agosto 30, 2014

A  FOLHA  E  A  SOMBRA  DELA

Para maior facilidade de compreensão,
tomemos um exemplo: uma árvore
a que o Outono sucessivamente
arrebatou todas as folhas – menos uma.

Essa folha poupada pelo Outono
parece solitária na nudez da árvore.
Porém, se o sol abrir, logo projecta
uma sombra no chão.

Reparem, agora que justamente
acaba de abrir o sol:
a sombra da árvore, e algures no meio
da sombra dos ramos em desordem
a sombra da tal folha solitária.
É insofismável: ela está lá, existe.

Digamos, pois, que por ter umasombra,
a folha não está inteiramente só:
ela tem, cá em baixo, uma réplica exacta.
(Bem entendido: uma réplica incolor,
incorpórea. Mas deixemos isso agora,
que podia levar-nos muito longe.)

Para já, digamos apenas que, embora
dependendo da folha para existir,
a sombra é exterior a ela.
Uma espécie de alter ego à distância,
mas também algo que uma simples nuvem
que oculte o sol ocultará também.

Ou seja, a sombra existe e não existe:
isso não depende apenas de ter uma matriz,
mas também de haver sol ou não haver.

a.m. pires cabral, gaveta de fundo,
Lisboa, Tinta da China, 2013, p. 61-2

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