Veredas são caminhos abertos, livres
entre florestas inóspitas ou suaves
e são símbolos de ruas de escassez
de cidades com os seus bairros de mágoa.
O século do Homem Só era este século,
em que o trabalho brilhou como uma estrela
e depois doeu com a cruz da miséria.
Fiama Hasse Pais Brandão, Cenas Vivas, in
"Peregrinação e Catábase" Relógio d'Água,
Lisboa, 1996, p.111
março 13, 2015
março 11, 2015
Visitei ontem as novas instalações da livraria Pó dos Livros
que mudou da Av. Marquês de Tomar para a de Duque d'Ávila.
É uma verdadeira livraria, inconfundível com essas tais lojas
de produtos tipográficos que aparentam ser livros e
não passam de lixo a reciclar, mês a mês.
Orgulhosamente, como livreiros, não desprezam
mostrar livros de edições de há muitos anos,
e creio que até, livros usados.
Enfim, objectos de leitura,
de espírito vivo.
Comprei um livro escrito há mais de dois mil anos
e que sempre desejei possuir e ler de fio a pavio
o Da Natureza das Coisas, de Lucrécio
o grande poema latino do materialismo atomista!
Pela sua beleza imponente, transcrevo os versículos 49-79.
Ei-los,
«Ora agora presta ouvidos disponíveis e um espírito sagaz,
desprovido de preocupações, à doutrina verdadeira, 50
para não desperdiçares desdenhosamente
a minha dádiva para ti preparada com amorosa dedicação.
Vou, de facto, começar a expor-te a derradeira explicação
do céu e dos deuses e revelarei os elementos primordiais da matéria
a partir dos quais a natureza forma todas as coisas, as faz crescer e as sus-
tenta
e em que a natureza as dissolve quando as mesmas são destruídas,
a que nós costumamos chamar matéria e corpos geradores,
ao explicar a doutrina, e sementes das coisas, e também lhes damos
o nome de corpos primordiais, porque é a partir deles que tudo existe.
Como a vida humana jazesse vilmente prostrada 60
diante dos olhos de todos, esmagada sob o peso da religião,
que assomava a cabeça das regiões do céu,
ameaçando os mortais com um aspecto horrível,
este homem grego foi quem em primeiro lugar ousou erguer
contra ela os olhos mortais e quem primeiro ousou fazer-lhe frente.
E a este não o demoveram nem o que se dizia dos deuses nem os raios
nem o céu com o seu bramido ameaçador, mas antes mais estimularam
a enérgica coragem do seu espírito, a ponto de desejar ser o primeiro
a despedaçar os ferrolhos firmemente fechados das portas da natureza, 70
e assim a vívida força do seu espírito obteve um triunfo completo
e ultrapassou em muitos as muralhas flamejantes do nosso mundo,
percorreu com a sua inteligência e ardor o universo imenso,
de onde nos traz, vitorioso, o conhecimento do que pode
e não pode nascer, e por fim por que leis está limitado o poder
de cada coisa e os seus marcos fundamente fixados.
Por isso a religião é agora, por sua vez, pisada sob os pés
dos homens e a vitória eleva-nos aos céus.»
:)
que mudou da Av. Marquês de Tomar para a de Duque d'Ávila.
É uma verdadeira livraria, inconfundível com essas tais lojas
de produtos tipográficos que aparentam ser livros e
não passam de lixo a reciclar, mês a mês.
Orgulhosamente, como livreiros, não desprezam
mostrar livros de edições de há muitos anos,
e creio que até, livros usados.
Enfim, objectos de leitura,
de espírito vivo.
Comprei um livro escrito há mais de dois mil anos
e que sempre desejei possuir e ler de fio a pavio
o Da Natureza das Coisas, de Lucrécio
o grande poema latino do materialismo atomista!
Pela sua beleza imponente, transcrevo os versículos 49-79.
Ei-los,
«Ora agora presta ouvidos disponíveis e um espírito sagaz,
desprovido de preocupações, à doutrina verdadeira, 50
para não desperdiçares desdenhosamente
a minha dádiva para ti preparada com amorosa dedicação.
Vou, de facto, começar a expor-te a derradeira explicação
do céu e dos deuses e revelarei os elementos primordiais da matéria
a partir dos quais a natureza forma todas as coisas, as faz crescer e as sus-
tenta
e em que a natureza as dissolve quando as mesmas são destruídas,
a que nós costumamos chamar matéria e corpos geradores,
ao explicar a doutrina, e sementes das coisas, e também lhes damos
o nome de corpos primordiais, porque é a partir deles que tudo existe.
Como a vida humana jazesse vilmente prostrada 60
diante dos olhos de todos, esmagada sob o peso da religião,
que assomava a cabeça das regiões do céu,
ameaçando os mortais com um aspecto horrível,
este homem grego foi quem em primeiro lugar ousou erguer
contra ela os olhos mortais e quem primeiro ousou fazer-lhe frente.
E a este não o demoveram nem o que se dizia dos deuses nem os raios
nem o céu com o seu bramido ameaçador, mas antes mais estimularam
a enérgica coragem do seu espírito, a ponto de desejar ser o primeiro
a despedaçar os ferrolhos firmemente fechados das portas da natureza, 70
e assim a vívida força do seu espírito obteve um triunfo completo
e ultrapassou em muitos as muralhas flamejantes do nosso mundo,
percorreu com a sua inteligência e ardor o universo imenso,
de onde nos traz, vitorioso, o conhecimento do que pode
e não pode nascer, e por fim por que leis está limitado o poder
de cada coisa e os seus marcos fundamente fixados.
Por isso a religião é agora, por sua vez, pisada sob os pés
dos homens e a vitória eleva-nos aos céus.»
:)
março 08, 2015
Basta ligar a televisão para se perceber o estado de indigência intelectual
e política a que chegou o país. A informação, que já foi sofrivelmente sensata,
embora parcial e sumária, tem hoje o critério editorial do antigo semanário “O
Crime” e da imprensa cor-de-rosa e desportiva.
Para começar, os portugueses são presenteados com horas do que antigamente
se chamava “casos crapulosos”: a facada, o tiro, o roubo, a violência
doméstica, histórias de tribunal, considerações de réus, de testemunhas, de
advogados, de “populares”, da polícia e de um ou outro comentador de serviço.
Depois do “crapuloso” vem o “acidente” e a catástrofe: desastres de avião e de
automóvel, incêndios, tempestades de vento ou neve, inundações, tudo o que meta
feridos, mortos, miséria e sangue.
Isto ocupa muito mais de metade do noticiário médio. O resto consiste numa
pseudo-reportagem desportiva, ou seja, no dia-a-dia do futebol. A televisão não
perde um jogo ou um golo que possa interessar a meia dúzia de fanáticos
de um clube qualquer. Segue os treinos. Esclarece sobre o “plantel” da equipa A
ou da equipa B, sobre os lesionados, sobre os castigados, sobre os “duvidosos”.
Entrevista treinadores na véspera e no minuto seguinte aos “clássicos” e não-
“clássicos” do campeonato. Jorge Jesus, por exemplo, é seguido com uma
persistência e um zelo com que não se segue nenhum ministro, o
primeiro-ministro ou Presidente da República (agora tão retirado que o boato da
sua prematura morte já corre pela província). E, através de tudo isto, Ronaldo,
sempre Ronaldo, infinitamente Ronaldo.
O tempo que sobra (e o jornal da TVI, para só falar nele dura uma hora e
meia) vai para festas: festas de cozinha, festas de vinho, festivais da
alheira, do presunto e do chouriço, de quando em quando as prodigiosas
fabricações do chefe A ou do chefe B e, continuamente, o sabor e o aroma dos
tradicionais produtos deste nosso querido Portugal (que não se vendem nos
supermercados, nem nas mercearias de Lisboa). Não admira que neste banho
cultural, a política tenha pouco a pouco adoptado a natureza da televisão. Com
um esforço sublime consegue concorrer, e colaborar, com os “valores” que regem
os noticiários e não pára de nos dar novos motivos de interesse e estima: a
barafunda Sócrates, a barafunda BES, os mistérios do “Visa Gold”, o velho
incumprimento fiscal de Passos Coelho, a prisão de um inspector da polícia, a
mentira impenitente e descarada no parlamento e fora dele. Portugal acaba com
certeza por se transformar num “filme negro” (anos 40), sem Bogart, nem Bacall.
E nós, pachorrentamente, assistimos na nossa cadeira.
Vasco Pulido Valente, hoje, no Público
março 05, 2015
MEMORANDO DE UMA FÁBULA
Pela manhã, a teia prendia gotas de água
como cristais e pérolas. Com os seus fios róseos
ela absorvia o Sol, e era o manto de ouro
da aranha magnífica. É uma fábula, sim,
e eu soube o fim quando vi o dolo e a morte.
Fiama Hasse Pais Brandão, Epístolas e Memorandos,
Relógio d'Água, Lisboa, 1996, p.29