E pareceu-me que me afundava no insondável.
Mas tu pescaste-me cá p’ra fora com um anzol de ouro;
riste escarninha, quando eu te chamei insondável.
«É o que dizem todos os peixes», disseste tu;
«o que eles não podem sondar, é insondável».
Mas eu sou apenas mutável e bravia,
e em tudo mulher, e nada virtuosa.
Embora vós homens me chameis «profunda» ou
«fiel», ou «eterna», ou «misteriosa».
«Mas vós, homens, presenteais sempre
com as vossas próprias virtudes, ó virtuosos!»
Assim se ria ela, a incrível; mas eu nunca creio nela
nem no seu riso quando diz mal de si mesma.
E quando um dia eu estava a falar a sós com a minha brava
..................................................................................Sabedoria,
disse-me ela, colérica: «Tu queres, tu desejas, tu amas, e
é só por isso que tu louvas a Vida!»
Quase lhe ia dando uma má resposta,
dizendo a verdade à minha Sabedoria encolerizada;
e não há pior resposta
do que «dizermos a verdade» à nossa Sabedoria.
São assim as relações entre nós três.
Do fundo, do fundo amo apenas a Vida
— e, em verdade, amo-a mais quando a odeio!
Mas se gosto também da Sabedoria
(e por vezes demasiado),
é porque ela me faz lembrar muito a Vida!
Tem os olhos dela, o mesmo riso
e até a mesma caninha de pescar, de ouro:
que culpa tenho eu que ambas se pareçam tanto?
E quando uma vez a Vida me perguntou: Quem é essa
......................................................................Sabedoria?
— respondi vivamente: «Ah, sim! a Sabedoria!
Tem-se sede dela e nunca se fica satisfeito,
olha-se através de véus, lança-se a mão a redes.
Se é bela? Que sei eu!
Mas ainda serve de isca às carpas mais velhas.
É mutável e caprichosa;
muitas vezes a vi morder o beiço
e pentear-se a arrepia-pelo.
Talvez seja má e falsa,
e mulher em tudo;
mas quando diz mal de si mesma é quando é mais sedutora.»
Quando isto disse à Vida, riu-se ela maldosa, cerrando
............................................................................os olhos.
«De quem é que estás tu a falar?» — disse ela —
«de mim, sem dúvida?
E mesmo que tivesses razão —
é coisa que se me diga assim na cara?
Mas agora fala-me lá da tua Sabedoria!»
Ai, e então abriste de novo os olhos ó Vida amada!
E de novo me pareceu que me afundava no insondável.
:)))
(Assim cantou Zaratustra, poema em prosa)
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