setembro 24, 2014

setembro 02, 2014

(continuação 2)

A  FOLHA  E  A  SOMBRA  DELA

      III

Mas na verdade não é bem assim.

No instante em que as duas se encontram,
a sombra morre sem mais consequências.

A folha porém, despojada da sombra,
levará muito mais tempo a morrer
e morrendo dissolver-se-á na terra,
servirá de nutriente a outras árvores,
que por sua vez darão as suas próprias folhas
que terão as suas próprias sombras
e que cada ano os ventos do Outono
pintarão de amarelo e soprarão para longe
com a sombra a persegui-las até ao reencontro

– deixando acaso uma folha solitária
com que esta fabula se repita e se renove
até ao fim dos tempos.


   a.m. pires cabral, gaveta de fundo,
   Lisboa, Tinta da China, 2013, p. 65

setembro 01, 2014

 (continuação 1)


A  FOLHA  E  A  SOMBRA  DELA

      II

Folha e sombra não são, é evidente,
feitas da mesma matéria, Mesmo assim
existe algo que as liga, uma espécie
de instável mas tenaz cordão umbilical.

Senão, vejamos.

Para maior facilidade, imaginemos
que está sol e faz vento,
e que nesse vento chega por fim a hora
de cair a folha de que vimos falando.

Observe-se: no momento em que a folha
se desprende e vem, revolvendo-se no ar
caprichosamente, em direcção ao solo

– a sombra faz exactamente a mesma coisa:
desprende-se também da sombra da árvore
e faz o seu caminho, repetindo ao rés-da-terra
os gestos e solavancos da folha no ar

– e converge para ela com sofreguidão,
como quem está há longo tempo
separado de si mesmo
e anseia por reunir-se.

E o encontro dá-se no preciso instante
em que a folha pousa no chão
e como que absorve a sua sombra,
reunindo-se as duas na completa
e decisiva identidade final
a que ambas aspiravam.

Ou talvez melhor: reavendo a folha
uma parte de si que andava ausente.

Parece isto uma coisa de Platão,
não parece?

   a.m. pires cabral, gaveta de fundo,
   Lisboa, Tinta da China, 2013, p. 63-4