fevereiro 22, 2013

«Coimbra, com os altos e baixos da sua topografia íngreme e escuramente acanhada, era então um meio muito provinciano, uma rapariga vinda de fora e dita de boas famílias tinha de ir para um lar ou para casa de uma família respeitável, não podia sair sozinha à noite para não se arriscar a ficar completamente queimada pela má-língua, o curso de Românicas quase só tinha mulheres que se destinavam invariavelmente  ao professorado a não ser que casassem antes de concluí-lo e deixassem de pensar no canudo, os namoros eram o mais discretos possível, nem sequer se podia andar na rua de mãos dadas ou ir um parzinho ao cinema sem o inevitável «arame farpado» de mais alguém, enfim, coisas daquele tempo, segunda metade dos anos quarenta, entrada dos anos cinquenta, a seguir ao fim da guerra, qualidade de vida medíocre, hipocrisia moral generalizada, expectativas de mudança política em nome da democracia brandidas aqui e ali com todas as cautelas, gerandes discussões teóricas sobre a autenticidade da expressão artística e a função social da arte, medo da polícia, sobretudo medo da polícia, organização ainda imperfeita da esquerda comunista e da oposição unitária no meio académico e também alguns problemas complicados de implantação no meio operário, sobretudo na metade Norte do país.» 

Vasco Graça Moura, O Enigma de Zulmira,
Quetzal Editores, Lisboa/ 2002, pp.53-4

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