abril 10, 2009

Deliciosa e irónica radiografia
dos nossos contemporâneos mais jovens,
por Fernando Pinto do Amaral
:):



img: google's search

Zeitgeist

Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: «Então é assim»,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.


Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios, onde às escuras
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança «propostas» decisivas
e percorre as «vertentes» de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, pra conservarem
o equilíbrio físico e mental.


Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proibem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.
Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
«tropeço de ternura», queria ser
pelo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pela madrugada fora. No entanto,

assedia-me a acédia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa — ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o «espírito
do tempo» em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação «save»
e assim alcançarem a eternidade.

:))

in, livro duplo, frente e verso, poesia e prosa,
Poemas escolhidos (1990-2007); Contos;
Publicações Dom Quixote, Lisboa 2009

(Edição promocional da revista Visão
à venda nas tabacarias por € .50,
independente da compra
da revista.)

10 comentários:

Ana Paula Sena disse...

É um texto muito bom mesmo! De um tipo de crítica que faz falta.

Acho que vou ali ler um filósofo qualquer... tentar libertar-me do feitiço dos "meus contemporâneos"... desligar outro interruptor :))

Gostei imenso!

vbm disse...

:)

Eu também gostei muito desta crítica certeira. Sempre
embirrei com aquela néscia expressão: «Então é assim:...»

Irritante!

mdsol disse...

Gostei muito do texto. Nunca suportei o "Então é assim". Houve uma altura em que andava tão furiosa com essa expressão tonta e convencida que, pessoa que a dissesse, fica mal no meu catálogo...

:)))

vbm disse...

:))

É mesmo, msol, irritante e rídiculo!

Tinta Azul disse...

E não que que, "então", é mesmo assim?

:)

mdsol disse...

Só conhece a Foz? Balhamedeus! O Douro é das "coisas" mailindas que este rectângulo tem. À beleza da paisagem acrescent-se um trabalho do homem verdadeiramente notável...
Tem de ir por esse rio acima (como diria o Fausto)

:)))

vbm disse...

Não, já subi o rio, de comboio, de carro. Mas pra aí só uma ou duas vezes. E de barco, nunca fui. De qualquer modo, o Douro é lindíssimo visto do Porto, e visto de Gaia. Não é o mar da palha do Tejo, nem a extensão imensa do Amazonas entre as margens (22 km!), mas a proximidade ribeirinha do Douro a caminho da foz é de um encanto inigualável! :)

vbm disse...

Não, não, luazul, ele mostra que «então, não é assim»: que interessam as tendências das sociedades se cada vez mais se indiferenciam? Que importa falar se nada se diz? Que vale o prazer sem a volúpia dos sentidos? A alegria sem a causa natural? A morte saudável? A 'eternidade' digital:)? LOL

Tinta Azul disse...

pois..
é que: [então] não é assim!
:)))

vbm disse...

:) «[Então], não é assim», mas por razões dadas que, a não serem efectivas, destituem a conclusão, a qual passará, nesse caso, a «ser assim» :)) Vejamos: se as sociedades tenderem a diversificar-se progressivamente; se quando se fala se diz algo; se a volúpia dos sentidos passar a ser valorizada sobre o prazer imediato; se a 'alegria' não for atingida por receita médica, mas por causa natural e social; se a morte não for escamoteada, mas reconhecida como a sucessão natural das gerações; se a 'eternidade' for semeada no espírito dos que amamos e nos amam; então aí, com propriedade, ouviremos quem se disponha a transmitir-nos a sua experiência e saber, podendo com autoridade rara dizer: «Então, é assim:» :))