agosto 05, 2012


«Mas na guerra, devido às muitas e fortes impressões a que a mente está exposta, e na incerteza de todo o conhecimento e ciência, mais coisas ocorrem para desviar um homem do caminho por onde se lançou, para o fazer duvidar de si próprio e dos outros, do que em qualquer outra actividade humana.

A avassaladora vista do perigo e do sofrimento facilmente leva a que os sentimentos ganhem ascendência sobre a convicção do raciocínio; e na penumbra que tudo envolve, uma vista profunda e clara é tão difícil que uma alteração de opinião é mais concebível e perdoável.

A todo o tempo temos de agir apenas sobre conjecturas ou suposições sobre a verdade. Por isso que em parte alguma as diferenças de opinião são tão grandes como na guerra, e a corrente de impressões, actuando contra as nossas próprias convicções, não cessa nunca de correr. Mesmo a maior impassibildade de espírito dificilmente está à prova delas, porque as impressões são poderosas por natureza e sempre actuam simultaneamente sobre os sentimentos.

Quando o discernimento é claro e profundo o resultado não pode ser outra coisa que não princípios gerais e vistas de acção de um alto nível; é nestes princípios que está ancorada a opinião em cada caso particular imediatamente sob consideração.

Mas manter-se dentro destes resultados da refexão passada, em oposição à corrente de opinião e fenómenos que o presente traz consigo é, justamente, a dificuldade.

Entre o caso particular e o princípio geral há muitas vezes um amplo espaço que nem sempre pode ser atravessado por uma cadeia visível de conclusões, e onde uma certa fé em si próprio é necessária e um certo cepticismo é bastante útil.

Nestes casos, muitas vezes, nada mais nos pode ajudar senão uma máxima imperativa, independente do raciocínio, e que logo o controla: a máxima é, em todos os casos duvidosos, deve aderir-se à primeira opinião, e não desistir dela até que a isso sejamos forçados por uma convicção clara.

Devemos crer firmemente na superior autoridade de máximas bem experimentadas, e sob a ofuscante influência de acontecimentos de momento, não esquecer que o seu valor é de qualidade inferior.

Com esta preferência que em casos duvidosos damos à primeira convicção e aderimos à mesma, as nossas acções adquirem aquela estabilidade e consistência que compõem aquilo a eu chamamos carácter.

A força de carácter conduz-nos a uma variedade ilegítimada mesma — a obstinação. Em casos concretos, é muitas vezes difícil dizer onde acaba uma e começa a outra; por outro lado, não parece difícil determinar qual a diferença no plano dos conceitos.

A obstinação não é um defeito do entendimento; usamos o termo para exprimir uma resistência contra o nosso melhor julgamento, e seria inconsistente culpar dela o entendimento, pois este é o poder de julgar.

A obstinação é defeito dos sentimentos ou do coração. Esta inflexibilidade da vontade, esta impaciência perante a contradição, tem a sua origem apenas numa particular espécie de egotismo, que coloca acima de qualquer outro prazer o de governar tanto os outros como a si próprio, apenas segundo o seu raciocínio.

Devíamos chamar-lhe uma espécie de vaidade se não fosse, decididamente, algo de melhor. A vaidade fica satisfeita com meras aparências, mas a obstinação baseia-se nop gozo da coisa.

Dizemos, pois, que a força de carácter degenera em obstinação sempre que a resistência a julgamentos opostos provém, não de melhores convicções ou da fé em alguma máxima de mais confiança, mas apenas de um sentimento de oposição.»

op, cit., Livro I, Capítulo 3 – pp.74-75 (a força de carácter)

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