«Todos os cavaleiros têm os seus afazeres pessoais: sirva as damas o cortesão; dê prestígio à corte do seu rei com librés; sustente os cavaleiros pobres com o esplêndido prato da sua mesa; organize justas e presida a torneios, e mostre-se grande, generoso, magnífico e bom cristão, sobretudo, e desta maneira cumprirá as obrigações que lhe competem.
Mas o cavaleiro andante busque todos os cantos do mundo, entre nos mais intrincados labirintos, empreenda a cada passo o impossível, suporte nos páramos despovoados os ardentes raios do sol a meio do Verão, e no Inverno a dura inclemência dos ventos e dos gelos;
não o assustem leões, nem lhe metam medo monstros fabulosos nem atemorizem endríagos; que procurar estes, atacar aqueles e vencê-los todos são os seus principais e verdadeiros afazeres.
Eu, pois, como me coube em sorte ser um da legião da cavalaria andante, não posso deixar de acometer tudo o que a mim me parecer que cai debaixo da jurisdição dos meus afazeres;
e assim, acometer os leões que agora acometi justamente me tocava, embora tenha reconhecido ser temeridade exorbitante, porque bem sei o que é valentia, que é uma virtude que está posta entre dois extremos errados, que são a cobardia e a temeridade;
mas menos mal será que o homem valente toque e suba ao ponto de temerário do que outro desça e toque no ponto de cobarde, que assim como é mais fácil tornar-se o pródigo generoso que o avarento, é mais fácil tornar-se o temerário um verdadeiro valente do que o cobarde subir à verdadeira valentia;
e nisto de acometer aventuras, creia-me vossa mercê, senhor D. Diogo, que é preferível perder-se por excesso que por defeito, porque melhor soa nas orelhas dos que o ouvem «o tal cavaleiro é temerário e ousado» que «o tal cavaleiro é tímido e cobarde»
— Digo, senhor D. Quixote — respondeu D. Diogo —, que tudo o que vossa mercê disse e fez está nivelado pelo fiel da própria razão, e que entendo que se as ordenações e leis da cavalaria andante se perdessem, achar-se-iam no peito de vossa mercê como no seu próprio depósito e arquivo.»
Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 582-3.