setembro 29, 2011
setembro 24, 2011
setembro 23, 2011
«Deixa andar, deixa correr — o rio sentir-se-á
mais alegre no balouçar das margens e
os pássaros saltarão para fora dos
arbustos num perguntar
admirado.
As coisas caminharão na indiferença do destino,
alheias ao que nós pensamos ou fazemos.
Tudo irá sentir-se num gravar de memória
cheio de imprevistos e colhendo
os frutos defesos do porvir.
[ ]
Enche-se o futuro de ilusões e
na companhia de enganos fáceis
apronta-se o destino.»
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, pp.302-3
setembro 22, 2011
«Havia nos Barbelas um orgulho de casta que em alguns se transmitia
em vaidade de pecado mortal, mas mesmo esta vaidade era uma vaidade
académica, secundária, vingativa, vaidade que mais tarde se exteriorizou
[ ] em preocupações exclusivas de que só eles eram sapientes.
Uma vaidade sem grandeza, desprezível onde o desequilíbrio entre
o ser que pensava e o ser que se envaidecia era tal que o vaidoso
dominava o inteligente [ ] E nessa mistura de sensações,
sentimentos, reacções, uma coisa era aquilo que
os Barbelas pensavam, outra o que faziam.
Falavam, falavam, conversavam fiado por tempos sem conta,
discutiam, assentavam decisões e conversas, e ao fim
encaminhavam-se ao natural de nada se ter passado.
[ ] Enfim, o que havia, era, bem ou mal, a prata da casa.»
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, pp.233-4
setembro 21, 2011
setembro 19, 2011
setembro 18, 2011
«Os dois em cima do garrano continuavam silenciosos.
O passio frustrara-se. Da posição ligeiramente imprópria
de mariposa o Cavaleiro voltou-se de costas para a frente
e à queima-roupa disse à Madeleine: «Que bonito peito que a prima
tem! Deita fumo?» Madeleine ficou perplexa com a tirada. A frase
sintetizava, com certeza, a ruminação de muitas horas. Madeleine
entupiu. Sair fumo dos peitos! Estavam calados, a mirar-se e
a compor palavras. Olharam-se mais intimamente. Desceram
como de um altar. Viraram as costas à fauna e à flora.
Estavam quase. Vilancete pastava, alheio àquela
história de gente. Os segundos eternizavam-se
e só se ouvia o piar de uns mochos
atarefados em agoiros.
Momento quase horrível!
Vilancete sacudiu as orelhas arredando-se
e então os dois corpos agarraram-se de salto
para caírem em absoluto delírio.
Madeleine descobria que o Cavaleiro era virgem.
O seu emaranhar transmitia uma loucura nunca até aí
vivida por Madeleine. Era um coito que atravessava séculos.
Uma coisa de sempre e de nunca, como os desejos escondidos
de todos os que se passeiam pelo mundo. A noite clareava-se
e os raios de extinta luz lembravam o fumeiro da Beringela.
Discretamente, Vilancete escondera-se com o rabo entre as pernas.»
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, pp.34-5.
setembro 15, 2011
imagem in blog Octávio V. Gonçalves
«Parece Espinho no Inverno,
não se vê vivalma.»
:))
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, pp.227.
setembro 14, 2011
Dali à Moutosa ainda se contavam duas léguas bem andadas.
Iam a meio caminho, no subir da encosta que se debruçava
vagarosamente sobre o Lima. A neblina rala espalhava-se
aos balões pelas cabeças mais salientes. Aquela procissão
de burras e mulas parecia uma bicha tum-tum-tum entrando
por um buraco da natureza e aparecendo do lado oposto. A
conversa obcecava os primos da Barbela sabido que todos
conheciam de cor e salteado o córrego da Moutosa.
Só Madeleine não estava iniciada naquela visão;
era a mais atenta no vislumbrar da paisagem.
Como aquilo, nunca vira nada.
Um outro mundo.
O que se começava a ver não tinha sido feito pelo homem;
sentia-se a própria Criação à solta, liberta de peias
domésticas e preconcebidas. Se a Beleza tivesse
refúgio secreto para os Deuses da Flora,
seria ali o reino desse sonho desmedido.
Madeleine extasiava-se, dela se apoderava
uma inclusão diáfana que trespassava a panorâmica.»
:)
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, pp.121-2.
setembro 13, 2011
«Ao fim da tarde, antes do crepúsculo cantar as suas loas e
sem se descortinar a realidade, apoderava-se da Barbela
um sentido incógnito da existência.
Forte como as nacionalidades e rija como a têmpera da
lâmina do Xasco, o maior escanhoador da Ribeira Lima,
a Torre preparava-se para o banho noctívago
na sua vida de séculos.
Existissem ou não estrelas, fosse breu ou
luar a jorros pelos campos marginais,
o mundo abria-se então
dividindo o tempo. [ ]
Quando a linha do horizonte baixava em intensidade e
os fumos azulados batiam a favor do vento e do andar das coisas,
naquela dimensão abrupta que testemunhava o acender das constelações,
os Barbelas realizavam-se vindos do sonho e da fantasia
para os reais domínios da Torre.
De noite, ressuscitavam e, de companhia, traziam
os amores e os ódios de outras eras e
de outras sensibilidades [ ].
Aquele ressuscitar transfigurava a Torre.»
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, pp.17;18.
setembro 12, 2011
«E aqueles dois seres humanos caminhavam indistintos de compreensão futura,
aos bordos sentimentais, a polir arestas salientes do dia a dia. Para os dois
o mundo estava isolado por um dique intransponível.
A vida projectava-se de um lado e do outro,
como as margens adormecidas do Rio Lima.
Podiam parar, olhar para a noite, fazer tudo aquilo que aos
outros humanos era sentimento passageiro de igualdade.
Pouco importava agora a sua separação. Sentiam-se diferentes,
como as caras das pessoas que se cruzam nas ruas.
Só a tragédia ou a aventura os podia aproximar.»
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, p. 102-3
setembro 11, 2011
«Afasta-te, diabo, que andas sempre distraído,
não vês Dona Urraca a rezar com o breviário
debaixo do braço. Parece sonâmbula, nem
repara em nós. Deito-lhe as mãos e
obrigo-a a confessar-se de
pecadoria geral.
Raios me partam se aquele fedúncias
do Menino das Enguias não é filho dela.
E a quererem passar por santos,
lá na terra querem todos ser santos,
dizem que são santos e ficam contentes,
bastam-se com pouco.
Fazem as maiores poucas-vergonhas
e são todos uns santos.
Então os primos mais
sociais da Grande Barbela
quanto mais pouca-vergonha,
mais missa e mais santos na família.»
:)
Ruben A., A Torre da Barbela (1964),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1995, p. 230
setembro 10, 2011
«Torna-se também difícil explicar o que se passava
no espírito de Dom Raymundo. Parece haver a certeza
de que Dom Raymundo era um destes seres que se
deixa amar sem perguntar porquê. Irresponsável
e poeta, com uma barbicha e um encanto de deitar
abaixo as piores intenções, deixava-se amar com um
ar olímpico de quem à superfície da terra é um Deus
e, como tal, não pode medir as consequências
benéficas ou maléficas dos seus actos. Vivia num
laissez faire que amedrontava os homens como
Frey Cyro, procuradores honestos de uma verdade
nas coisas e nos indivíduos. Não era o enfant terrible
da Barbela, sim um homem terrível, que deixava ao
deus-dará as consequências dos amores com que
queimava vidas alheias. E nisto constituía-se muito
latino e muito português. Generoso no amor, cruel
na desgraça. A memória que varresse o passado;
mesmo a saudade ficava apenas dos bons momentos,
que dos maus não se lembrava.»
op.cit., pp.180-81
setembro 03, 2011
"Post blanda veneris"
Depois do suave ardor
Do sexo,
Dos nervos se distende
O nexo.
Como que flutuando
Da treva a um mundo novo
Os olhos vêm vogando
Num remar das pálpebras!
Ah, como é doce o trânsito
Da posse ao entressonho!
Mas mais doce é o regresso
Do entressonhar à posse.
De Carmina Burana,
conjunto de poemas medievais