 x(1+b)^30
b = 3.67574^(1/30) – 1 = 4.435%
Y1 / Y = 21.486%
Y2 / Y = 78.514%

3º caso) b = .0475>r

Y2 = .8 x 1.0475^30 = 3.21893
Y1 = Y – Y2 = .53639 = .2 x (1+a)^30
a = 2.63197^(1/30) – 1 = 3.278%
Y1 / Y = 14.055%
Y2 / Y = 85.945%

4º caso) b = .0465>r

Y2 = .8 x 1.0465^30 = 3.12800
Y1 = Y – Y2 = .61732 = .2 x (1+a)^30
a = 3.08660^(1/30) – 1 = 3.828%
Y1 / Y = 16.482%
Y2 / Y = 83.518%

abril 08, 2014

Às vezes mesmo,
por puro prazer,
inventava reflexões:

se uma pedra cai,
essa pedra existe,
houve uma força que fez com que ela caísse,
um lugar de onde ela caiu,
um lugar onde ela caiu,

— acho que nada escapou à natureza do facto,
a não ser o próprio mistério do facto.


Clarice Lispector, Perto do coração selvagem,
Relógio d’Água, 2000 [1944], p.93

abril 05, 2014














Esta rosa entra na rosa.
E o vidro absorve as outras
que estão vivas nos reflexos.
Tripla beleza que aparece
e termina pela virtude

da omnipresença dos versos.
Ouvem-se as variações das vozes
das aves sobre os jazigos sós,
no cemitério onde persigo adrede
a personagem do início,
o ser que está a ser.

Fiama Hasse Pais Brandão

março 31, 2014

março 22, 2014

março 21, 2014

março 20, 2014

março 18, 2014


Ainda Balzac, hoje como há duzentos anos

«Se as pessoas ricas à maneira do barão de Nucingen têm mais ocasiões do que as outras de perder dinheiro, têm também mais ocasiões de o ganhar, mesmo quando se entregam às suas loucuras.

Embora a política financeira da famosa casa Nucingen se encontre explicada em outro lado, não é inútil fazer notar que fortunas tão consideráveis não se adquirem, não se constituem, não se avolumam, não se conservam, no meio das revoluções comerciais, políticas e industriais da nossa época, sem que haja imensas perdas de capitais ou, se quiserem, tributações lançadas sobre as fortunas particulares.

Muito poucos são os novos valores vertidos no tesouro comum do globo. Qualquer nova acumulação de riquezas representa nova desigualdade na repartição geral. O que o Estado pede ele o restitui. Mas o que uma casa Nucingen recebe guarda-o.
[ ]

Forçar os Estados europeus a contrair empréstimos a 20% ou 10% por cento, ganhar esses 10% ou 20% com os capitais do público, expoliar à grande as indústrias, apoderando-se das matérias-primas, lançar ao fundador de um negócio uma corda para omanter fora de água até pescar a sua empresa asfixiada, enfim, todas essas batalhas de francos ganhos constituem a alta política do dinheiro.

Decerto deparam-se riscos ao banqueiro, como riscos há para o conquistador. Mas são tão escassas as pessoas em situação de se meterem em tais combates que as ovelhas nada têm aí que ver. Essas grandes coisas passam-se entre pastores.

Assim como os executados (o termo consagrado na gíria da bolsa) são culpados de terem querido ganhar em demasia, muito pouco o público se interessa pelas desgraças causadas pelas maquinações dos Nucingen.

Que um especulador dê um tiro nos miolos, que um corretor de câmbios se ponha em fuga, que um notário leve consigo as poupanças de cem famílias, o que é pior do que matar um homem; que um banqueiro declare bancarrota; todas essas catástrofes, esquecidas em Paris em poucos meses, em breve são cobertas pela agitação quase marítima desta cidade.

As fortunas colossais dos Jacques Coeur, dos Médicis, dos Anjos de Dieppe, dos Auffredi de La Rochelle, dos Fuggers, dos Tiepolos, dos Corners, foram outrora lealmente conquistadas pelos privilégios resultantes da ignorância em que se vivia das proveniências de todas as mercadorias preciosas.

Mas hoje as noções geográficas penetraram de tal modo nas massas, a concorrência limitou a tal ponto os lucros, que toda a fortuna rapidamente feita é: ou obra de um acaso e de uma descoberta, ou resultado de um roubo legal.

Pervertido por escandalosos exemplos, o pequeno comércio tem respondido, sobretudo nestes últimos dez anos, à perfídia das concepções do grande comércio, com atentados odiosos sobre as matérias-primas. Por toda a parte onde se pratica a química não se bebe mais vinho.

Por isso, a indústria do vinho está a sucumbir. Vende-se sal falsificado, para escapar ao fisco. Os tribunais estão estupefactos com esta improbidade geral. Enfim, o comércio francês é suspeito aos olhos do mundo inteiro e a Inglaterra desmoraliza-se também.»

------ // ------

«– Então, meu caro senhor – exclamou o duque Grandlieu –, comprou, ao que se diz, as terras Rubempré. Felicito-o. É uma resposta àqueles que o diziam cheio de dívidas. Quanto a nós, podemos, como a França e a Inglaterra, ter uma Dívida Pública. Mas, veja bem, as pessoas sem haveres, os principiantes, não se podem dar a esse luxo…»

Honoré de Balzac, Esplendores e Misérias das Cortesãs – I,
Publicações Europa-América, Lisboa, 1977, Colecção
Livros de Bolso nº 166, pp.187-8;244.

fevereiro 24, 2014

Leonard Cohen - Take This Waltz [Official Music Video]



Now in Vienna there's ten pretty women
There's a shoulder where Death comes to cry
There's a lobby with nine hundred windows
There's a tree where the doves go to die
There's a piece that was torn from the morning
And it hangs in the Gallery of Frost
Ay, Ay, Ay, Ay
Take this waltz, take this waltz
Take this waltz with the clamp on its jaws
Oh I want you, I want you, I want you
On a chair with a dead magazine
In the cave at the tip of the lily
In some hallways where love's never been
On a bed where the moon has been sweating
In a cry filled with footsteps and sand
Ay, Ay, Ay, Ay
Take this waltz, take this waltz
Take its broken waist in your hand


This waltz, this waltz, this waltz, this waltz
With its very own breath of brandy and Death
Dragging its tail in the sea


There's a concert hall in Vienna
Where your mouth had a thousand reviews
There's a bar where the boys have stopped talking
They've been sentenced to death by the blues
Ah, but who is it climbs to your picture
With a garland of freshly cut tears?
Ay, Ay, Ay, Ay
Take this waltz, take this waltz
Take this waltz it's been dying for years


There's an attic where children are playing
Where I've got to lie down with you soon
In a dream of Hungarian lanterns
In the mist of some sweet afternoon
And I'll see what you've chained to your sorrow
All your sheep and your lilies of snow
Ay, Ay, Ay, Ay
Take this waltz, take this waltz
With its "I'll never forget you, you know!"


This waltz, this waltz, this waltz, this waltz ...


And I'll dance with you in Vienna
I'll be wearing a river's disguise
The hyacinth wild on my shoulder,
My mouth on the dew of your thighs
And I'll bury my soul in a scrapbook,
With the photographs there, and the moss
And I'll yield to the flood of your beauty
My cheap violin and my cross
And you'll carry me down on your dancing
To the pools that you lift on your wrist
Oh my love, Oh my love
Take this waltz, take this waltz
It's yours now. It's all that there is

fevereiro 12, 2014





Beijei teu retrato,
esborratou-se a tinta,
num corpo abstracto
que a saudade pinta...
E a esquadrinhar teus traços já dei por mim louca:
‘Diz-me lá, Picasso, onde ele tem a boca?’

Esse teu retrato
vou expô-lo em Paris,
já usado e gasto
ver se alguém me diz
onde é que te encontro,
se não te perdi...

Por te ter chorado
desfiz o meu rosto
e num triste fado
encontrei encosto.
Dei-me a outros braços mas nada que preste...
‘Diz-me lá, Picasso, que amor é este?’

Este meu retrato
vou expô-lo em Paris,
e assim ao teu lado
eu hei-de ser feliz.
Se nunca te encontro
nunca te perdi.

Sei...
não há só tangos em Paris,
e nos fados que vivi
só te encontro em estilhaços

Pois bem,
Tão certa, espero por ti.
Se com um beijo te desfiz,
com um beijo te refaço!


"Não Há Só Tangos Em Paris"
Pedro da Silva Martins

fevereiro 09, 2014


The outstanding faults of the economic society in which we live
are its failure to provide for full employment and
its arbitrary and inequitable distribution
of wealth and incomes”.

(J. M. Keynes)

fevereiro 04, 2014













«A palavra é curva. Nunca atinge
o alvo. Só o silêncio
é recto.
Mas a chama de um e de outro
limpa a lepra do tempo
e descobre a fonte branca
como o desenho latente que na página respira.»


António Ramos Rosa



Não quero cantar amores,
 Amores são passos perdidos.
 São frios raios solares,
 Verdes garras dos sentidos.
 São cavalos corredores
 Com asas de ferro e chumbo,
 Caídos nas águas fundas.
 Não quero cantar amores.
 Paraísos proibidos,
 Contentamentos injustos,
 Feliz adversidade,
 Amores são passos perdidos.
 São demência dos olhares,
 Alegre festa de pranto.
 São furor obediente,
 São frios raios solares.
 Da má sorte defendidos
 Os homens de bom juízo
 Têm nas mãos prodigiosas
 Verdes garras dos sentidos.
 Não quero cantar amores
 Nem falar dos seus motivos.















«Habitando a paciência da ondulada
sombra vibramos numa rede
de veemências suaves de sabores secretos
e sentimos a terra deslizando connosco.»

António Ramos Rosa, in Dinâmica Subtil, 1984,
in "Antologia poética", Selecção, Prefácio e Bibliografia
de Ana Paula Coutinho Mendes, Public. Dom Quixote,
Lisboa, 2001, p. 214.

(img in blog Olhar)


fevereiro 03, 2014


















Helena Almeida, Pintura habitada (1975)


«Num ponto qualquer
sensualmente subtil
algo que antes não servia para nada
irradia agora habitada surpresa.»


António Ramos Rosa, in Dinâmica Subtil, 1984,
in "Antologia poética", Selecção, Prefácio e Bibliografia
de Ana Paula Coutinho Mendes, Public. Dom Quixote,
Lisboa, 2001, p. 213.

janeiro 30, 2014

Mas,
assim como ao princípio os homens puderam,
com instrumentos naturais,
embora dificultosa e imperfeitamente,
fazer certas coisas muito fáceis, e,
conseguidas estas, levaram a cabo outras difíceis
com menor trabalho e maior perfeição,
e passando desta forma gradualmente
de artefacos muito simples aos instrumentos
e dos instrumentos a outros artefactos e instrumentos,
chegaram ao ponto de realizar muitas coisas e tão difíceis com pequeno esforço,

assim também o entendimento, por sua força inata,
produz para si instrumentos intelectuais,
através dos quais alcança outras forças para outras obras intelectuais
e, destas obras outros instrumentos, ou seja,
o poder de levar mais longe a investigação,
progredindo assim gradualmente até atingir
a culminância da sabedoria.


(Espinosa, Tratado da reforma do entendimento, § 31)

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Belíssimo, este texto de Espinosa.

Sem dúvida, a produtividade do trabalho
depende primordialmente da fecundidade da natureza,
da inteligência humana e do conhecimento acumulado
na evolução histórica das civilizações.

No entanto, só pelo trabalho dos produtores, as sociedades
criam a riqueza, o bem-estar e o domínio da natureza,
por obediência inteligente às leis físicas que a governam.

Assim se desenvolvem os povos e as nações.

Todo o rendimento provém da criação de valor pelos produtores.

janeiro 03, 2014

Redistribuição do rendimento de capital


Redistribuição do rendimento de capital

É curioso que haja quem se surpreenda com a situação frequente de a taxa de juro ser inferior à da inflação ou, quando não é o caso, pouco lhe ser superior. No fundo, essa perplexidade decorre de não se entender o que é o dinheiro, o capital e o juro.

Conceptualizo-os assim: o dinheiro, primitivamente uma mercadoria como outras, mas de aceitação universal no espaço e no tempo, é actualmente um instrumento politicamente imposto como meio de pagamento e liquidação de dívidas, dada a emissão das moedas soberanas ser inconvertível em ouro e os bancos, receptores de depósitos e credores de empréstimos, serem nacionalizados e resgatados por impostos sobre os contribuintes antes e em vez de falirem.

A troco de um juro baixo, os emissores de moeda inconvertível – estados e bancos – operam no mercado aberto de títulos de dívida através da emissão e, ou, amortização de obrigações quer do Tesouro quer de empresas, públicas ou privadas, bancárias ou não, arrecadando ou lançando papel-moeda em circulação ou, nas operações das empresas, diminuindo ou aumentando a liquidez dos depositantes dos bancos em troca de obrigações, i.e., compromissos de reembolso em data futura dos empréstimos contraídos, mediante o pagamento de um juro periódico a dada taxa incidente sobre o valor da obrigação. Essa taxa de juro é maior ou menor consoante a avaliação, em cada tipo de operação, do risco de incumprimento do mutuário.

O processo financeiro parece assim incrementar o dinheiro (D) no decurso do tempo (t) segundo uma taxa de crescimento, o juro (i) por unidade de tempo,

(1)    D(i,t) = D*(1+i)^t

Se o dinheiro se desvalorizar pela inflação a determinada taxa (d), esta será descontada da taxa nominal i para compor a capitalização ao juro real,

(2)    D(i,t,d) = D*(1+i)^t*(1+d)^-t

Ainda que este algoritmo de capitalização do dinheiro formule o respectivo cálculo não explica nem fundamenta o fenómeno do crescimento do dinheiro pelo simples decurso do tempo. Em si, o empréstimo a juros parece ser um mero locupletamento à custa alheia, uma usura injustificada e infundada.

Ora o núcleo do esquema de circulação de capital – e por capital (K) designa-se não só dinheiro acumulado, como tudo o que lhe equivalha por representar poder de aquisição ou dação em pagamento, seja stocks de bens de consumo ou de produção – é justamente o que o faz circular, a saber a capacidade de, aplicando-o num processo de trabalho produtivo adequado (T), criar valor e enriquecer (K´>K) – individual ou colectivamente conforme a ordem jurídica consagre ou não o direito de propriedade privada.  

(3)     K à T à K’             (circulação de capital)

Sendo assim, o rendimento é precisamente todo o valor criado (K’-K) pelo trabalho produtivo o qual remunera distributivamente o trabalho actual, vivo, prestado pelos assalariados no processo produtivo, coadjuvados pelo trabalho pretérito, engenhado e incorporado nos meios de produção que os trabalhadores utilizam na respectiva produção de bens e serviços.

O rendimento originado pelo valor criado na produção é apropriado pelos detentores dos meios de produção, – matérias-primas, equipamento, instalações –, que são igualmente quem contrata os trabalhadores – a força de trabalho viva aplicada na produção –, a quem pagam os salários que remuneram o compromisso do trabalho a que se obrigam. A diferença entre o valor da produção realizada e a soma dos salários com as demais despesas de materiais, fornecimentos e desgaste de equipamento, é o lucro, se o houver, de que o proprietário, o capitalista ou o responsável da iniciativa de produção (empresário), jurídica e legalmente se apropria.

Deste modo, o valor criado em cada período (K´-K) gera o correspondente rendimento distribuível (Y), no pressuposto da utilidade objectiva do produto obtido como bem vendível, – note-se, contudo que a economia não distingue entre utilidade real e fictícia dos bens produzidos ou serviços prestados.

Assim, o rendimento distribui-se pelas duas classes intervenientes na relação de produção, os trabalhadores e os proprietários dos meios de produção (capitalistas), os factores de produção, trabalho e capital, na forma de salários (W), e lucro (L).

(4)    Y = W + L = (1 + L/W)*W

 
A dupla natureza material e financeira do conceito de capital é fulcral para o genuíno entendimento do capitalismo como sistema económico e social quer este assuma uma componente dominante privada, colectiva ou mista. O conceito de capital está assim no centro do textuário explicativo da actividade económica dos indivíduos em sociedade, seja enquanto governantes seja como governados.

A produção de valor em que o trabalho e o capital se aplicam, só gera o rendimento distribuído a esses factores pela transacção dos respectivos bens entre quem os produz e quem os procura e compra, pagando por eles o preço acordado, que tende a nivelar-se em equilíbrio com o custo de produção mais elevado da última, marginal, quantidade de produzida e efectivamente vendável ao preço que vigore no mercado.

 É esse estado de produção equilibrada com a procura que proporciona a sustentável distribuição do correspondente rendimento pelo capital e pelo trabalho.

Antes de desenvolvermos a temática da redistribuição do lucro entre os detentores de capital, advirta-se que, na classe trabalhadora coexistem diversos e muito diferenciados tipos de trabalho, cuja desigual qualificação, produtividade e responsabilidade, fundamenta a desigual remuneração dessas distintas categorias de trabalho, seja na forma de prémios de produtividade, participação nos lucros, fringe benefits ou compensações diversas. De modo geral, a intensidade capitalística do processo produtivo, pode exigir maior qualificação da mão-de-obra para operar o equipamento, e, sobretudo, na indústria de produção dos próprios equipamentos e meios de produção, que são engenhados para causar os efeitos planeados com a sua utilização no fabrico de bens.

Assim, se o quisermos, podemos relevar no rendimento criado a produtividade remunerada (v) do próprio factor-trabalho:

(5)    Y = W + L = (1 + v)*W + L = (1 + v + L/W) * W                            

Se todo o valor emerge da combinação produtiva do trabalho e capital própria da actividade económica, como surge então o juro, enquanto categoria distinta do rendimento criado pelo trabalho, mas autónoma na globalidade do lucro? Surge como consequência do reconhecimento social e jurídico do direito à propriedade privada não só de bens de consumo mas igualmente do dinheiro economizado, dos bens produzidos e dos meios da sua produção, ou seja do conjunto do capital.

É o que vamos mostrar.

O empreendedor que tome a iniciativa de produzir e colocar no mercado uma dada produção reunirá os meios para o conseguir (K) – instalações, bens de equipamento, mão-de-obra habilitada à produção em vista – a partir do que iniciará uma corrente de gastos e receitas periódicas segundo os custos e proveitos da produção transaccionada (l).

Denomina-se taxa interna de rentabilidade (r) do investimento K, aquela a que o fluxo de rendimento líquido futuro gerado na actividade do empreendimento recupera os gastos efectuados:

 
(6)    - K + S  l*(1+r)^-t = 0             (t = 0, 1, 2, …, n)

 
Ora, a reunião dos capitais necessários requer ou a prévia poupança da totalidade do dinheiro a investir ou parte dele, a ser completada por sócios do empreendedor ou por financiadores que se disponham a emprestar o capital em falta. No primeiro caso, os lucros líquidos do investimento repartir-se-ão segundo a comparticipação de cada sócio; no caso de empréstimo, o juro, o prazo e o calendário de reembolso são acordados entre o mutuante e o mutuário.

Genericamente, um investimento só é vantajoso se a taxa interna da rentabilidade esperada for superior à taxa de juro praticada no mercado (r>i), para operações de prazo semelhante, de forma a compensar o maior risco incorrido numa operação de investimento de longo prazo.

Na modalidade do mútuo de fundos para a realização de investimentos produtivos, temos uma primeira redistribuição dos rendimentos de capital, na distinção entre juros e lucros distribuídos aos sócios, aqueles menos incertos que estes.

Iremos mostrar como os detentores de capital estão submetidos aos efeitos da lei dos rendimentos decrescentes a qual exibe a irredutibilidade das situações menos eficientes de monopólio, – que são a única garantia de rendimento sem trabalho –, embora sujeito à eventual baixa tendencial da taxa de lucro do capital acumulado.

Antes de o provar, porém, saliente-se liminarmente que todo o rendimento é criado pelos produtores, condicionado à utilidade dos bens e serviços produzidos, que é o fundamento da respectiva procura. No entanto, deve observar-se que a produtividade do trabalho aumenta com a adequação dos instrumentos de trabalho e dos meios de produção aplicados no processo produtivo. É à fecundidade da natureza e à inteligência e conhecimento engenhados nos meios de produção e utensílios de trabalho, – para causar os efeitos programados com a sua utilização adequada –, que se deve a grande produtividade do trabalho humano na fase actual da civilização, e não a qualquer noção abstracta de capital financeiro ou ficção fetichista de capital técnico.

Como surge então o lucro puro e se forma a renda de monopólio?       

Em economia, designa-se por acumulação primitiva o fenómeno da reunião de capitais nas mãos de um indivíduo ou grupo de indivíduos, seja qual for a proveniência de tais capitais e a sua natureza: dinheiro, ouro, jóias, gado, terras, casas, escravos; roubo, jogo, embuste, guerra, pirataria, casamento, herança ou donativo. Em economia, o ponto é o que o detentor de tal riqueza vai fazer com ela: conservar o seu tesouro, gastá-lo, ou aplicá-lo produtivamente? No primeiro caso, o entesouramento torna estéril a respectiva fortuna; no caso do consumo sumptuário alguma animação no sector de bens de luxo pode sobrevir; no último caso, o do investimento produtivo, há aumento do volume e valor da produção da sociedade.

O enriquecimento causado pelo mero empobrecimento doutrem, o chamado locupletamento à custa alheia, é um fenómeno social e jurídico distinto da origem económica genuína do enriquecimento individual ou colectivo que vamos mostrar, através do exemplo aritmético abaixo editado.

O exemplo é o de um hipotético sector de produção composto de três tipos de empresa: (1) empresa intra-marginal, que opera com os mais baixos custos unitários; (2) empresa média, normal ou representativa que opera com custos unitários médios do sector; (3) empresa marginal que labora com os custos unitários mais elevados.

Por hipótese, as empresas concorrem entre si; a quantidade total produzida é vendida e corresponde à procura global dos consumidores, isto é, mesmo a produção da empresa marginal é necessária à satisfação do nível de consumo existente.

Nestas condições, o custo unitário da empresa marginal iguala o preço corrente do mercado, pelo que o lucro líquido da empresa é zero. Se a curva da procura dos consumidores se deslocar em sentido descendente, a empresa marginal ou abre falência ou passa a praticar salários mais baixos aos seus empregados. No caso contrário, de deslocação ascendente da curva, o preço de venda mais elevado proporciona algum ganho adicional à empresa marginal – e, às demais empresas do sector – ou algum aumento de salários, e incentiva a entrada de novos produtores no mercado.

De qualquer modo, enquanto coexistirem estes três tipos de empresa em concorrência, a do primeiro tipo, a empresa intra-marginal, beneficia de um lucro supra-normal por comparação com a empresa média do sector. Esta situação pode ser temporária ou não, estável ou precária, mas enquanto existir define e compõe uma renda de monopólio, um lucro puro, a favor da empresa mais produtiva, mais eficiente, a que labora com menores custos comparativos.

É verdade que, pode considerar-se que nada é estático, nada perdura sem mudança. De facto, os ganhos de produtividade devidos a novas tecnologias, a inovação de processos de fabrico, acaba por se generalizar a todas as empresas, reduzindo a vantagem pioneira da invenção, – a sua renda de monopólio –, à percepção de alguns royalties ou franchising de algum modelo de negócio.

Contudo, é também comum, o sector evoluir de concorrencial para monopolista, oligopolista ou de concorrência monopolista. Em todos estes casos, as empresas intra-marginais consolidam, estabilizam e aumentam os seus lucros supra-normais, rendas de monopólio – que essa é a sua verdadeira natureza –, restringindo a produção, incrementando o preço de venda, concertando entre si essas práticas ilegais, ou simplesmente publicitando à outrance a (discutível) excelência dos seus produtos de marca, face aos sucedâneos da concorrência.

Todas estas situações de mercado são menos eficientes no plano económico porque se apropriam de recursos sem contrapartida de valor criado.

Conceda-se que os exemplos mais flagrantes de captura de rendas de monopólio são a prática oligopolista de restrição da exploração de petróleo dos países da OPEP, de modo a impelir o aumento do preço do crude, e o arrendamento e cotação de terrenos e do imobiliário nos espaços urbanos e suburbanos das grandes metrópoles e das simples cidades.

No caso do petróleo, o custo de exploração nos poços da Arábia Saudita é, imagino, três, quatro ou cinco vezes menor do que o da extracção no Mar do Norte ou no Golfo do México. Ora, como a produção total que vai ao mercado é toda necessária ao nível de consumo existente, a cotação do petróleo nunca é inferior à do custo marginal, mais elevado, da exploração no alto mar. E mesmo que este puro constrangimento natural não existisse, precisamente os oligopolistas da OPEP encarregar-se-iam, como de facto o fizeram no passado, por concertar entre si o preço pretendido de venda, restringindo a extracção pelo quantum necessário ao efeito.

O arrendamento, compra e venda de terrenos e imobiliário é tão sobejamente conhecido que nem vale a pena exemplificar com nenhum caso específico. Talvez, a contrariu sensu, reflectir sobre o que sucedeu em Portugal, décadas a fio, com o congelamento das rendas, imposto pela Iª República, mantido por Salazar e só agora liberalizado o regime de arrendamento urbano. Envelheceu sem manutenção todo o edificado habitacional das cidades, rarefez-se a oferta de casas para alugar, os trespasses comerciais de lojas arrendadas atingiram sempre altos preços compensadores dada a economia proporcionada pelo baixo encargo do aluguer, ou seja, a ilustração óbvia de captura de rendas de monopólio, neste caso invertido, não pelos senhorios mas pelos inquilinos favorecidos pelo dito congelamento das rendas.

 Abaixo, listo as variáveis e símbolos do sector de produção hipotético, composto pelos referidos três tipos de empresa e mostro os resultados numéricos dos fluxos e rácios económicos de cada exploração sempre pela ordem fixa seguinte:

{(S)Total do sector; (1) – e. intra-marginal; (2) – e. intra-marginal; (3) – e. marginal}

No nosso exemplo, a taxa interna de rentabilidade (r) do sector e das empresas é a da sequência seguinte:

(7)    (r) = { 9.0%; 11.5%; 7.3%; 2.2%}

Para esta grandeza de rentabilidade esperada, o valor actual líquido (net presente value) de cada empresa variará em função da taxa de juro (i) em vigor no mercado.

À sequência de taxas de juro (i) seguinte:

(8)    (i) = {8%; 6%; 4%; 2%; ¼%; -1.5%},

corresponde a sequência de cotações do capital da empresa intra-marginal (npv) como segue:

(9)    (npv) = {336; 579; 871; 1224; 1595; 2036};

Se quisermos evidenciar as variações de cotação tomando para base 100 o valor actual líquido à taxa de juro de 4%, teremos a sucessão

(10) (npv) = {39; 66; 100; 141; 183; 234}

Este exemplo hipotético ilustra à perfeição qual o grande operador de redistribuição das rendas de monopólio, os também chamados rendimentos de capital: - o mercado primário e secundário de emissão e subscrição de acções e obrigações, e sua ulterior transacção de compra e venda no mercado bolsista.

A descida das taxas de juro, o aumento da moeda em circulação, da concessão de crédito e da amortização da dívida pública anima o mercado bolsista das acções, elevando-lhes a cotação. O aumento das taxas de juro, a redução do quantitative easing, a emissão de dívida pública, impelindo à restrição do crédito, deprime a cotação das acções, tornando mais atractiva a colocação do aforro em títulos de rendimento fixo.

Em que sentido opera este mecanismo de repartição de rendimento (rendas monopolistas)?

Não é fácil destacar-lhe um sentido inequívoco. Aparentemente, muitos parecem «ganhar dinheiro» comprando e vendendo, incessantes lotes de títulos segundo os boatos correntes na praça… No entanto, as estatísticas parecem permitir inferir que nos tempos de maior crise, são as grandes fortunas que mais enriquecem, não constando um grande florescimento entre os pequenos aforradores.

Sobre a eventual tendência à baixa da taxa média de lucro do capital acumulado, também não parece possível afirmá-lo de modo definido. Há tendências e contra tendências a actuar. Cada onda de inovações permite a reanimação de ganhos vultuosos, mas, por outro lado, os gastos em investigação e desenvolvimento não originam necessariamente quaisquer invenções práticas, e podem redundar em puro desperdício de recursos sem qualquer proveito. O mesmo aliás se diga do esforço de guerra, expressão eloquente de desinvestimento e redução de capital acumulado, como de resto o são também as falências dos devedores nos períodos de depressão económica.

Até ao momento, o que se conhece é a tendência cíclica de fases de euforia e depressão de negócios, cada qual com os seus efeitos benéficos e nefastos. O problema político ou de economia política tal como o formulou David Ricardo é o da redistribuição do rendimento, designadamente, a tributação redistributiva da renda de monopólio.

As experiências colectivistas da Rússia e da China acabaram por resumir-se à constituição de uma nomenklatura de Estado que concentrou ditatorialmente o poder económico e político, acelerando o desenvolvimento rápido da indústria de bens de equipamento, de meios de produção, e contendo a de bens de consumo à satisfação das necessidades básicas da população, assegurando-lhe, contudo, a instrução pública generalizada. Estes regimes acabaram finalmente por desembocar num capitalismo misto, estadual e privado, onde rapidamente se formaram monopólios das anteriores empresas públicas, privatizadas por preços muito abaixo do valor de mercado a “camaradas” da anterior nomenklatura.

No Ocidente, os Estados Unidos continuam com a sua economia pilotada pelos grandes monopólios da banca, das multinacionais da indústria, material de guerra, exploração do espaço, investigação e desenvolvimento, informática, etc. No software informático é notável o caso exemplar da Microsoft: sem que se lhe averbem quaisquer invenções próprias – tudo foi descoberto e desenvolvido por outros – a empresa de Bill Gates soube apoderar-se e consolidar a sua posição monopolista no domínio do software estandardizado, praticando dumping contra as tentativas de concorrentes, distribuindo as suas soluções a preço-zero e embutindo-as de erros aleatórios ao coexistirem com outros programas. Hoje, a fortuna do fundador ascende várias dezenas de milhares de milhões de euros, a maior do planeta de um só accionista.  

Já na Europa, ignora-se como resolver a conflitualidade objectiva do desigual desenvolvimento dos estados do norte e os do sul, por não existir qualquer orçamento comum embora haja um desejo de união. O mundo mediterrânico, dividido entre duas culturas distintas, cristã e islâmica, pode desequilibrar-se quer por razões económicas quer políticas. Tal como na Bolsa, ninguém sabe o que o futuro traz, mas todos fazem a sua aposta. Com história ainda só no futuro, restam África e a América Hispânica, e como diria Hobbes, «Future is not yet».