março 12, 2008

Descartes


Geraldo de Barros

Descartes
Sou o único homem na terra e talvez não haja terra nem homem.
Talvez um deus me engane.
Talvez um deus me condenasse ao tempo, essa longa ilusão.
Sonho a lua e sonho os meus olhos que percepcionam a lua.
Sonhei a tarde e a manhã do primeiro dia.
Sonhei Cartago e as legiões que devastaram Cartago.
Sonhei Lucano.
Sonhei a colina do Gólgota e as cruzes de Roma.
Sonhei a geometria.
Sonhei o ponto, a linha, o plano e o volume.
Sonhei o amarelo, o azul e o vermelho.
Sonhei a minha infância adoentada.
Sonhei os mapas e os reinos e aquele duelo na alba.
Sonhei a inconcebível dor.
Sonhei a minha espada.
Sonhei Isabel da Boémia.
Sonhei a dúvida e a certeza.
Sonhei o dia de ontem.
Talvez não tenha tido ontem, talvez não tenha nascido.
Talvez sonhe ter sonhado.
Sinto um pouco de frio, um pouco de medo.
Sobre o Danúbio está a noite.
Continuarei a sonhar Descartes e a fé dos seus pais.

JL Borges, A cifra, in Obras Completas, Vol. III,
Círculo de Leitores, Lisboa, 1998, p. 309

3 comentários:

**Viver a Alma** disse...

O Borges!.... Incompaável!
Um gesto e um sorriso.
Mariz

**Viver a Alma** disse...

errata: incomparável

Este teclado dá cabo da minha reputação - srsrr

vbm disse...

:)