«De um modo geral, consideramos que um objecto que existe é um objecto que é percebido ou que poderia sê-lo. É, portanto, dado numa experiência real ou possível. Somos livres de construir a ideia de um objecto ou de um ser, como o geómetra faz com uma figura geométrica; mas só a experiência estabelecerá se ele existe efectivamente fora da ideia assim construída.
Dir-me-ão que é aí que está toda a questão, e que se trata precisamente de saber se um certo Ser não se distinguiria de todos os outros por ser inacessível à nossa experiência e, contudo, tão real como os demais. Posso admiti-lo por um instante, embora uma afirmação desse género, e os raciocínios que se lhe acrescentam, me pareçam implicar uma ilusão fundamental. Mas faltará estabelecer que o Ser assim definido, assim demonstrado, é de facto Deus.
Alegar-se-á que o é por definição, e que somos livres de dar às palavras que definimos o sentido que entendermos? Admiti-lo-ei uma vez mais, mas se se atribuir à palavra um sentido radicalmente diferente daquele que comummente tem, será a um objecto novo que ela se aplicará; os racicínios que se fizerem deixarão de referir-se ao antigo objecto; teremos de entender, portanto, que é de outra coisa que se está a falar.
Tal é precisamente o caso, em geral, quando a filosofia fala de Deus. Trata-se tão pouco do Deus em que pensa a maior parte dos homens que, se por milagre, e contra a opinião dos filósofos, o Deus assi definido descesse ao campo da experiência, ninguém o reconheceria. Estática ou dinâmica, a verdade é que a religião o tem sobretudo por um Ser que pode entar em relação connosco: ora é disso que é incapaz o Deus de Aristóteles, adpotado com algumas modificações pela maior parte dos seus sucessores.
Sem entrarmos aqui num exame aprofundado da concepção aristotélica da divindade, digamos simplesmente que ela parece suscitar uma dupla questão: 1º porque pôs Aristóteles como primeiro princípio um Motor Imóvel, Pensamento que se pensa a si mesmo, fechado em si mesmo, e que não age senão por meio da atracção da sua perfeição? 2º porque foi que, tendo posto este princípio, Aristóteles lhe chamou Deus?
Mas a resposta é fácil nos dois casos: a teoria platónica das Ideias dominou todo o pensamento antigo, enquanto esperava o momento de penetrar a filosofia moderna; ora, a relação do primeiro princípio de Aristóteles é a mesma que Platão estbeleceu entre a Ideia e a coisa.
Para quem não vê nas ideias mais que produtos da inteligência social e individual, nada há de surpreendente em que ideias com um número determinado, imutáveis, correspondam às coisas indefinidamente variáveis e mutantes da nossa experiência: arranjamos, com efeito, maneira de descobrir semelhanças entre as coisas apesar da sua diversidade, e para assumir sobre elas pontos de vista estáveis apesar da sua instabilidade; obtemos assim ideias sobre as quais temos domínio ao passo que as coisas nos escorregam por entre as mãos. Tudo isto é de fabrico humano.
Mas aquele que começa a filosofar, quando a sociedade levou já bastante longe o seu trabalho, e descobre os respectivos resultados armazenados na linguagem pode sentir-se ferido de admiração por este sistema de ideias, pelo qual as coisas parecem regular-se.
Não seriam as ideias, na sua imutabilidade, modelos que as coisas mutantes e moventes se limitam a imitar? Não seriam a realidade verdadeira, e mudança e movimento não traduziriam a incessante e inútil tentativa de coisas quase inexistentes, correndo de certo modo atrás de si mesmas, em vista de coincidirem com a imutabilidade da Ideia?
Compreende-se, assim, que tendo posto acima do mundo sensível uma hierarquia de Ideias dominadas por essa Ideia das Ideias que é a Ideia do Bem, Platão tenha julgado que as Ideias em geral, e por maioria de razão o Bem, agiam mediante a atracão da sua perfeição. Tal é precisamente, segundo Aristóteles, o modo de acção do Pensamento do Pensamento, que não deixa de ter relação com a Ideia das Ideias.
É verdade que Platão identificava esta última com Deus: o Demiurgo do Timeu, que organiza o mundo, é distinto da Ideia do Bem. Mas o Timeu é um diálogo mítico; o Demiugo não tem, portanto, senão uma semi-existência; e Aristóteles, que renuncia aos mitos, faz coincidir com a divindade um Pensamento que mal chega a ser, dir-se-ia, um Ser pensante, e ao qual nós chamaríamos Ideia de preferência a Pensamento.
Sob este aspecto, o Deus de Aristóteles nada tem de comum com os que os gregos adoravam; também não se assemelha mais ao Deus da Bíblia, do Evangelho. Estática ou dinâmica a reiligião apresenta à filosofia um Deus que suscita problemas completamente diferentes.
No entanto, foi ao primeiro que a metafísica em geral atendeu, ainda que dispondo-se a adorná-lo com este ou aquele atributo incompatível com a sua essência.
Porque não foi procurá-lo na origem? Tê-lo-ia visto formar-se através da compressão de todas as ideias numa só. Porque não considerou estas ideias, por seu turno?
Teria visto que servem antes de mais para preparar a acção do indivíduo e da sociedade sobre as coisas, que é para isso que a sociedade as fornece ao indivíduo, e que erigir em divindade a sua quintessência consiste muito simplesmente na divinização do social.
Porque não analisou, enfim, as condições sociais de uma tal acção indivídual, e a natureza do trabalho que o indivíduo leva acabo com o auxílio da sociedade?
Teria constatado que se, para simplificar o trabalho e também para facilitar a cooperação, começamos por reduzir as coisas a um pequeno número de categorias ou de ideias traduzíveis em palavras, cada uma dessas ideias representa uma propiedade ou um estado estável colhido ao longo de um devir: o real é movente, ou antes movimento, e nós não percebemos senão continuidades de mudança; mas para agir sobre o real, e em particular para levar a bom termo o trabalho de fabrico que é o objecto próprio da inteligência humana, devemos fixar estádios por meio do pensamento, do mesmo modo que esperamos por alguns instantes de abrandamento ou de paragem relativa para disparar sobre um alvo móvel.
Mas estes repousos, que não são mais que acidentes do movimento e que se reduzem de resto a puras aparências, estas qualidades que não são mais que instantâneos tomados sobre a mudança, tornam-se aos nossos olhos o real e o essencial, justamente porque são de molde a interessar a nossa acção sobre as coisas.
O repouso torna-se assim para nós anterior e superior ao movimento, que não passaria de uma agitação visando alcançá-lo. A imutabildade estaria assim acima da mutabilidade, que não seria senão uma deficiência, uma privação, uma busca da forma definitiva.
Bem mais ainda, é por esta distância entre o ponto onde a coisa é e aquele onde deveria, onde quereria ser, que se irá definir e até mesmo medir o movimento e a mudança. A duração torna-se assim uma degradação do ser, o tempo uma privação da eternidade.
É toda esta metafísica que a concepção aristotélica da divindade implica. Consiste em divinizar tanto o trabalho social que prepara a linguagem como o trabalho indivídual de fabrico que exige padrões ou modelos: o eidos (Ideia ou Forma) é o que corresponde a este duplo trabalho; depara-se, portanto, que a Ideia das Ideias ou Pensamento do Pensamento é a própria divindade.
Quando reconstituimos assim a origem e a significação do Deus de Aristóteles, perguntamo-nos como podem os modernos tratar da existência eda natureza de Deus embaraçando-se com problemas insolúveis que só se põem quando encaramos Deus do ponto de vista aristotélico e se consentirmos dar esse nome a um ser que aos homens nunca ocorreu invocar.»
Henri Bergson, As duas fontes da moral e da religião,
(«Les deux sources de la morale et de la religion», 1939),
Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Almedina, 2005 p.203-6.