«Alguns perguntaram: criámos estes deuses ou foram eles que nos criaram?
É uma discussão muito antiga. Somos um sonho da divindade
ou cada um de nós um sonhador separado,
que evoca a sua própria realidade?
Embora não haja uma certeza, todos os nossos sentidos nos dizem
que existe uma única criação e que estamos contidos nela para sempre.
Ora, os cristãos impõem um mito final e rígido
àquilo que sabemos ser variado e estranho.
Nem sequer um mito, pois o Nazareno
existiu em carne e osso.
Ao passo que os deuses que adoramos
nunca foram homens; são, em vez disso,
qualidades e poderes, que se transformaram
em poesia para nossa edificação.
Com o culto do judeu morto, a poesia acabou.
Os cristãos desejam substituir as nossas belas lendas
pelo cadastro policial de um rabi reformista.
Com esse material impossível esperam fazer
uma síntese definitiva de todas as religiões conhecidas.
Agora apropriam-se dos nossos dias festivos.
Transformam divindades locais em santos.
Tiram bocados aos nossos ritos de mistério,
Especialmente aos de Mitra.
Os sacerdotes de Mitra são chamados «pais», «padres».
Então os cristãos chamam aos seus sacerdotes padres.
Imitam inclusivamente a tonsura, esperando impressionar
os conversos com os adornos dum culto antigo.
Agora começam a chamar ao nazareno «salvador» e «aquele que cura».
Porquê? Porque um dos nossos deuses mais amados é Asclépio,
A quem chamamos «salvador» e «aquele que cura».»
Gore Vidal, Juliano (1962),
P. Dom Quixote, Lisboa, 1990, pp. 82-3
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