novembro 17, 2013



«O Outro que era eu empenhava-se em tirar o máximo partido da sua estada em Lyon, não queria perder pitada. E, assim, frequentava também um curso de aperfeiçoamento nesta conhecidíssima zona têxtil, sobretudo orientado nos artefactos de seda.
 
La soirie lyonnaise a mille raisons de s’enorgueillir. Elle a séduit l’univers et sa royauté n’est pas morte. La richesse du musée des tissus en témoigne. Ses collections nous racontent la plus originale des histoires.  Il y là ume anthologie.
 
Isto dava-lhe de certeza o direito a um esplêndido emprego logo que regressasse ao seu país. Havia, pois, que aproveitar ao máximo as chances que o destino lhe prodigalizava, não perder um minuto, sair cedo depois do café au lait, deixar a barba para logo à tarde e enfronhar-se nas várias secções da fábrica onde actualmente estagiava.
 
O inverno em Lyon é muito duro, motivo que afastava o Outro da prática de desportos. Aborrecia-o um pouco aos fins de tarde. Le climat, c’est probable, explique en partie ces raffinements du bien manger, dérivatif aux heures sinistres.
 
Enquanto estava na fábrica nem dava pelo tempo passar, tal era o seu interesse em os fusos dos teares mais última palavra, ainda não exportados, que lhe fora dado contactar.
 
Peça por peça desmontava a unidade, untava com a almotolia que levara de Portugal, acarinhava os ganchos, nitidamente iguais, separava os carrinhos de linha, e desmontada a parte fundamental do tear, o coração de toda a máquina que produzia o tecido, ele ficava horas e horas embevecido, apaixonado por um estileto a que queria mudar o seu centro de orientação.
 
Quando tocavam para o almoço, servido na cantina da fábrica, ele sentia um sobressalto no outro mundo em que estava a viver, absorvido em trânsito técnico, alheio às mais elementares necessidades de nutrição. Nessas alturas vinha-lhe a saudade, recordava que nunca em França poderia comer uma boa bacalhoada nem mandar vir para a mesa uma alheira com grelos e ovo escalfado.
 
Surgia-lhe o estômago a exigir pitéus de outrora, debatia-se na cantina da fábrica com a lembrança de uns ovos moles que a Tia Luísa duas vezes ao ano mandava de Arouca, juntamente com umas morcelas que durante dias eram o asunto da conversa entre familiares e amigos.
 
E sopa? Era um sofrimento. Caldo verde nunca pudera ensinar ao cozinheiro da fábrica, renitente a sair da rotina de fritos e cozidos. À hora do almoço a Pátria surgia-lhe toda construída de retalhos culinários, enganava-lhe o apetite, crescia-lhe a água na boca, uma água que inundava o copo, saía do leito, e ficava nas margens do pensamento por longos minutos até ser absorvida pelo trabalho de estampagem e branqueação que ele à tarde tinha de fazer. [ ]
 
«Ao almoço não se fala de trabalho.» «Nem de mulheres», respondia o engenheiro-chefe de máquinas [ ]. O Outro não se expandia, raro comentava, menos ainda falava daquilo que tanto o preocupava à hora do almoço. Deixava passar, com uma candura e simpatia natural que atraía os franceses à sua mesa, olhs bagos postos em Trás-os-Montes, pastéis de bacalhau que atravessavam o espírito, miragem de um eldorado na terra.»
 
Ruben A., O Outro Que Era Eu (1966),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1991, p.55-56
 


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