outubro 14, 2009

Defendamo-nos. — Defendamo-nos de pensar que o mundo seja um ser vivo. Como se desenvolveria? De que se alimentaria? Como poderia crescer e multiplicar-se? ( ) Defendamo-nos até de pensar que o universo seja uma máquina; não foi certamente construído para um objectivo ( ). Defendamo-nos de supor por toda a parte a existência a priori de uma coisa tão bem definida como o movimento cíclico das constelações próximas da Terra; um olhar para a Via Láctea basta já para fazer nascer dúvidas ( ). A ordem astral em que vivemos é uma coisa excepcional; esta ordem e a medíocre duração que determina tornaram possível por sua vez esta excepção das excepções: a formação do orgânico. Mas o carácter do mundo é pelo contrário o de um caos eterno, não pelo facto de ausência de necessidade, mas pelo de uma ausência de ordem ( ). Ora como poderemos permitir-nos censurar ou louvar o universo! Defendamo-nos de lhe censurar uma falta de coração ou de razão, ou o contrário destas coisas: não é nem perfeito, nem belo, nem nobre, e não quer transformar-se em nada disso; não procura de forma alguma imitar o homem! Não é tocado por nenhum dos nossos juízos estéticos e morais! Não possui instinto de conservação, não possui qualquer instinto e ignora toda a espécie de lei. Defendamo-nos de dizer que eles existem na natureza. Essa só conhece necessidades: nela não há ninguém que ordene, ninguém que obedeça, ninguém que infrinja. Quando souberdes que não há fins, sabereis igualmente que não há acaso: porque é únicamente sob o olhar de um mundo de fins que a palavra «acaso» toma um sentido. Defendamo-nos de dizer que a morte é o contrário da vida. A vida não passa de uma variedade de morte, e uma variedade muito rara. ( ) Mas quando acabaremos com os nossos cuidados e as nossas precauções? Quando deixaremos de ser obscurecidos por todas estas sombras de Deus? Quando teremos completamente «desdivinizado» a natureza?

(Gaia Ciência, Livro III, § 109)

12 comentários:

alf disse...

Esta argumentação insere-se numa linha que visa o nosso sentimento de felicidade.

Certas rotinas que temos no nosso cérebro ligadas à nossa sobrevivência, como a do Medo, criam-nos uma sensação de angústia qd detectam coisas que não compreendemos. Aquilo que não compreendemos ou dominamos, para o Medo, encerra perigos potenciais.

Quem pensa que conseguirá encontrar respostas, reage a essa sensação pesquisando, torna-se um «descobridor» ou um «estudioso»; se tiver algum sucesso, essa rotina premia-lo-à com um pequeno orgasmo de felicidade porque cada aumento de conhecimento que conseguir; e isso irá torná-lo dependente dessa busca de conhecimento como acontece a qualquer viciado.

Se, pelo contrário, a pessoa não puder reagir dessa forma, reagirá convencendo-se de que essa sensação de angústia não tem razão de ser. E não tem razão de ser porquê?

Os argumentos costumam ser os seguintes:

1 - porque o Universo é demasiado complexo e está para além da nossa capacidade de compreensão.

2 - porque a cada resposta encontrada outra pergunta surgirá e, portanto, a demanda de compreensão não tem solução e é um caminho inútil que nunca resolverá a angústia da ignorancia

3- porque o universo é fruto do acaso, podia ser assim ou doutra maneira qualquer, o futuro será uma coisa qualquer, não há nada para compreender.

4 - porque o Universo é a obra de um Deus, é o Deus que temos de compreender e não o Universo

5 - porque o Universo existe para nos servir, não temos de o compreender, apenas de o usufruir.


O texto do post faz muitas confusões; por exemplo, quem disse que uma «máquina» tem de ter uma finalidade, ou um construtor?

O facto de as teorias actuais serem incapazes de explicar a formação do orgânico só nos permite concluir que seremos bastante burros e não que o orgânico é a excepção das excepções.

Está certo o texto quando recusa a antroporformização da percepção do universo; mas isso não tem nada a ver com a ideia de que tudo é consequência do «acaso».

Os defensores do «Acaso» ou de «Deus» são apenas os que desistiram de compreender o Universo, os que procuram esquivar-se ao Medo, iludir a sensação de angústia. Os Descobridores são os que não desistiram. São, por isso, muitas vezes, perseguidos por uns e outros.

vbm disse...

Olá, alf.

Gosto, teres lido este post.

Estou de partida por vários dias
para o Porto, não tenho tempo de ponderar os teus argumentos. Mas, fá-lo-ei depois de voltar.

Gostei daquilo que concordaste: desantropoformizar o universo :): tanta gente não compreende o que Copérnico tornou evidente! Ah, ainda olhei a tua afirmação sobre o orgânico: não te esqueças que Nietzsche não conhecia o que hoje sabemos do código genético, nem se vislumbrava a exploração do espaço.

Mas, volto depois.

Abraço,
Vasco

Ana Paula Sena disse...

Deixo-te um abraço também, Vasco :)

Até breve.

Lina Arroja (GJ) disse...

Vasco, foi um dos escolhidos para o divã. Quando regressar do Porto talvez lhe dê jeito descansar :)

vbm disse...

alf,

Não me parece que o texto de Nietzsche seja um raciocínio com vista a privilegiarmos a busca da felicidade em vez do conhecimento do mundo.

Parece-me, justamente, um guia de erros a evitar na inteligibilidade adequada do mundo: repudia o modelo do «mundo-organismo» e do «mundo-máquina» a que um modo de entendimento humano tende a servir-se para a sua compreensão. A ordem é rara no espaço e no tempo e nunca dará um fundamento verosímil da existência. Pensar moralmente o universo seria então o cúmulo do inapropriado: a natureza obedece a necessidades; não tem fins; nem necessita de memória: tudo se determina sem liberdade; nem a vida se distingue tanto assim da morte que não a tenha por destino certo!

O caminho a que o texto de Nietzsche me parece conduzir é sim o de adoptarmos uma postura de percepção do universo desantropomorfizada e, por essa via, razoavelmente capaz de produzir ensinamentos válidos até para a própria existência humana, e só nessa medida, promessa de eventual felicidade e perpetuação da espécie (melhorada).

vbm disse...

Olá, Ana Paula

Um gosto, voltar a este espaço de encontro.

:)

vbm disse...

Jóia,

Será um prazer, libertar
a imaginação... "no divã" :)

Não sei bem o que vá dizer,
mas vou ter dificuldade
em nomear bloggers
para a dita
terapia...

:)

bj,
v.

alf disse...

Na altura devia estar imerso no tipo de problemática que verti no meu comentário e terei equiparado algumas coisas do texto com outras coisas semelhantes que são defendidas por correntes que proclamam a inutilidade da procura de compreensão do Universo... foi uma interpretação enviezada da minha parte deste texto, que carece de uma análise subtil...

alf disse...

bem, continuando a pensar... há dois erros, dois enviezamentos frequentes: um é «antropomorfizar» o Universo; o outro é interpretar o universo não à nossa semelhança mas à nossa conveniência.

A imagem de um universo fruto de Acaso serve a nossa arrogância. Nós somos a única Inteligência neste caso. Tudo o resto é confusão, acasos sobre acasos.

Perceber que o Universo é «Inteligente», sem ser «divino», como tenho vindo a expor, é um soco na nossa arrogância. Mas é um grande progresso. Porque resulta de um pensamento menos enviezado aos nossos interesses, medos, desejos, conveniências.

Isto é quase como ser crente, ateu ou agnóstico.

vbm disse...

Eu tenho realmente de regressar ao teu curso; até o Peter já adopta as tuas ideias! :)

Sim, o Acaso não pode explicar a ordem e não a explica! Justamente, a organização da complexidade é uma manifestação neguentrópica, possível somente pelo enorme desperdício de energia que é a radiação do Sol, a qual é aproveitada na formação da vida, vegetal e animal, incluindo a elevação civilizacional que a inteligência do homem conseguiu.

O modelo-máquina e o modelo-organismo - na compreensão das coisas do mundo - serão deveras explicativos desde que realmente os objectos se relacionem objectivamente entre si segundo cadeias de causalidade e se complexifiquem segundo a composição de estrutura mais adequada ao meio em que se insere.

De resto, o Acaso é só o efeito do cruzamento de duas séries causais independentes (Cournot), o que pode originar a alteração de efeitos subsequentes.

Abomino o pan-psiquismo, porque noto a obtusa necessidade de uma enorme quantidade de efeitos mecânicos da natureza, e noto, contudo, os casos de adaptação inteligente dos viventes ao seu habitat. Mas o que mais aprecio na pura lógica dedutiva é dispensar-me de esperar de uma premissa verdadeira uma conclusão falsa.

alf disse...

meu curso?? Credo! é só o pensamento a esvoaçar...

De acordo com quase tudo. O Acaso tem o seu papel nos processos de Inteligência, mas são estes processos que produzem a evolução dos sistemas, não o Acaso isoladamente

essa qualidade da lógica dedutiva é importante, mas não é directamente aplicável à análise do universo. Numa dedução, partimos de premissas que são hipóteses, deduzimos uma conclusão e vamos verificar essa conclusão; se a conclusão estiver certa, isso habilita-nos a saber... nada! porque a validade da conclusão não implica a validade das premissas.

Um pouco como o Acaso só interessa como parte de um processo de Inteligência, também a dedução só interessa como parte de um processo mais complexo de pesquisar a verdade (eu tenho o meu, a que chamo «análise conexa»).

A insuficiência da dedução levou o Poincaré a chamar a atenção para a Indução, porque este é um processo que já nos permite saber algo que não sabíamos antes.

Deduções ad-hoc, como processos de acaso desenquadrados, só geram disparate. O que não invalida o que dizes: a dedução é uma ferramenta segura, desde que bem usada.

vbm disse...

Claro. A dedução só esmiuça o que estritamente decorre do que há, de modo certo. E, sim, de premissas erróneas podem deduzir-se conclusões quer falsas quer verdadeiras!

A inteligência na matéria animada decorre possivelmente da mobilidade eficaz no aproveitamento e adequação ao meio de que depende.