março 25, 2008


William Etty - imagem in blog Modus Vivendi

Percursos

Hoje sinto-me vazia de mim
e
no afago da espera adivinho o percurso da sereia
no oceano de rumores que de meus sonhos,
flutuantes, se erguem.

Liberto desenhos, sinais,
expulso a voz do peito
e espero que sigas meu corpo e o alcances
já que eu o não consigo.

De mim a vontade desfaz-se num último lume,
precária respiração

Tornei-me nómada
e pergunto-me se não estarei agora em ti.

(Ana Sousa, Fragmentos)

março 21, 2008


Numa conversa com a menina bluegift e o 'menino' Peter,
no blog Conversas de Xaxa, enunciei a seguinte tese:
.
«A causalidade que vamos identificando na casualidade
caótica dos eventos, apenas se reporta à regularidade
pretérita das sequências em que os observamos,
e as suposições que permitem dedutivamente explicá-los,
podem averar-se não ser as únicas que os causam.»
.
Isto está devidamente formulado em Raymond Boudon,
O Justo e o Verdadeiro, Instituto Piaget, Lisboa, 1998,
.
p. 104-5: - Suponhamos uma teoria T deduzida
de um conjunto de premissas {P}.
.
Ora, pode acontecer que, na realidade,
a teoria de facto explicativa seja T', a qual ,
para além de {P}, inclua um conjunto
de proposições implícitas {P'},
ou seja T' = {P} + {P'}.
.
Assim, pode dar-se que T -> C, isto é,
que a conclusão C se deduza de T
conforme o saber científico e,
.
na realidade,
.
o que ocorre é T' -> C',
por nem todas as suposições teóricas
estarem devidamente explicitadas.
.
Ora, ignorando-se {P'}, a ciência concluirá,
erradamente, que T -> C' o que
não é o caso realmente.
.
:)

março 19, 2008


esculturas de Gustav Vigeland (1869-1943),
no Frogner Park em Oslo, na Noruega

Escultura de amanhã
Dentro de um secular sossego
nós somos
a escultura de amanhã

(trilhos de formiga
descem no cabelo
patinado de pó o coração)

Tu e eu
só estátuas de amanhã
Não temos na mão a flor
um livro uma espingarda
uma cadeira gasta onde morrer
E sem o monstro gótico apunhalado aos pés

(Todos os sonhos são de pedra ou bronze
não os meus de palha ou de papel)

Tu e eu
baixo-relevo
vendidos tocados expostos em vida
perseguidos pelos milionários
e pelos mortos talvez que invadiram já
o pedestal das estátuas

Tu e eu
elípticos de sexo
ontem gritada no teu peito
hoje secreto no meu ventre

deserdados da sombra
já sem gesto
escultura de amanhã


Luiza Neto Jorge

Cortesia imagem e poema,
blogs Modus vivendi e aluaflutua

março 17, 2008



«Era uma vez uma pedra que incutia a
sabedoria na cabeça dos insensatos.

Os melhores resultados obtinham-se
quando era lançada de bem alto.»

ana hatherly, 463 tisanas,
Quimera, 2006

março 12, 2008

Descartes


Geraldo de Barros

Descartes
Sou o único homem na terra e talvez não haja terra nem homem.
Talvez um deus me engane.
Talvez um deus me condenasse ao tempo, essa longa ilusão.
Sonho a lua e sonho os meus olhos que percepcionam a lua.
Sonhei a tarde e a manhã do primeiro dia.
Sonhei Cartago e as legiões que devastaram Cartago.
Sonhei Lucano.
Sonhei a colina do Gólgota e as cruzes de Roma.
Sonhei a geometria.
Sonhei o ponto, a linha, o plano e o volume.
Sonhei o amarelo, o azul e o vermelho.
Sonhei a minha infância adoentada.
Sonhei os mapas e os reinos e aquele duelo na alba.
Sonhei a inconcebível dor.
Sonhei a minha espada.
Sonhei Isabel da Boémia.
Sonhei a dúvida e a certeza.
Sonhei o dia de ontem.
Talvez não tenha tido ontem, talvez não tenha nascido.
Talvez sonhe ter sonhado.
Sinto um pouco de frio, um pouco de medo.
Sobre o Danúbio está a noite.
Continuarei a sonhar Descartes e a fé dos seus pais.

JL Borges, A cifra, in Obras Completas, Vol. III,
Círculo de Leitores, Lisboa, 1998, p. 309

março 06, 2008


«Estar o no estar contigo es la medida de mi tiempo.»
«Estar ou não estar contigo é a medida do meu tempo.»

JL Borges, El oro de los tigres («O ouro dos tigres»), 1972

março 04, 2008

Sonata ao Luar



Também vi que a minha forma humana não podia ser definitiva;
que durante a minha vida aqui eu devia ir sempre mais longe
nesse corpo para, mais tarde e noutro lugar, poder reconhecer
o meu espírito pelas marcas indeléveis que nele houvera
deixado — condição sine qua non para não me dissolver
no tudo desconhecido.

Maria Gabriela Llansol, Contos do mal errante,
ed. Rolim, Lisboa, 1986