março 23, 2013
«Queremos todavia insistir no significado essencial que tem para a ciência o alargamento que fazemos da realidade mediante a nossa imaginação construtiva. A realidade do físico, disseram já, não se reduz ao mundo fragmentário dos fenómenos, estende-se ainda a todo um mundo de objectos e fenómenos possíveis em que a razão reconhece uma ordem mais plausível, conforme às suas próprias exigências. Parece, à primeira vista que o cientista sonha, e no sonho procura realizar o ideal que não encontra à sua volta. Porque pretende dar vida aos fantasmas do seu pensamento, encontrando de novo os objectos que supomos arbitrariamente pensados?
E contudo este é o mais alto valor do postulado da racionalidade da ciência. Tudo o que é pensado como possível deve verificar-se, mais cedo ou mais tarde, no universo da realidade. O pensamento torna-se assim um olhar de ante-descoberta voltado para o desconhecido; o seu teorizar não é trabalho de vã abstracção, antes esforço para enriquecer a realidade dilatando-lhe os limites.
O princípio que entra aqui em jogo foi largamente empregado por Leibniz e por ele determinado com a «razão suficiente», e é fácil de ver que domina o desenvolvimento da ciência dos tempos mais remotos aos modernos.
Já Anaximandro de Mileto (cerca de 600 a.C.) [ — um dos mestres de Pitágoras, com Tales —] respondia às dúvidas dos que não compreendiam como a Terra possa estar isolada no espaço sem cair, dizendo que por estar colocada igualmente em relação aos outros corpos celestes não há razão para que caia de preferência para o alto do que para o baixo, para a direita ou para a esquerda. E por outro lado pensava que a realização das condições que dão origem ao nosso mundo não deve constituir um caso único, por isso infinitos mundos semelhantes viriam a produzir-se no espaço infinito e sucessivamente no tempo.»
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«A realidade fragmentária dos fenómenos deve ser pensada pelo físico dentro do quadro duma realidade possível, onde as causas operem por contiguidade no espaço e no tempo; e esta realidade física abrange dentro de si inclusive os factos da história. Quando nos volvemos a considerar a concatenação destes factos, somos obrigados precisamente a procurar a continuidade na ordem dos motivos humanos dos quais recebem o seu próprio significado. Uma acção responde a um objectivo, fora do qual não é inteligível; uma descoberta responde a uma ideia, e uma ideia supõe, em geral, todo um desenvolvimento anterior de ideias.»
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Federigo Enriques, O Pensamento Científico,
Trad. e Pref. de V. de Magalhães Godinho,
Lisboa, Cadernos Culturais Inquérito nº 45,
p.37-38; 63-54
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