novembro 27, 2013




«Lyon pode ser classificada como a cidade mais chata da França. Tem um comércio burguês e operário que vai de estreitas avenidas desembocar em acanhadas praças que desaguam noutras pequenas avenidas que levam, mais longe, ao aglomerado de fábricas que caracteriza uma cidade industrial.

Aqui produzem-se os tecidos de algodão e seda de renome nos mercados internos e externos. A gente rica vive fora da cidade, aguardando o Verão para aos magotes irem todos a Arcachon retemperar o físico e a paciência de um ano passado nos confins da alegria.

A monotonia do dinheiro preocupa-os no pé-de-meia, nos depósitos à ordem que todos avaram bem chorudos no Crédit Lyonnais. No entanto, uma espécir de vingança acorrenta-os à moleza, certa neutralidade transmitida pelo ouvir diário dos teares mecânicos da cidade onde nasceram.

O museu é de província, com muitas naturezas mortas; a Câmara Municipal — a que os operários portugueses chamam a Maria — não prima pela limpeza nem pelo interesse arquitectónico, excepto «l’élégante simplicité de sa cour intérieure l’emporte sur les ornamentations de sa façade principale»;

os cinemas são frequentados por fitas já roucas do sonoro e já lambidas nas margens; as árvores escondem-se de Inverno e os transeauntes têm a paixão da cerveja, tirada quase de mangueira de cada esquina da cidade;

os cães vadios não se habituaram ainda Lyon, nem mesmo as grandes cocottes de luxo, sempre enjoadas quando desembarcam na gare principal dos Caminhos de Ferro Franceses;

isto tudo para não falar já dos atletas de pesos e halteres que praticam os seus exercícios nos ginásios dos maiores centros de instrução de halterofilia do ocidente.

A educação física em Lyon resume-se a ligeiras corridas, saltos à corda, marchas às nove horas da manhã em frente da Prefeitura, raras vezes se salta ao eixo, e atirar a bola de uns para os outros torna-se um tormento, com o medo sempre presente que a bola caia no chão e fique suja.

O Outro que era eu aborrecia-se muito em Lyon, ao mesmo tempo que se sentia atraído pela frequência da nostalgia que as segundas cidades de qualquer país inoculam nos seus habitantes. [ ]

Quando estava abonado, convidava a família do cônsul para jantar na pensão onde se albergara e onde contava ficar hospedado até regressar novamente ao Portugal de antanho. [ ]

O Outro satisfazia-se no quaotidiano da cidade de província, quaotidiano que morre despedaçado no regular de bons dias e boas noites, que ao longo de gerações e gerações os seus naturais a abandonarem a cidade em direcção à capital.

O Outro já regularizou a sua vida ao rom-rom do levantar, comer, mexer e deitar. E, seja-se justo e afirme-se que em Lyon era fácil realizar os dados imprescindíveis da vida.

Cidade organizada para os habitantes se levantarem a horas bem matutinas, irem a correr lotar os transportes colectivos que enfileiram intermináveis nas estreitas avenidas directas à zona fabril; cidade mobilizada para as pessoas comerem em mesas de quatro, lerem o jornal que da capital trazia coisas boas, e regressarem à tarde para, de caneca em punho, beberem o chop na próxima esquina.

Ruben A., O Outro Que Era Eu (1966),
Assírio & Alvim, Lisboa, 1991, p.98-101.

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