Em contraponto,
Torga implacável,
lúcido e inconformado:
BALADA DA MORGUE
Olho este corpo morto aqui deitado
E sinto impulsos de beijá-lo e ter
Como ele não sei que enfado
Por quem vive e quer viver
Que bruta sinceridade!
Que vaidade!
Que mentira! Que verdade!
Todo nu! Só tatuado
De livores,
Arco-íris gangrenado,
De mil cores.
Não é de mulher, não é;
Nem de homem, nem de animal
Irracional.
É de anjo predestinado
Que foi sacrificado
Para dar a noção exacta da renúncia.
Ai dos enclausurados em sarcófagos!
Ai de quem morre vestido!
Nesta luxúria da morgue
Há todo o satanismo
Que nos foi prometido
No final...
São os gestos parados,
Os olhos vidrados,
Os ouvidos tapados,
Os sexos castrados,
E por cima de tudo o silêncio das bocas.
Quero
Amar este sol da terra
Que mostra o calor do céu.
O alto céu onde mora
Um Deus que na mesma hora
Nos criou e nos perdeu.
Miguel Torga, Rampa (1930)
in "Antologia Poética"
Gráfica de Coimbra,
4ª ed.,1994, p.19
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