fevereiro 11, 2009

«Eu ando a revisitar os lugares do meu passado.
Recrio o meu passado inventando-lhe a significação
que actualmente lhe confiro.

Há duas ideais de avenidas: a minha e a dos outros. ( )
Lá bebe-se café, come-se bolos, lê-se o jornal
e engatam-se miúdas.

( ) Entro, lá estão eles ao canto reforçando a evidência
das palavras transparentes que proferem. Lá está ela
no centro deles: a verdade eterna, o único sentido
científico que a humanidade possui. ( )

Olho-os com indiferença. ( ) Obviamente que algo
nos separa: a compreensão e a extensão da ilusão,
para falar em termos aristotélicos. ( )

Ao fim e ao cabo, vivemos no mesmo mundo
e possuímos mundos diferentes.

Peço um café, mais para cumprir o ritual
do que por necessidade. Aproveito e
peço um bolo qualquer. O empregado
traz-me um «bom bocado»,
segundo me informou.

A diferença entre um «bom bocado» e
um «pastel de nata» é mínima e quase
imperceptível à primeira vista.
Enquanto este tem o bordo circular superior
liso, aquele tem, a partir de um bordo circular
imaginário, o bordo constituído por uma dezena
de arcos de circunferência.

Eu explico de forma simples

«bom bocado»

«pastel de nata»


Constato que o pasteleiro criador tem, além da rotina
da forma do bolo, uma certa imaginação
quanto aos bordos, de tal maneira
que, a partir de uma diferença
mínima, construiu um novo
modelo de bolo.

Além de que o nome
é engraçado, infantil e sugestivo.


Perguntei ao empregado se vendia mais «bons bocados»
que «pastéis de nata». Um pouco admirado,
respondeu-me que, de facto, se vendia
mais dos segundos.

Exactamente como eu pensava: a partir de uma subtil
introdução nova numa forma velha,
acompanhada de um nome atraente,
as pessoas diversificam-se:

os conservadores ( ) agarram-se aos «pastéis de nata»,
enquanto os progressistas ( ) são atraídos
pelos «bons bocados». ( )


Levanto-me e pago o café e o «bom bocado».
Volto as costas ao Ideal das Avenidas.

De facto, este café não me agrada,
não me dá prazer. É um prazer sair. ( )

Eu vou explicar tudo de uma forma muito simples.

A filosofia foi a porta de entrada dos meus delírios. ( )
Dela germinavam as minhas ânsias teóricas,
as quais eu logo colava a uma ideologia. ( )

Hoje sou amante da filosofia e adverso das ideologias. ( )

Desracionalizando a filosofia como saber principal
das ideologias, restou-me o que é originariamente
filosófico: um espaço de busca, de procura,
de movimento, de desassossego intelectual,
um espanto do inesperado,
uma insaciável sede
de ler e de saber

para além das sabedorias
(filosofias mais ideologias)
institucionalizadas:

a sabedoria do outro e do mesmo



Luís Martins, O outro e o mesmo,
Contexto, Lisboa, 1981, pp. 157-65.

2 comentários:

mdsol disse...

E eu passei aqui um bom bocado a ler!
:)))

vbm disse...
Este comentário foi removido pelo autor.