fevereiro 28, 2013


«Que l’univers dans une parfaite stabilité
Connaisse des variations harmonieuses,
Que les éléments en concurrence
Observent un pacte perpétuel,
Que Phébus emmène la lumière rose
Du jour sur son char d’or
Pour que Phébée commande aux nuits
Amenées par Vesper,
Pour que la mer insatiable contienne
Ses flots dans une limite déterminée,
Pour que les sols mouvants ne puissent
Se déployer sur de vastes étendues,
Voilá une série de phénomènes controlés
Par ce qui régit la terre et la mer
Et qui commande au ciel: l’amour.
Si jamais il relâche les rênes,
Lá où il règne aujourd’hui,
La guerre aura tôt fait de s’installer
Et le mécanisme actuellement mû
Avec cohérence et beauté
Ne pourra résister aux forces destructives.
C’est aussi l’amour qui maintient les peuples
Unis para un pacte inviolable,
C’est lui qui noue les liens sacrés
Du mariage par des vertueux rapports,
C’est également lui qui dicte ses lois
Aux compagnons fidèles.
O bienheureux genre humain
Si votre coeur obéit à l’amour
Auquel obéit le ciel.»

Boèce, Consolation de la Philosophie (524 d.C.),
Préface de Marc Fumaroli, Paris, Éditions
Payot & Rivages, pp.100-1

fevereiro 26, 2013


«Ainda que a Abundância, com o corno repleto,
derrame tantas riquezas
quantas as areias o mar agitado por violentos ventos faz
rolar,
quantos astros brilham num céu limpo,
nas noites estreladas,
e não volte atrás a mão, nem assim
o género humano deixará de se lastimar
com míseros queixumes.
Ainda que Deus acolha benevolente os votos,
pródigo de grandes quantidades de ouro,
e ornamente com preclaras honrarias os que ardentemente
as ambicionam,
nada disto será considerado suficiente,
mas a cruel ganância,
devorando aquilo que tinha perseguido,
inventa novas necessidades.
Que freios onde travar, com um limite fixo,
o desejo que se lança para diante de cabeça,
se quanto mais abundantemente tem, mais quer ter?
Nunca poderá ser rico o homem
que, temeroso e descontente, se julga necessitado.»

Boécio, Consolação da Filosofia («De consolatione Philosophiae», 524 d.C.), Trad. Luís M.G. Cerqueira, Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa, 2011, Livro 2, Metro 2, p.50-1


fevereiro 24, 2013


«Num consultório manhoso de um bairro lisboeta, duas mulheres esperam a chegada do médico, em Novembro de 1975. Nas ruas cheias o ambiente é tenso e sucedem-se as manifestações, naquela sala lúgubre elas estão sós consigo próprias, aguardando a hora de serem atendidas. A segunda a chegar mete conversa e descobre conhecer a sua ocasional «parceira»: ambas são do Porto, da Foz, de classe social muito diferente (a mãe de uma trabalhou para a mãe da outra) e compercursos de vida completamente distintos. E são estes percursos que, afinal, no fundo, também têm muito em comum, é o «retrato» mais íntimo das duas mulheres, que o leitor vai descobrindo através de magistrais diálogos, pungentes e divertidos, entre ambas — e, em simultâneo, interiores. Enquanto o médico não chega — e acabará mesmo por não chegar…»

Vasco Graça Moura, Duas Mulheres em Novembro,
Contos Inéditos Visão, Lisboa, 2006, texto da contracapa.

fevereiro 22, 2013

«Coimbra, com os altos e baixos da sua topografia íngreme e escuramente acanhada, era então um meio muito provinciano, uma rapariga vinda de fora e dita de boas famílias tinha de ir para um lar ou para casa de uma família respeitável, não podia sair sozinha à noite para não se arriscar a ficar completamente queimada pela má-língua, o curso de Românicas quase só tinha mulheres que se destinavam invariavelmente  ao professorado a não ser que casassem antes de concluí-lo e deixassem de pensar no canudo, os namoros eram o mais discretos possível, nem sequer se podia andar na rua de mãos dadas ou ir um parzinho ao cinema sem o inevitável «arame farpado» de mais alguém, enfim, coisas daquele tempo, segunda metade dos anos quarenta, entrada dos anos cinquenta, a seguir ao fim da guerra, qualidade de vida medíocre, hipocrisia moral generalizada, expectativas de mudança política em nome da democracia brandidas aqui e ali com todas as cautelas, gerandes discussões teóricas sobre a autenticidade da expressão artística e a função social da arte, medo da polícia, sobretudo medo da polícia, organização ainda imperfeita da esquerda comunista e da oposição unitária no meio académico e também alguns problemas complicados de implantação no meio operário, sobretudo na metade Norte do país.» 

Vasco Graça Moura, O Enigma de Zulmira,
Quetzal Editores, Lisboa/ 2002, pp.53-4

fevereiro 20, 2013


«A certa altura, apesar da chuva e da pressa, da violência da escuridão a desdobrar-se sem fim e da confusão do percurso, apeteceu-me sair da auto-estrada, meter por uma via secundária, percorrer sítios onde fosse forçado a abrandar e a olhar, sem a hipnose forçada das faixas brancas no alcatrão, mesmo sabendo que, de noite, pouco ou nada poderia avistar, mas precisava de ter consciência de que havia árvores nas bermas, de que atravessava povoações adormecidas, [ ] para depois ainda, voltar a sentir-me completamente só nessa luta contra os elementos como num corpo a corpo contra o tempo e o espaço e o próprio destino.»

Vasco Graça Moura, Meu amor, era de noite,
Quetzal Editores, Lisboa/ 2001, p.69

fevereiro 10, 2013


«Para compreender alguma coisa em filosofia e conhecer o verdadeiro alcance da razão é preciso investigar primeiro aquilo que torna possível a existência dos juízos certos, universais e necessários — juízos a priori —, em que se exprimem as relações experimentais entre as coisas, relações que não poderíamos atingir pela análise pura e simples das nossas ideias.

Kant descobriu e expôs esta justificação na Crítica da Razão Pura (1781); e nessa obra fundamental demonstra que a nossa maneira natural e comum de conhecer as coisas exige previamente que as coisas estejam submetidas ao princípio da causalidade, de modo geral, às condições a priori do conhecimento científico.

A análise de Kant não incide sobre as condições psicológicas em que a consciência humana conhece os objectos, mas sobre outras condições mais remotas desse conhecimento.

Efectivamente, o facto psicológico é já em nós qualquer coisa de organizado; antes da impressão sensível, a percepção deve ser uma dispersão sem lei, uma diversidade sem nexo.

O acto primeiro da sensibilidade consiste, pois, na síntese prévia dessa diversidade pura e sem coesão; mas a síntese dos elementos indefiníveis não é mera justaposição ou associação: é uma transformação de natureza.

A justaposição no espaço e a sucessão no tempo resultam desse acto; por ele a sensibilidade humana impõe à diversidade certas formas a priori, por intermédio das quais todas as coisas se nos dão a conhecer daí em diante.

Desta idealidade do espaço e do tempo(*) resulta que o nosso conhecimento é apenas de fenómenos, e não da realidade, da coisa em si: o númeno

«(*) O espaço e o tempo são apenas formas prévias, vazias e inertes que tornam simplesmente possíveis a medida e a localização. Para que surja através delas um objecto é preciso que a poeira de impressões que vai preencher essas formas seja agrupada pela nossa consciência. Mas este agrupamento não constitui ainda o conhecimento do objecto: é preciso que o pensamento una essas impressões e as reconheça como suas. A unidade provém de um acto do entendimento — não ligação psicológica dada na experiência, mas «apercepção transcendental», que é a condição de qualquer experiência, um «eu penso» anterior ao conhecimento. A unidade de um «eu» universal, que age em todos nós uniforme e irresistivelmente, é o fundamento da ordem que encontramos nas coisas. A mola do pensamento é a condição de possibilidade do objecto.»


Pierre Ducassé (1905-1983), As Grandes Correntes da Filosofia,
(«Les Grandes Philosophies», 1972) Trad. Álvaro Salema, Lisboa, Public. Europa-América, Colecção Saber nº 10, pp.88-89 e n.53

fevereiro 06, 2013

fevereiro 04, 2013


(continuação)

Cláudio exerceu também a censura, o que não se fazia há muito [ ], mas igualmente no desempenho destas funções mostrou irregularidade de carácter e de comportamento.
Ocupou-se sempre com a maior solicitude do abastecimento e segurança de Roma. [ ] Iniciou grandes trabalhos, embora se preocupasse mais com o número deles do que com a sua utilidade. Distribuiu frequentes vezes gratificações ao povo. Deu também muitos espectáculos magníficos [ ]. (p.282-85)

Em Roma e fora dela, reformou Cláudio ou restabeleceu ou instituiu muitos usos relativos às cerimónias religiosas, aos costumes civis ou militares, aos direitos das diferentes ordens do Estado [ ]. Regulamentou a promoção militar dos cavaleiros [ ]. Estabeleceu um soldo e um género de serviço fictício, a que deu o nome de supranumerário, que conferia um título sem funções. (p.287)

Muito jovem ainda, teve duas mulheres [ ]. Repudiou a primeira, ainda virgem, porque os pais dela tinham caído em desgraça junto de Augusto; a outra perdeu-a, por doença, no próprio dia fixado para a boda. Desposou em seguida Pláucia Urgulanila, de família triunfal, e depois Elisa Petina, filha de um consular.

De uma e outra se separou pelo divórcio: de Petina, por causa de faltas ligeiras; de Urgulanila, em virtude das suas vergonhosas devassidões ligeiras [ ]. Contraiu depois matrimónio com Valéria Messalina [ ]. Mas quando soube que além dos seus excessos e crimes [ ] mandou-a matar, declarando [ ] «que, como se saía mal nos casamentos, ficaria solteiro; e que, se violasse o seu juramento, consentia deixar-se matar [ ]».

Apesar disso, tratou, dentro de pouco, de nova união com a mesma Petina, a quem repudiara, e com Sólia Paulina, que fora casada com Caio César [Calígula]. Mas, seduzido pelos encantos de Agripina, filha de Germânico, seu irmão [falecido], [ ] subornou senadores, levando-os a proporem [ ] que ele fosse casado com ela, visto que aquela união ser de importância capital para o Estado. (p.288-89)

Teve filhos das suas três mulheres: de Urgulanila, Druso e Cláudia; de Petina, António; de Messalina, Octávio e Germânico, a que cognominou pouco depois de Britânico. Entre os libertos de quem mais se afeiçoou contam-se o eunuco Posides, a quem se atreveu a honrar com uma lança sem ferro [recompensa militar], na presença de soldados valorosos [ ]. (p.289)

Governado [ ], pelos seus libertos e pelas esposas, viveu mais como escravo que como imperador. Dignidades, comandos, impunidades, suplícios, tudo isto ele distribuiu para satisfazer os seus desejos e caprichos, e as mais das vezes sem dar por tal. (p.290-91)

Não deixava de haver em toda a sua pessoa um certo ar de grandeza e dignidade, quer de pé quer sentado, mas principalmente quando em repouso. [ ] De saúde má, desde que tomou conta do império, melhorou, salvo no que toca ao estômago [ ]. Organizou grandes e frequentes banquetes [ ]. Estava sempre pronto a comer e a beber a qualquer hora e em qualquer lugar. (p.291-92-93)

Amou apaixonadamente as mulheres, mas nunca teve comércio amoroso com homens. Apreciava muito os jogos de azar; chegou mesmo a publicar um tratado sobre esta arte. Deu provas de um natural cruel e sanguinário tanto nas pequenas como nas grandes coisas. [ ] Mas o traço mais saliente do seu carácter era desconfiança e o medo. [ ] O seu amor por Messalina, por mais ardente que fosse, resistiu menos ao ressentimento dos seus ultrajes que ao receio das suas maquinações [ ]. (p.298)

Para o fim da vida, deu Cláudio provas evidentes de arrependimento por ter casado com Agripina e adoptado Nero. Um dia em que os seus libertos celebravam na sua presença a equidade de uma sentença contra uma mulher adúltera, disse-lhes ele «que a sorte lhe havia dado também esposas impúdicas, mas não impunes».»

Suetónio, Os Doze Césares,
trad. e notas João Gaspar Simões
Lisboa, Biblioteca editores Independentes, 2007

fevereiro 02, 2013


«Cláudio [-10 a.C.; 54 d.C.] nasceu em Lugduno [Lion, França] [ ], nas calendas de Agosto [ ] e foi chamado Tibério Cláudio Druso. [ ] Durante quase toda a sua infância e adolescência teve de lutar contra teimosas enfermidades [ ] que tanto lhe enfraqueceram o espírito e o corpo.

No entanto, desde a juventude se consagrou ao estudo das letras gregas e latinas com zelo apreciável, e ocasiões houve em que se exprimiu em público nas duas línguas. Apesar destas provas de saber, não conseguiu, todavia, alcançar considerações nem suscitar melhores esperanças. (p.265)

Sua mãe Antónia a cada passo dizia que ele era um monstro, que não fora acabado, mas apenas esboçado pela natureza; [ ] Sua avó Augusta tratou-o sempre com o maior desdém, só lhe dirigia a palavra em raras ocasiões e quando tinha algo que dizer-lhe fazia-o através de uma carta lacónica e dura ou por interposta pessoa. [ ] (p.265-66)

Depois de assim passar a maior parte da sua vida, Cláudio foi imperador aos cinquenta anos, graças a um acaso extraordinário. Repelido pelos assassinos de Calígula, no momento em que estes afastavam a turba, como se o imperador quisesse estar só, Cláudio refugiara-se num pavilhão conhecido com Hermeum, e, pouco depois, transido de pânico, ao ouvir falar no assassínio, à socapa esgueirou-se até uma galeria próxima e ali se escondeu, embrulhando-se no reposteiro que colgava da porta. (p.270-71)
Estando assim escondido, um soldado, que andava de um lado para outro, viu-lhe os pés, quis saber de quem se tratava, reconheceu-o, fê-lo sair dali e como Cláudio, assustado, se lhe lançava aos pés, saudou-o chamando-lhe imperador. Depois conduziu-o até junto dos seus companheiros [ ] que o colocaram numa liteira [ ], pegaram nela aos ombros e levaram-na até ao acampamento. [ ](p.271)

Mas na manhã seguinte, o Senado [ ] vendo que o povo pedia em altos gritos um chefe único, apontando para ele, deixou que os soldados armados prestassem juramento a Cláudio, o qual prometeu a cada um destes quinze mil sestércios. Eis como ele foi o primeiro dos Césares a comprar a peso de ouro a fidelidade das legiões.

Já estabelecido no poder, [ ] outorgou uma amnistia geral e completa, que observou religiosamente. Apenas mandou executar um pequeno número de tribunos e centuriões que havia tomado parte na conjura contra Caio [Calígula], tanto a título de exemplo como por saber que eles tinham exigido também a sua morte. (p.272-74)

Sóbrio na escolha de honras e no exercício do poder, absteve-se de usar o título de Imperador e recusou aceitar todas as distinções excessivas. [ ] Exerceu quatro consulados [ ]. Nem sempre seguia as leis à letra, tornando-as mais suaves ou mais severas, segundo a justiça do caso ou segundo os seus impulsos. (p.276-78-79-80)

(continua)
Suetónio, Os Doze Césares,
trad. e notas João Gaspar Simões
Lisboa, Biblioteca editores Independentes, 2007