Mostro este excerto onde se denuncia a manipulação da verdade a que os interesses económicos submetem a realidade dos povos, ocultando-lhes a causa e os causadores da sua miséria.
«Como em toda a África até à década de quarenta também na Etiópia, a alta imortalidade infantil tendia a manter estável a população. Para as mulheres africanas a perda de prole logo na primeira infância era um acontecimento de rotina pouco preocupante. Os sobreviventes eram cuidados e fontes de redobrado prazer. Esse método da natureza para manter estáveis as populações (e assegurar boa genética) parece rude face às bitolas de hoje. Surge, porém, uma questão pertinente: será preferível que uma criança morra pouco de pois de nascida — antes de poder sequer saber o que é a morte — ou ser salva para um subsequente falecimento lento e torturado numa curta vida de carência alimentar ou, ainda, como acontece a milhões no Subcontinente Indiano, viver os seus dias acorrentada ao local de trabalho?
Na Etiópia, não se punham tais dilemas. A meio do século XX, uma população estável e auto-suficiente era estimada em dezoito milhões.
Depois veio o dilúvio…
… da penicilina.
Reagiu tudo com entusiasmo:
— As mães, ao verem cinco, seis ou mais filhos a sobreviverem em vez dos habituais dois ou três.
— Os autoproclamados benfeitores e missionários desvanecidos com a resposta de Deus às suas preces.
— E as empresas farmcêuticas, essas, a engordar…
… e alguém fez contas ao custo e à logística, ainda que apenas de “alimentar” [ ], de todas as bocas em explosão? [ ]
E aconteceu que os 18 milhões de almas de 1950 deram origem a 36 milhões em 1981. Também aconteceu que aperfeiçoamentos farmacológicos fizessem já em 2004 os Etíopes ultrapassar os 72 milhões [ ]… o mesmo é dizer, de bocas.»
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«Quanto precede leva mais cedo ou mais tarde à pergunta do porquê da relutância dos média em dar a importância devida aos factores populacionais. Neste particular a primeira coisa a tomar em conta é que a vasta maioria dos média no mundo ocidental é privada e por isso tem que, de algum modo aferir as saus exteriorizações com a motivação do lucro — essencial à sua própria existência. Ora a espectadores e ouvintes pouco interessam as progressões numéricas. Deleitam-se, sim, com as grandes corrupções, os ataques de bombistas suicidas, as crises de fome aqui, ou ali, sempre devida a grandes secas, pragas de gafanhotos ou inundações (mas não à sobrepopulação!) tudo com a correspondente filmagem de crianças esqueléticas, bem apontada ao âmago dos instintos maternos e paternos. A inexorável progressão dos números que tudo condiciona pois essa não tem conteúdo emocional.»
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«Anos após a definição dos “direitos do homem” acrescentou a ONU um pronunciamento acerca dos “direitos das crianças”. Exigem elas vestuário, habitação, alimentos, educação e assitência médica. A utopia de ver generalizados estes direitos é evidente para qualquer um que veja noticiários televisionados. Neste contexto, porém, seria de indispensável coerência acrescentar o direito a “não nascer, sempre que os cinco demais direitos não estivessem assegurados”. Esse claro direito de não vir ao mundo apenas para sofrer, resulta mais imperioso sempre que se torne evidente que nem um só dos cinco direitos enunciados esteja assegurado. A inacção culposa dos média face a esta realidade, bem como — mais evidente e gravoso — a oposição de entidades religiosas ao seu cumprimento, são obviamente atentados aos universalmente proclamados direitos da crianças.»
Carlos Espírito Santo de Mello, O que Os
Média Não Dizem, («The Media’s Taboo
— An Essay on Population Growth», 2001)
Porto, Civilização Editora, 2005, p.19-20; 290; 292.
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