abril 16, 2014

A Bolsa, há duzentos anos atrás!



«Desde a paz de 1815, o Nucingen compreendera aquilo que nós, hoje em dia, não compreendemos: que dinheiro é um poder quando existe em quantidades desproporcionadas. Tinha secretamente ciúmes dos irmãos Rosthschild. Possuía cinco milhões e queria dez! [ ] Resolveu, portanto, pôr em prática uma terceira liquidação!

O grande homem sonhava, então, pagar aos credores com valores fictícios, guardando o dinheiro para si. [ ] O Nucingen podia ter sido alvo de suspeitas, mas usou da maior esperteza: fez com que fosse outro a ficar à frente dessa máquina destinada a desempenhar o papel de Mississipi no sistema de Law.

O que era característico no Nucigen era fazer com que as pessoas hábeis acabassem por servir os seus próprios desígnios sem nada lhes comunicar. Então o Nucingen deixou escapar, perante o du Tillet, a ideia piramidal e vitoriosa da criação de uma empresa por  acções com um capital bastante forte para poder beneficiar os seus accionistas com grandes dividendos durante os primeiros tempos.

Lançada, pela primeira vez, num momento em que abundavam os capitais dos tolos, esta combinação devia provocar uma subida nas acções, e por consequência um benefício para o banqueiro que as emitia. [ ]

Era a infância da arte! Não se fazia sequer intervir a publicidade através desses anúncios gigantescos com que se estimulam as imaginações, enquanto se vai pedindo dinheiro a toda a gente… [ ]

– Enfim, a concorrência nessa espécie de empresas não existia – prosseguiu Bixiou. – [ ] Os belos negócios por acções, como diz o Couture, que tão ingenuamente se divulgam, apoiados por relatórios de peritos (os príncipes da Ciência!), tratavam-se vergonhosamente no silêncio e na sombra da Bolsa. [ ]

Progrediam [ ], com ligeiros murmúrios acerca das vantagens do negócio, ditos de ouvido para ouvido. Só exploravam o paciente, o  accionista, no domicílio, na Bolsa ou em sociedade, através desse rumor habilmente criado e que crescia até ao tutti de uma quota de quatro algarismos…

– No meu entender [– respondeu Couture], o novo método é infinitamente menos pérfido, mais leal, menos assassino que o antigo. A publicidade permite a reflexão e o exame. Se algum accionista é comido, ele foi lá propositadamente, e ninguém lhe vendeu gato por lebre. A indústria…   


– Pronto! Lá vem a indústria!... – interveio Bixiou

– A indústria ganha com isso – continuou Couture, sem ligar importância à interrupção. – Qualquer governo que se mete no comércio e não o deixa livre faz uma asneira que lhe custa caro: chega ao maximum ou ao monopólio. Segundo penso nada está mais de acordo com os princípios da liberdade do comércio que a sociedade por acções! Mexer nisso é querer ficar fiador do capital e dos lucros, o que é estúpido!

Em qualquer negócio os benefícios estão em proporção com os riscos! Que importa ao estado a maneira como se obtém o movimento rotativo do dinheiro, desde que ele esteja em perpétuo movimento? Que importa quem é rico, quem é pobre, se existe sempre a mesma quantidade de ricos colectáveis? [ ] Aliás, [ ], as sociedades por acções [ ] estão em moda no país mais comercial do mundo: a Inglaterra. E lá tudo se contesta! [ ]

– É uma bela cura para os cofres cheios!... – exclamou Bixiou. – Com artimanhas!...

– Ora essa!... – respondeu Couture, inflamado. – [ ] Senhores, confessemos entre nós que as pessoas que protestam são hipócritas desesperadas por não terem nem a ideia para um negócio, nem o poder de a lançar, nem a sensatez de a explorar. A prova não se fará esperar.

Dentro de pouco tempo verão a  aristocracia, as pessoas da corte, as que fazem parte dos ministérios descendo em colunas compactas à especulação, e avançando com as mãos aduncas e ideias mais tortuosas que as nossas, sem terem a nossa superioridade.

Que cabeça é preciso para iniciar um negócio numa época em que a avidez do accionista é igual à do inventor! [ ] Sabeis qual é a moral disto? O nosso tempo não vale mais do que nós próprios! Vivemos numa época de avidez em que ninguém se importa com o valor da coisa, desde que possa ganhar com ela transmitindo-a ao vizinho, e faz-se isso porque a avidez de um accionista que acredita num lucro é igual à do criador que lho propõe!

– É lindo o Couture, uma beleza! – chasqueou Bixiou dirigindo-se a Blondet. – Vai exigir que lhe erijamos uma estátua como a um benfeitor da humanidade.

– Será necessário, apenas, levá-lo a concluir que o dinheiro dos tolos é, por direito divino, o património dos espertos! – exclamou Blondet.

– Meus senhores – continuou Couture –, riamos aqui para compensar a seriedade que vamos manter quando ouvirmos falar dos respeitáveis idiotas que consagram as leis feitas de improviso.

– Ele tem razão! Que época, meus senhores!... – disse Blondet. – Uma época onde desde que o fogo da inteligência surge, se faz com que se extinga rapidamente pela aplicação duma lei circunstancial.


Os legisladores, quase todos provenientes dum pequeno bairro onde estudaram a sociedade através dos jornais, abafam agora o fogo graças à máquina. Quando a máquina rebenta surgem o choro e o ranger de dentes!

Um tempo em que apenas se fazem leis fiscais e penais! A grande definição do que se está passando, querem saber qual é? Já não há religião no estado!

– Ah! – proferiu Bixiou. –Bravo, Blondet! Puseste o dedo na chaga da França! O sistema fiscal conseguiu roubar mais conquistas ao nosso país que os vexames da guerra.

No ministério, onde cumpri sete anos de galés, a par com burgueses, havia um funcionário, homem de talento, que resolvera mudar todo o sistema das finanças…

Ah! Bom!... Despedimo-lo lindamente! A França teve muita sorte. Divertir-se-ia a reconquistar a Europa e nós agimos no interesse da tranquilidade das nações. Dei cabo desse [funcionário] com uma caricatura!»
 

Honoré de Balzac, “A Casa Nucingen” in
A Comédia Humana, VII Volume (Cenas da Vida
da Província), Livraria Civilização,
Lisboa, 1980, pp. 556-60.

 

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