julho 31, 2013

Sá de Miranda


À SEPULTURA DE UMA DAMA

De quão pouca terra satisfeita jaz
a que toda ela a não merecia,
aquela que, triste ou leda, como ia,
assi punha tudo ou em guerra ou em paz.
Levou-no-la a morte cruel que desfaz
as maiores cousas com maior presteza.
Ah, morte! Ah, mundo! A tua riqueza
de quão pouca terra satisfeita jaz!



Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 75

julho 29, 2013

Sá de Miranda


Antre temor e desejo,
vã esperança e vã dor,
antre amor e desamor
meu triste coração vejo

Nestes extremos, cativo
ando, sem fazer mudança;
e já vivi d’esperança
e agora de choro vivo.
Contra mi mesmo pelejo,
vem d’ua dor outra dor
e dum desejo maior
nace outro moor desejo.


Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 74

julho 27, 2013

Sá de Miranda


AO AMOR E À FORTUNA

Amor e Fortuna são
dous deuses que os antigos
ambos os pintaram cegos;
ambos não seguem razão;
ambos aos mores amigos
dão mores desassossegos;
ambos são sem piedade;
ambos não lhe tomais tino
do querer ou não querer;
ambos não falam verdade;
Amor é cego minino,
Fortuna é cega mulher.


Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 71

julho 23, 2013

Sá de Miranda


Fuye el tiempo, está el mal quedo,
pensé morirme, y no muero;
desengañarme no quiero;
quando ya quiero, no puedo.

Todo se me va en antojos,
en esta prisión escura;
cuitados de los mis ojos
que pagan tanta locura!

De todo me pide el miedo
lágrimas como de fuero:
de lo que puedo y no quiero,
de lo que quiero y no puedo.

Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 64

julho 21, 2013

Sá de Miranda


               (CANTIGA FEITA NOS GRANDES CAMPOS DE ROMA)

Por estes campos sem fim,
onde a vista assi se estende,
que verei, triste de mim,
pois ver-vos se me defende?

Todos estes campos cheos
são de saudade e pesar,
que vem pera me matar
debaixo de céus alheos.
Em terra estranha e em ar,
mal sem meo e mal sem fim,
dor que ninguém não entende,
até quão longe se estende
o vosso poder em mim!

Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 61

julho 19, 2013

fiama hasse pais brandão

VITA  BREVIS  II

Temo que estes cristais se estilhacem
e que alguma mão lentemente se insinue
no pêndulo do relógio de pé. E contudo
não devemos amar as coisas com gratidão
porque elas nos não foram dadas realmente
nem delas vivemos, no profundo amor.
Nem qualquer coisa nos pode desprender
do futuro, que vem não obstante as coisas
decaídas. Ficamos sempre livres
depois da perda delas. Isentos, depois
de abandoná-las. Nós mesmo bendiremos
o ladrão de coisas que nos salva
da angústia de termos mais do que o desejo.

fiama hasse pais brandão, inédito
in Revista Ler, Abr.2013

julho 17, 2013

fiama hasse pais brandão


APONTAMENTO EM SOFIA
AO VER ABRIR A PORTA
DA IGREJA ARMÉNIA

Em Sófia, na igreja arménia, os responsos
cantados ao fim da tarde tombam
da boca sombria de mulheres inclinadas
como estátuas e de repente os agudos
irrompem através da espessura da cor
das vozes e dos madeiramentos,
tal como a luz abriu no portal
um caminho duplo para a alma.

fiama hasse pais brandão, inédito
in Revista Ler, Abr.2013

julho 15, 2013

fiama hasse pais brandão




CORPO MORTAL

Estou a tocar o papel com o extremo
da mão, em garatujas marco
a minha letra. Vou gradualmente ser
consubstanciada no ente de papel.

fiama hasse pais brandão, inédito
in Revista Ler, Abr.2013

julho 13, 2013

fiama hasse pais brandão



UM PALITEIRO ANTIGO

Mudo-me, seguindo o pequeno objecto
que escolhe o seu lugar. Uma ave
de prata com o longo bico bífido.
Já perguntei a poetas o que é.
Um objecto que, ao fim de tantos anos,
mantém lugar e uso, ele é apenas
uma forma luxuriosa da matéria

fiama hasse pais brandão, inédito
in Revista Ler, Abr.2013

julho 11, 2013

Inês de Castro

  


Ainda a rainha depois de morta

Arranca corações, esse punho cruel
que vem fustigando a história
dos amantes e chega até aos púlpitos, tronos,
e matérias de arte.

Na pedra burilada, os anjos muito agudos
pecam por desvelo.
Nas naves ressoa o bramar enroaldo em raiva
da realeza sepulta:
eu amei-a viva, vocês venerem-na morta.

Foi um punho cruel.
Talvez houvesse um sexo absoluto em tanto movimento
de ouro, brocado,
soluços ébrios de temor ou de outra natureza
mais embevecida.

A história neste caso é sedutora:
traz o poder ao sol de uns seios, à luz de uma vagina,
abre a flor dos sentidos, desfeita
a golpes de espada,
de traição.

Aqui neste frio erguido ao redor das naves
a matéria humana
que percorre viva a tarde histórica
tem pressa de fugir
ao pesadelo:
o amor não mata, ninguém o assassina,
é ele e só ele que se expõe
já morto.

Resumo — a poesia em 2012, poemas
escolhidos por Armando Silva Carvalho,
José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós,
Manuel de Freitas, ed. Documenta,
15 anos fnac, Lisboa, 2013, p.58

julho 09, 2013

Sá de Miranda






















Toda esperança é perdida,
tudo veo a falecer,
e o que fica da vida,
ficou para m’eu perder.

Aquela esperança minha,
assi falsa e vã como era,
co’os que eu nela tinha
a todo o mal me atrevera.
Ora, ela é toda perdida;
mas não m’hão-de fazer crer
que não há mais nesta vida
senão nascer e morrer!


Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 60

(img in Poetas Apaixonados)

julho 07, 2013

Sá de Miranda

Ó meus castelos de vento
que em tal cuita me pusestes,
como me vos desfizestes!

Armei castelos erguidos,
esteve a fortuna queda
e disse: Gostos perdidos,
como is a dar tão grâ queda!
Mas, oh! fraco entendimento!
em que parte vos pusestes
que então me não socorrestes?

Caíste-me tão asinha,
caíram as esperanças;
isto não foram mudanças,
mas foram a morte minha.
Castelos sem fundamento,
quanto que me prometestes,
quanto que me falecestes!


Sá de Miranda, “Poesia e Teatro”,
selecção, introd. e notas por
Silvério Augusto Benedito,
Ulisseia, Lisboa, 1989, p. 59

julho 04, 2013

Plutarco


«Aqueles que, pela idade ou pelo vigor, são chamados à profissão das armas «recebem do Estado um soldo que chega para se sustentarem. Quis, pois, que a «classe do povo que não presta serviço militar e vive do seu trabalho tivesse «também a sua parte nesta distribuição dos dinheiros públicos; mas, para «que ela não se tornasse o prémio da preguiça ou da ociosidade, empreguei «estes cidadãos na construção de vastos edifícios onde toda a espécie de «artistas encontrará em que se ocupar, por muito tempo.

«Assim, aqueles que continuam em suas casas terão um meio de colher, «das receitas da república, o mesmo auxílio que os marinheiros, os «soldados e os que são encarregados da guarda das fortalezas.

«Comprámos a pedra, o bronze, o marfim, o oiro, o ébano, o cipreste; e «inúmeros operários, carpinteiros, pedreiros, ferreiros, canteiros, «tintureiros, ourives, ebanistas, pintores, bordadores, torneiros, estão «ocupados em trabalhá-los.

«Os comerciantes marítimos, os marinheiros e os pilotos conduzem por mar «uma quantidade imensa de materiais; os almocreves, os carroceiros, «levam-nos por terra; os carpinteiros de carros, os cordoeiros, os que «arrancam a pedra, os albardeiros, os calceteiros, os mineiros, exercem, à «porfia, a sua indústria.

«E cada ofício tem ainda, como um general do exército, às suas ordens, um «grupo de trabalhadores sem profissão determinada, que são como um «corpo de reserva e que ele emprega como auxiliares.

«Assim, todas as idades e todas as condições são chamadas a compartilhar «na abundância que estes trabalhos espalham por toda a parte.»

Plutarco, Péricles, Reformador de Atenas (429 a.C.),
Trad. A- Lobo Vilela, Lisboa, Ed. Inquérito Lda, p.30-31

julho 02, 2013

Plutarco


 Dracma de prata ateniense. A coruja é um animal associado a deusa Atena
e personifica a sabedoria. Os dracmas atenienses se tornaram
uma poderosa moeda no mundo grego. 


«Péricles, por seu turno [argumentando contra os seus opositores], mostrava aos atenienses que não tinham que prestar contas aos aliados do dinheiro que deles recebiam.

«Nós combatemos, dizia ele, em sua defesa, e afastamos-lhes os bárbaros «das fronteiras; eles não fornecem para a guerra n em cavalos, nem «galeras, nem soldados; contribuem apenas com dinheiro que, uma vez «pago, não pertence mais àqueles que o entregam, mas sim aos que o «recebem, os quais não são obrigados senão a cumprir as condições que se «impõem recebendo-o. A cidade, abundantemente provida de todos os «meios de defesa que a guerra exige, deve empregar estas riquezas em «obras que, depois de concluídas, lhe assegurem uma glória imortal. «Oficinas de toda a espécie postas em actividade, o emprego e a fabricação «de uma quantidade imensa de matérias que alimentam a indústria e as «artes, um movimento geral que utilize todos os braços: tais são os «recursos incalculáveis que estas construções proporcionam já aos «cidadãos, que quase todos recebem, deste modo, salários do tesouro «público e é assim que a cidade tira, de si mesma, a sua subsistência e o seu embelezamento.»»

Plutarco, Péricles, Reformador de Atenas (429 a.C.),
Trad. A- Lobo Vilela, Lisboa, Ed. Inquérito Lda, p.29-30