agosto 31, 2013

Dom Quixote de la Mancha


«Todos os cavaleiros têm os seus afazeres pessoais: sirva as damas o cortesão; dê prestígio à corte do seu rei com librés; sustente os cavaleiros pobres com o esplêndido prato da sua mesa; organize justas e presida a torneios, e mostre-se grande, generoso, magnífico e bom cristão, sobretudo, e desta maneira cumprirá as obrigações que lhe competem.

Mas o cavaleiro andante busque todos os cantos do mundo, entre nos mais intrincados labirintos, empreenda a cada passo o impossível, suporte nos páramos despovoados os ardentes raios do sol a meio do Verão, e no Inverno a dura inclemência dos ventos e dos gelos;

não o assustem leões, nem lhe metam medo monstros fabulosos nem atemorizem endríagos; que procurar estes, atacar aqueles e vencê-los todos são os seus principais e verdadeiros afazeres.

Eu, pois, como me coube em sorte ser um da legião da cavalaria andante, não posso deixar de acometer tudo o que a mim me parecer que cai debaixo da jurisdição dos meus afazeres;

e assim, acometer os leões que agora acometi justamente me tocava, embora tenha reconhecido ser temeridade exorbitante, porque bem sei o que é valentia, que é uma virtude que está posta entre dois extremos errados, que são a cobardia e a temeridade;

mas menos mal será que o homem valente toque e suba ao ponto de temerário do que outro desça e toque no ponto de cobarde, que assim como é mais fácil tornar-se o pródigo generoso que o avarento, é mais fácil tornar-se o temerário um verdadeiro valente do que o cobarde subir à verdadeira valentia;

e nisto de acometer aventuras, creia-me vossa mercê, senhor D. Diogo, que é preferível perder-se por excesso que por defeito, porque melhor soa nas orelhas dos que o ouvem «o tal cavaleiro é temerário e ousado» que «o tal cavaleiro é tímido e cobarde»

— Digo, senhor D. Quixote — respondeu D. Diogo —, que tudo o que vossa mercê disse e fez está nivelado pelo fiel da própria razão, e que entendo que se as ordenações e leis da cavalaria andante se perdessem, achar-se-iam no peito de vossa mercê como no seu próprio depósito e arquivo.»

Miguel Cervantes, O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha, («Il Ingenioso
Hidalgo D. Quixote de La Mancha», 1605)
Trad. e notas de José Bento, Gravuras
de Lima de Freitas, Relógio d’Água,
Lisboa, 2005, p. 582-3.

agosto 29, 2013

«Lá onde arde o fogo do Espírito,
onde sopra o vento do Espírito,
onde transborda o vinho do soma do Espírito,

aí nasceu uma nova alma.


Inspirados por Savitri,
procuremos encontrar júbilo
nas preces dos velhos tempos:

pois se delas fizermos a nossa rocha,
ficaremos purificados dos pecados do passado.


Estando o corpo direito, a cabeça e o pescoço
dirigem a mente e os seus poderes até ao coração;
e então o OM de Brahman será a barca
que te fará atravessar
rios rios do medo.

E com o corpo firme e em silêncio,
respira ritmicamente pelas narinas,
com uma calma subida e descida
da respiração.

O coche que é a mente
é puxado por cavalos selvagens,
e esses cavalos selvagens
têm de ser domados.


Encontra um lugar retirado e calmo
para a prática do Ioga, abrigado do vento,
plano e limpo, sem qualquer lixo, cinzas ou
fogueiras ou fealdade, e onde o som da água
e a beleza do lugar ajudem o pensamento e
   a contemplação.

Estas são as formas imaginárias
que aparecem antes da visão final
que é Brahman: uma névoa, um fumo
e um sol; um vento pirilampos e um fogo;
relâmpagos, um cristal puro e uma lua.

Quando o praticante de Ioga
tem completo domínio sobre o seu corpo,
que é composto pelos elementos da terra,
água, fogo, ar e éter, então obtem
um novo corpo de fogo espiritual,
que é superior à doença, velhice e morte.

Os primeiros frutos da prática de Ioga são:
saúde, pouco desperdício e boa tez;
leveza de corpo, odor agradável
e voz suave; e ausência
de desejos vorazes.

como um espelho de ouro,
coberto de pó, quando bem limpo
brilha em todo o seu esplendor,
assim também todo o homem
que viu a verdade do Espírito
é um com ele, o alvo da sua
vida foi atingido, e ficará
para sempre livre de pesares.

Então a alma do homem
torna-se uma lâmpada
com a qual ele encontra
a Verdade de Brahman.
E vê a Deus, nunca nascido
e eterno; e quando vê a Deus
fica liberto de todas as escravidões.»

Os Upanishades, trad. da versão inglesa
de Inês Busse, Public. Europa-América,
Lisboa, s/d., pp.58-9.

agosto 27, 2013

Herbert A. Simon



ANÁLISE DE MEIOS E OBJECTIVOS

Qualquer sistema teleológico está em comunicação com o ambiente através de dois tipos de canais: os aferentes, ou sensoriais, através dos quais o sistema recebe informação sobre o ambiente, e os eferentes, ou motores, pelos quais o sistema actua sobre o ambiente.

O sistema deve possuir meios de armazenar em memória informações sobre estados do mundo — informaçãoaferente ou sensorial — e sobre as próprias acções — informação eferente ou motora.

A capacidade de realizar objectivos depende da formação de associações, que podem ser simples ou muito complexas, entre mudanças especificadas de estados do mundo e acções particulares que provoquem, fiavelmente ou não, essas mudanças. [ ]

O programa para resolução de problemas chamado GPS [Global Positioning System], concebido para modelar algumas das características principais da resolução humana de problemas, mostra nitidamente como a acção teleológica depende da construção desta espécie de ponte entre os mundos aferente e eferente. [ ]

GPS é então um sistema que investiga selectivamente através de um ambiente (possivelmente extenso), em ordem a descobrir e organizar sequências de acções que o levarão duma situação dada a uma situação desejada. [ ]

Para representar a relação entre os mundos aferente e eferente, concebemos o GPS movendo-se através de um grande labirinto. Os nós do labirinto representam situações, descritas aferentemente; os caminhos que ligam os nós são as acções, descritas como sequências motoras, que transformam as situações umas nas outras.


Herbert A. Simon, As Ciências do Artificial,
(«The Sciences of the Artificial», 1969),
Trad. Luís Moniz Pereira, Arménio Amado Ed.,
Colecção Studium, nº 95, Coimbra, 1981, pp. 210-12

agosto 25, 2013

Herbert A. Simon

                     Exo-mars-rover

Inserção do Artifício na Natureza



Uma formiga caminha laboriosamente através de uma praia moldada pelo vento e pelas ondas. Avança, desvia-se para a direita para subir mais facilmente um montículo escarpado, contorna um calhau, pára por um momento para trocar informações com uma compatriota.

Deste modo, percorre o caminho meandroso e claudicante, que a leva de volta a casa. Para não antropomorfizar os seus propósitos, esboço o trajecto num papel: uma sequência de segmentos irregulares, angulosos — não exactamente uma caminhada ao acaso, pois possui um sentido intrínseco de
direcção, intenção de atingir um objectivo.

Mostro o esboço, sem qualquer legenda, a um amigo. De quem é este caminho? Talvez de um esquiador habilidoso deslizando por uma encosta íngreme e um pouco rochosa, ou duma chalupa navegando contra o vento num canal pontilhado de ilhas ou baixios. Talvez seja um caminho num espaço mais abstracto: o decurso da pesquisa dum estudante à procura da demonstração de um teorema de geometria.

Seja quem for o autor do caminho, em qualquer espaço, porque não é ele recto? Porque não se dirige directamente do ponto de partida para o objectivo? No caso da formiga (e por falar nisso, nos outros) sabemos a resposta.

A formiga tem uma ideia geral da localização da sua casa, mas não pode prever todos os obstáculos espalhados pelo caminho. Tem de adaptar repetidamente o seu percurso às dificuldades que encontra, e muitas vezes precisa de contornar barreiras inultrapassáveis. Os seus horizontes são estreitos, o que a obriga a considerar cada obstáculo conforme lhe aparece; experimenta caminhos através ou à volta dele, sem pensar muito nos obstáculos futuros. É fácil apanhá-la em desvios complicados.

Como figura geométrica, o trajecto da formiga é irregular, complexo, difícil de descrever. Mas esta complexidade pertence realmente à superfície da praia, e não à formiga. Nessa mesma praia outro pequeno animal que tivesse a sua casa no mesmo sítio que a formiga, poderia muito bem seguir um caminho muito semelhante.

Herbert A. Simon, As Ciências do Artificial,
(«The Sciences of the Artificial», 1969),
Trad. Luís Moniz Pereira, Arménio Amado Ed.,
Colecção Studium, nº 95, Coimbra, 1981, pp. 103-4.

agosto 23, 2013

Herbert A. Simon

O  AGENTE ECONÓMICO

«Na teoria da empresa [ ] uma firma administrada por um «empresário» tem por objectivo maximizar o lucro [ ]. Dada uma curva de despesas, que relaciona os gastos em dólares com o número de aparelhos produzidos, e uma curva de rendimentos, relacionando as receitas em dólares com o número de aparelhos vendidos, uma companhia que os fabrica pode controlar o montante da sua produção (e vendas).

O objectivo (maximização do lucro) define completamente o ambiente interno da empresa; as curvas de despesas e rendimentos, o ambiente externo ao qual deve adaptar-se. Deduzimos facilmente que o empresário racional escolherá a quantidade de mercadoria a comercializar que provoca a maior diferença entre o rendimento total e a despesa total.

Dadas as curvas de rendimento e despesa, qualquer pessoa conhecedora dos elementos do cálculo diferencial pode determinar esta quantidade óptima, fazendo uma simples derivação, igualando a derivada obtida a zero, e resolvendo a equação resultante, com a quantidade óptima como variável dependente.

Neste exemplo encontram-se todos os elementos do que [ ] chamámos um sistema artificial. O sistema, sujeito apenas ao objectivo definido pelo seu ambiente interno, adapta-se ao ambiente externo. Para prever o seu comportamento precisamos de informação sobre o objectivo e o ambiente externo, mas não de informação sobre o processo usado para calcular a quantidade óptima de mercadoria a comercializar.»

Herbert A. Simon, As Ciências do Artificial,
(«The Sciences of the Artificial», 1969),
Trad. Luís Moniz Pereira, Arménio Amado Ed.,
Colecção Studium, nº 95, Coimbra, 1981, pp. 60-61.

agosto 21, 2013

Herbert A. Simon

«O computador é um membro de uma importante família de artefactos chamados sistemas simbólicos, ou mais explicitamente, sistemas simbólicos físicos. Outro membro importante desta família [ ] é o cérebro e a mente humana. [ ]

Os sistemas simbólicos são quase a quintessência dos artefactos, porque a adaptabilidade a um ambiente é toda a sua razão de ser. São sistemas de processamento de informação que procuram realizar objectivos, e habitualmente são postos ao serviço dos sistemas mais vastos em que estão incorporados.

Um sistema simbólico físico contém um conjunto de entidades, chamadas símbolos. Estes são padrões físicos (por exemplo, marcas de giz num quadro) que podem ocorrer como componentes de estruturas simbólicas (por vezes chamadas expressões).

[ ] Um sistema simbólico possui também um certo número de processos simples, que fazem operações sobre as estruturas simbólicas — processos que criam, modificam, copiam e destroem símbolos. Um sistema físico simbólico é uma máquina que, na sua trajectória ao longo do tempo, produz um conjunto evolutivo de estruturas simbólicas.

Estas estruturas podem servir, e servem habitualmente, como representações internas (por exemplo, «imagens mentais») dos ambientes a que o sistema simbólico procura adaptar-se, e permitem-lhe fazer modelos mais ou menos verídicos desse ambiente, em maior ou menor detalhe, e consequentemente raciocinar acerca dele.

É claro que para que estas capacidades tenham alguma utilidade para o sistema simbólico, este deve possuir janelas abertas para o mundo e também mãos: deve ter meios de adquirir no mundo exterior informação codificável em símbolos que iniciam a acção sobre o ambiente. Assim, deve usar símbolos para designar objectos, relações e acções no mundo exterior.

Os símbolos podem também designar processos que o sistema simbólico pode interpretar e executar. Portanto, os programas que governam o comportamento de um sistema simbólico podem ser armazenados, juntamente com outras estruturas simbóicas, na própria memória do sistema, e executados quando activados.

Chamamos aos sistemas simbólicos «físicos» para lembrar ao leitor que existem, no mundo real, como dispositivos feitos de vidro e metal (computadores) ou de carne e sangue (cérebros).

Antigamente, tínham-nos acostumado a pensar nos sistemas simbólicos da matemática como abstractos e incorpóreos, não tomando em conta o papel e lápis e as mentes humanas que na verdade são necessários para lhes dar vida.

Os computadores trouxeram os sistemas simbólicos do céu platónico das ideias para o mundo empírico dos processos reais executados por máquinas ou cérebros, ou por uns e outros trabalhando em conjunto.»

Herbert A. Simon, As Ciências do Artificial,
(«The Sciences of the Artificial», 1969),
Trad. Luís Moniz Pereira, Arménio Amado Ed.,
Colecção Studium, nº 95, Coimbra, 1981, pp. 54-56.

agosto 19, 2013

Herbert A. Simon


«Nenhum artefacto concebido pelo homem é tão conveniente para [o] tipo de descrição funcional [baseado na estrita organização dos seus componentes] como o computador digital. É um aparelho verdadeiramente digno de Proteu. As propriedades organizacionais são quase as únicas detectáveis no seu comportamento. [ ]

[Q]uase nenhuma asserção interessante que se possa fazer sobre um computador em funcionamento tem alguma relação particular com a natureza específica do hardware.

Um computador é uma organização de componentes funcionais elementares, no qual, com grande aproximação, só as funções executadas por esses componentes são relevantes para o comportamento dos sistema total. Este carácter altamente abstractivo dos computadores torna fácil introduzir a matemática no estudo da sua teoria [ ].

Herbert A. Simon, As Ciências do Artificial,
(«The Sciences of the Artificial», 1969),
Trad. Luís Moniz Pereira, Arménio Amado Ed.,
Colecção Studium, nº 95, Coimbra, 1981, pp. 47-48.


agosto 17, 2013

Herbert A. Simon

SIMULAÇÃO DE SISTEMAS MAL CONHECIDOS

É mais interessante e subtil perguntar se a simulação pode ajudar-nos quando inicialmente sabemos pouco acerca das leis naturais que governam [um] sistema interno. Demonstrarei que a resposta a esta pergunta deve ser afirmativa.

Começarei por um comentário preliminar que simplifica o asunto: poucas vezes estaremos interessados em prever os fenómenos em todas as suas particularidades. Usualmente só nos interessam umas poucas propriedades abstraídas da realidade complexa.

Um satélite lançado pelo homem é certamente um objecto artificial, mas não costumamos pensar nele como «simulando» a Lua ou um planeta.

Apenas obedece às mesmas leis físicas que só dizem respeito à sua massa inercial e gravitacional, abstraídas da maior parte das outras propriedades.

O satélite é uma lua. [ ]

Quanto mais desejarmos abstrair dos detalhes de um conjunto de fenómenos, mais fácil se torna simulá-los. Além disso, não precisamos de conhecer ou fazer suposições sobre toda a estrutura interna do sistema, mas apenas sobre as particularidades cruciais para a abstracção, o que é uma sorte.

Se assim não fosse, a estratégia que nos últimos três séculos construiu as ciências naturais de cima para baixo não seria realizável. Sabíamos bastante acerca do comportamento físico e químico da matéria ao nível macroscópico antes de conhecermos as moléculas; sabíamos bastante química molecular antes da teoria atómica; e sabíamos bastante acerca dos átomos antes de termos uma teoria das partículas elementares (se é que na verdade a temos hoje).

Esta construção da ciência em arranha-céus, partindo do telhado em direcção aos alicerces ainda por construir, foi possível porque em cada nível o comportamento do sistema dependia somente duma caracterização muito simplificada aproximada e abstraída do nível imediatamente inferior. [ ]

Os sistemas artificiais e adaptativos têm propriedades que os tornam particularmente susceptíveis de simulação por modelos simplificados. [ ] A semelhança no comportamento de sistemas  cujos interiores não são idênticos é particularmente realizável se os aspectos que nos interessam derivam da organização dos componentes independentemente da maior parte das propriedades dos componentes em si.»

Herbert A. Simon, As Ciências do Artificial,
(«The Sciences of the Artificial», 1969),
Trad. Luís Moniz Pereira, Arménio Amado Ed.,
Colecção Studium, nº 95, Coimbra, 1981, pp. 44-46.

agosto 15, 2013

Sá de Miranda


A ANTÓNIO PEREIRA, SENHOR DO BASTO,
QUANDO SE PARTIU PARA A CORTE CO’A
                     CASA TODA

[…]

Oh! vida dos lavradores!
Se eles conhecessem bem
as avantages que tem,
co’aqueles santos suores
que a si e o mundo mantém,

Tratando co’a madre antiga
que, de quanto em si recebe
(não entre engano, ou má liga)
singelamente se obriga
a pagar mais do que deve!

[…]

Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 222

agosto 13, 2013

Sá de Miranda


A ANTÓNIO PEREIRA, SENHOR DO BASTO,
QUANDO SE PARTIU PARA A CORTE CO’A
                     CASA TODA

[…]

Peitos, que sonhando andais,
o muito não no troqueis
por nadas, como o trocais;
as perlas orientais
aos porcos as não lanceis.

[…]

Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 221

agosto 09, 2013

Sá de Miranda

A ANTÓNIO PEREIRA, SENHOR DO BASTO,
QUANDO SE PARTIU PARA A CORTE CO’A
                     CASA TODA

[…]

Não me temo de Castela,
donde inda guerra não soa;
mas temo-me de Lisboa,
que, ao cheiro desta canela,
o Reino nos despovoa.

E que algum embique e caia
(afora vá mau agouro!)
falar por aquela praia
da grandeza de Cambaia,
Narsinga das torres d’ouro!

Ouves, Viriato, o estrago
que cá vai dos teus costumes?
Os leitos, mesas e o lumes,
todo cheira: eu óleos trago;
vem outros, trazem perfumes.

E ao bom trajo dos pastores,
com que saíste à peleja
dos Romãos tam vencedores,
são mudados os louvores;
não há lá quem t’haja enveja.

Entrou, dias há, peçonha
clara pelos nossos portos,
sem que remédio se ponha:
uns dormentes, outros mortos,
alguém polas ruas sonha.

Fez no começo a pobreza
vencer os ventos e o mar,
vencer quási a natureza;
medo hei de novo à riqueza,
que nos venha a cativar.

[…]

Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 215-16

agosto 07, 2013


Diógenes, claro o dia,
buscava andando à candea,
que nunca a cabeça erguia,
em Atenas — em que aldea! —
Já cansado assi dezia:
— Vou-me por aqui buscando
entre tantos homens um;
neste vão trabalho ando,
qu’inda não achei nenhum.


Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 201

agosto 05, 2013

Sá de Miranda



EM DIÁLOGO DE DUAS NINFAS: NISA E FÍLIS

— Qu’es esto, Fílis, qu’estás tan turbada,
sola, demudada, y sin color
cab’esta fuente? Tanto ruiseñor,
y tanta outra avezilla enamorada!

Si lo que ves y que oyes no te agrada,
qué te puede agradar ni dar sabor?
Ves tanta diferencia y tanta flor,
de que la tierra está como esmaltada?

— Ó Nisa, Nisa! Leda y deseosa
de cazar, vine a la fresca ribera,
todo olvidé por esta fuente hermosa.

No soy la Nisa, no, que dantes era;
salteóme aquí un cuidado, ah! flaca cosa!
la vida muy aína aqui muriera!


Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 161

agosto 03, 2013

Sá de Miranda


Desarrezoado amor, dentro em meu peito,
tem guerra com a razão. Amor, que jaz
i já de muitos dias, manda e faz
tudo o que quer, a torto e a direito.

Não espera razões, tudo é despeito,
tudo soberba e força; faz, desfaz,
sem respeito nenhum; e quando em paz
cuidais que sois, então tudo é desfeito.

Doutra parte, a Razão tempos espia,
espia ocasiões de tarde em tarde,
que ajunta o tempo; enfim vem o seu dia:

Então não tem lugar certo onde aguarde
Amor; trata treições, que não confia
nem dos seus. Que farei quando tudo arde?


Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 160

agosto 01, 2013

Sá de Miranda


Los bosques sombrios, los sombrios valles,
los montes, las peñas, mis lamentaciones
escuchen, y quebrense los corazones
oyendo; y oyanme los animales;
los hombres no me oyan y sean mis males
tan solamente al hombre encubiertos,
que a ellos huyendo busqué los desiertos,
los bosques sombríos, los sombríos valles.

Ay generación perversa y malvada!
no te maravilles si mi mal descubro
a las alimañas y de ti me encubro,
ca su crueldad ante ti no es nada.
Pasaron los hombres, la fe ya es pasada,
amor ya no reina, reunam niñerias.
Si oyeses mis daños, como te ririas,
Ay generación perversa y malvada!

[…]


Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 76