agosto 31, 2012


«É claro que Você pode pegar nisto [que lhe escrevo], dar-lhe alguma cor local, misturar com algumas idas ao Casino Estoril e umas portas entreabertas, trocas de olhares sobre a mesa de um restaurante, conversas de espiões alemães com o embaixador do Eixo, meter um ou dois negociantes de volfrâmio em competição, e um sujeito de gabardine a olhar de viés e a agir na sombra, com a cumplicidade de qualquer engraxador ou moço de recados. O chapéu dos protagonistas, agentes secretos ou espiões, fica sempre melhor descaído sobre os olhos. É um efeito exterior de ocultação do olhar que ajuda a traduzir o que lhes vai por dentro e dá um toque mais perigosamente enigmático.»

:)
Vasco Graça Moura, A morte de ninguém,
Lisboa, Quetzal, 1998, p.74


agosto 29, 2012


«Para concluir este assunto, devemos por um momento considerar o ponto em que a coragem do comandante trava uma espécie de conflito com a sua razão.

Se, por um lado, o altivo orgulho de um conquistador vitorioso, se a vontade inflexível de um espírito naturalmente obstinad, se a resistência valorosa de nobres sentimentos não querem ceder o campo da batalha onde vão perder a honra, contudo, por outro lado, a razão aconselha a não perder tudo, a não se arriscar no jogo até à última, mas antes a guardar tanto quanto é necessário para uma retirada ordeira.

Por mais elevadas que queiramos considerar a coragem e firmeza na guerra, e por menor que seja o prospecto de victória, contudo,há um ponto para além do qual a perseverança pode apenas ser dhamada loucura desesperada e que, portanto, não pode ganhar a aprovação de nenhum crítico.

Na mais famosa de todas as batalhas, a de Belle-Alliance [Waterloo], Bonaparte gastou as suas últimas reservas num esforço para recuperar uma batalha que ultrapassara já o ponto de poder ser recuperada. Gastou o seu último vintém e, qual mendigo, abandonou tanto o campo de batalha como a coroa.»

Livro IV, Capítulo 9 p. 240-1 (a decisão de desistir da luta numa batalha)

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agosto 23, 2012


«Não pode travar-se nenhuma batalha que não seja por consentimento mútuo; e nesta ideia, que constitui toda a base de um duelo, está o fundamento de uma certa fraseologia usada pelos escritores históricos, a qual conduz a muitos conceitos indefinidos e falsos.

Segundo a opinão desses escritores a que nos refrimos, tem acontecido com frequência que um comandante proponha a outro uma batalha, e que este último a não tenha aceite.

Mas a batalha é um duelo muito modificado, e o seu fundamento não está apenas num mútuo desejo de luta, isto é, no consentimento, mas antes nos objectivos que estão ligados a essa batalha: estes sempre pertencem a um todo muito maior, pois até o todo da guerra, considerado como uma «unidade de combate», tem objectivos e condições políticas que pertencem a uma gama mais elevada.

O mero desejo de se vencerem uns aos outros vai cair numa relação absolutamente subordinada, ou antes, deixa completamente de ser algo por si próprio e transforma-se apenas no nervo que transmite o impulso para a acção, vindo de uma vontade superior.»

op.cit.,Livº IV,Cap.8, p.233 (o consentimento mútuo de batalhar)

agosto 19, 2012


«Quanto mais nos elevamos numa posição de comando, tanto mais a mente, compreensão e penetração predominam na actividade e tanto mais, portanto, a ousadia, que é propriedade dos sentimentos, é mantida em sujeição, e por isso a encontramos tão raramente nos postos mais elevados.

Mas então, tanto mais deveria ser admirada.

A ousadia dirigida por uma inteligência dominante, é a marca do herói: esta ousadia não consiste em aventurar-se directamente contra a natureza das coisas, num perfeito desprezo pelas leis das probabilidades mas, uma vez feita uma escolha, na rigorosa aderência a esse cálculo superior, que o génio, o tacto do julgamento, verificou com a velocidade do raio.

Quanto mais asas a ousadia emprestar à mente e ao discernimento, tanto mais longe alcançarão no seu voo, tanto mais compreensível será a vista geral, tanto mais exacto o resultado, mas certamente que sempre apenas no sentido que, com maiores objectivos, maiores são os perigos com eles relacionados.

O homem vulgar, sem falar nos fracos e irresolutos, chega a um resultado exacto na medida em que isso for possível sem uma demonstração ocular, no máximo depois de diligente reflexão no seu aposento, à distância do perigo e da responsabilidade.

Se o perigo e a responsabilidade começarem a cercá-lo em todas as direcções, então perde o poder de visão compreensivo e se, por influência dos outros, retém este em certa medida, sempre perderá o seu poder de decisão, porque nesse ponto ninguém o poderá ajudar.»

op.cit.,Livro III, Capítulo 6, p. 175 (a ousadia)

agosto 12, 2012



«A influência dos princípios teóricos sobre a vida real é fruto mais da crítica que da doutrina, porque, como a crítica é uma aplicação da verdade abstracta a acontecimentos reais, ela não só traz esta verdade para mais próximo da vida, como também, com a constante repetição da sua aplicação, acostuma mais o entendimento a tais verdades. Achamos, por isso, necessário fixar o ponto de vista da crítica próximo do da teoria.

Da simples narração de uma ocorrência histórica que coloca os acontecimentos por ordem cronológica ou, no máximo, toca de leve nas suas causas mais imediatas, separamos o crítico.

Neste crítico podem observar-se três diferentes operações mentais.

Primeiro, a investigação histórica e a determinação de factos duvidosos. Isto é pesquisa histórica pura, e nada tem de comum com a teoria.

Em segundo lugar, o ligar os efeitos às causas. Esta é a verdadeira investigação crítica; é indispensável para a teoria, porque tudo aquilo que na teoria tem de ser estabelecido, justificado ou apenas explicado pela experiência, só deste modo pode ser determinado.

Em terceiro lugar, o testar dos meios empregados. Isto é crítica propriamente dita, onde se inclui louvor e censura. É aí que a teoria ajuda a história, ou antes, os ensinamentos que dela se podem derivar.

Nestas duas partes estritamente críticas do estudo histórico, tudo depende de seguir o curso dos factos até aos seus elementos primários, ou seja, até verdades indubitáveis e não, como é muito vezes feito, parar a meio do caminho em qualquer assunção ou suposição arbitrária.

op. cit., Livro II, Capítulo 5, p. 129 (a crítica)

agosto 09, 2012


«A arte da guerra assim considerada no sentido limitado, novamente se divide em táctica e estratégia. A primeira ocupa-se com a forma do combate em separado, a última com a sua utilização. Ambas estão relacionadas com as circunstâncias das marchas, acampamentos e aquartelamentos apenas através do combate, e estas circunstâncias são tácticas ou estratégicas conforme se relacionam com a forma ou a significação da batalha.

Sem dúvida que muitos leitores irão considerar supérflua esta cuidadosa separação de duas coisas que estão tão próximas, como é a táctica e a estratégia, visto isso não ter qualquer efeito directo na condução propriamente dita da guerra. Certamente que admitimos que seria pedantismo procurar efeitos directos de uma distinção teórica num campo de batalha.

Mas a primeira obrigação de todas as teorias é esclarecer os conceitos e ideias que têm andado misturdos e, podemos dizê-lo, embaraçados e confusos, e só quando se estabelece uma compreensão correcta quanto a nomes e conceitos, é que se pode esperar progredir com clareza e facilidade e estar certos de que autor e leitores sempre verão as coisas do mesmo ponto de vista. A táctica e a estratégia são duas actividadesque mutuamente se entrelaçam no tempo e no espaço, e que ao mesmo tempo são actividades essencialmente diferentes, cujas leis interiores e mútuas relações não podem de modo algum ser inteligíveis até que se estabeleça uma clara concepção da natureza de cada actividade,

Todo aquele para quem isto nada signifique, ou deve repudiar toda a consideração teorética, ou o seu entendimento ainda não teve de sofrer com as ideias confusas e perplexas que se não apoiam em nenhum ponto de vista fixo, que não conduzem a qualquer resultado satisfatório, que umas vezes são maçadoras, outras fantásticas, outras vezes, ainda, pairam em generalidades vagas — ideias que muitas vezes somos obrigados a ouvir ou a ler sobre a condução da guerra, devido ao facto de, até agora, o espírito de investigação científica pouco se ter interessado por estes asssuntos.»

op.cit., Livro II, Capítulo 1, pp.100-101(a arte da guerra, a táctica e a estratégia)

agosto 05, 2012


«Mas na guerra, devido às muitas e fortes impressões a que a mente está exposta, e na incerteza de todo o conhecimento e ciência, mais coisas ocorrem para desviar um homem do caminho por onde se lançou, para o fazer duvidar de si próprio e dos outros, do que em qualquer outra actividade humana.

A avassaladora vista do perigo e do sofrimento facilmente leva a que os sentimentos ganhem ascendência sobre a convicção do raciocínio; e na penumbra que tudo envolve, uma vista profunda e clara é tão difícil que uma alteração de opinião é mais concebível e perdoável.

A todo o tempo temos de agir apenas sobre conjecturas ou suposições sobre a verdade. Por isso que em parte alguma as diferenças de opinião são tão grandes como na guerra, e a corrente de impressões, actuando contra as nossas próprias convicções, não cessa nunca de correr. Mesmo a maior impassibildade de espírito dificilmente está à prova delas, porque as impressões são poderosas por natureza e sempre actuam simultaneamente sobre os sentimentos.

Quando o discernimento é claro e profundo o resultado não pode ser outra coisa que não princípios gerais e vistas de acção de um alto nível; é nestes princípios que está ancorada a opinião em cada caso particular imediatamente sob consideração.

Mas manter-se dentro destes resultados da refexão passada, em oposição à corrente de opinião e fenómenos que o presente traz consigo é, justamente, a dificuldade.

Entre o caso particular e o princípio geral há muitas vezes um amplo espaço que nem sempre pode ser atravessado por uma cadeia visível de conclusões, e onde uma certa fé em si próprio é necessária e um certo cepticismo é bastante útil.

Nestes casos, muitas vezes, nada mais nos pode ajudar senão uma máxima imperativa, independente do raciocínio, e que logo o controla: a máxima é, em todos os casos duvidosos, deve aderir-se à primeira opinião, e não desistir dela até que a isso sejamos forçados por uma convicção clara.

Devemos crer firmemente na superior autoridade de máximas bem experimentadas, e sob a ofuscante influência de acontecimentos de momento, não esquecer que o seu valor é de qualidade inferior.

Com esta preferência que em casos duvidosos damos à primeira convicção e aderimos à mesma, as nossas acções adquirem aquela estabilidade e consistência que compõem aquilo a eu chamamos carácter.

A força de carácter conduz-nos a uma variedade ilegítimada mesma — a obstinação. Em casos concretos, é muitas vezes difícil dizer onde acaba uma e começa a outra; por outro lado, não parece difícil determinar qual a diferença no plano dos conceitos.

A obstinação não é um defeito do entendimento; usamos o termo para exprimir uma resistência contra o nosso melhor julgamento, e seria inconsistente culpar dela o entendimento, pois este é o poder de julgar.

A obstinação é defeito dos sentimentos ou do coração. Esta inflexibilidade da vontade, esta impaciência perante a contradição, tem a sua origem apenas numa particular espécie de egotismo, que coloca acima de qualquer outro prazer o de governar tanto os outros como a si próprio, apenas segundo o seu raciocínio.

Devíamos chamar-lhe uma espécie de vaidade se não fosse, decididamente, algo de melhor. A vaidade fica satisfeita com meras aparências, mas a obstinação baseia-se nop gozo da coisa.

Dizemos, pois, que a força de carácter degenera em obstinação sempre que a resistência a julgamentos opostos provém, não de melhores convicções ou da fé em alguma máxima de mais confiança, mas apenas de um sentimento de oposição.»

op, cit., Livro I, Capítulo 3 – pp.74-75 (a força de carácter)