fevereiro 06, 2017

janeiro 05, 2017


[Economistas]*

Habituados a decifrar a faixa de nuvens
sobre a serra de Sintra no  horizonte,
ao fim da tarde falávamos
como arúspices. As nossas palavras
seriam no dia seguinte os próprios ventos.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.442

(*) Título meu.

dezembro 22, 2016

.



«Ninguém se lembraria de explicar o movimento por considerações de cor,

ao passo que o contrário é ou foi tentado.

Há, pois diversidade.

Talvez por sermos fonte de movimentos,
e não de cores - e este poder

ser
condição de explicação.
Paul Valéry, O senhor Teste, Relógio d'Água, 1985, p. 103

outubro 13, 2016

Goldman Sachs confirms $1.6B investment in Uber
Uber is still raising money, it turns out, with a new $1.6 billion in convertible debt from Goldman Sachs.
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Se é suposto ficar admirado, não entendo porquê! Sempre que algo 'mexe' ali vai a banca, o fisco e os arrendadores de espaço, cobrar a sua parte de <rendimento sem trabalho actual>, como se explicava antiga e eufemisticamente entre os docentes da economia clássica!

Mas é bem verdade que hoje em dia, com a produtividade alcançada pela engenhosidade da ciência e da tecnologia, e pela fertilidade controlada da natureza, o núcleo da questão económica

centra-se na forma de explorar com eficácia o trabalho vivo, e no modo de redistribuir os sobrelucros usurários do capital pela população activa e inactiva, sem aniquilar pela homogeneização cultural a diversidade de cada vida individual.

setembro 29, 2016


pintura: athena reveuse

Muito justa reflexão de Walter Benjamin in "Acervo filosófico", sobre a banalização do que é único enquanto criação. Lembra-me a distinção entre Física e Geometria, ponto físico e ponto matemático; este, exacto mas não real; aquele, real mas inexacto. Leibniz o ensina. Valéry, sublinha-o.

«La peinture permet de regarder les choses
en tant qu’elles ont été une fois contemplées avec amour.»

Paul Valéry, "Tel Quel", § 337.

setembro 06, 2016




CANTO DA ARTE BREVE

Horácio enganou-se ao contar
os longos anos da vida breve vivida.
O periquito que ganhou a plumagem
há uma semana, e morre mal concebe
as cores no seu corpo, é apenas breve.
O meu relógio de caixa alta, Cronos,
que como um animal ferino me segue,
é também um ser de pulso escasso
e fugaz. No sexto dia pára , e espera
que eu de novo lhe ofereça o seu bafo.
Só os meus imensos dias jamais cabem
nos versos escritos ou ditos, quotidianos,
e se somarmos as horas dos sentidos
é curta a memória e alonga-se o desejo.

Os afectos, os silêncios, os sinais
são a diversa linguagem dos meus dias
e o corpo soma a sua soma em vida.
Nunca a Arte mais se demorou
do que estas mãos que são frugais:
o pouco pão e a água abundam
nos muitos anos longos de penúria.
E é tão vária e imprecisa a vida
que não pode ficar toda contida
em palavras que apenas a resumem.
Os bens que entesourei excedem
a Arte que quisesse neles contentar-se.
Ó morte, se a vida é longa e breve
soma-lhe ainda a mudez e a cegueira
e dá tu aos versos a medida inteira.

Fiama Hasse Pais Brandão, in Cantos do Canto,
Relógio d’Água, Lisboa, 1995

setembro 05, 2016


Quatrième dialogue

«MACHIAVEL : Vous êtes un grand penseur, mais vous ne connaissez pas l’inépuisable lâcheté des peuples ; je ne dis pas de ceux de mon temps, mais de ceux du vôtre ; rampants devant la force, sans pitié devant la faiblesse, implacables pour des fautes, indulgents pour des crimes, incapables de supporter les contrariétés d’un régime libre, et patients jusqu’au martyre pour toutes les violences du despotisme audacieux, brisant les trônes dans des moments de colère, et se donnant des maîtres à qui ils pardonnent des attentats pour le moindre desquels ils auraient décapité vingt rois constitutionnels.»


Maurice Joly (1821-1878), ‘’Dialogue aux enfers entre Machiavel et Montesquieu (1864)’’

maio 08, 2016


















«Ils marchaient l’un suivant l’autre, dans une vasière moussue, à l’extrême bordure des champs. [ ] Un vol de courlis ponctuait de cris plaintiffs la tombée du jour, heure froide baignée de teintes expirantes où la lumière n’était plus qu'un reflet des choses, où les choses n’avaient plus besoin que de leurs formes et n’appelaient plus de noms. [ ]

Ce fut Marie qui se souvint d’un vers de Kipling qu’ils avaient lu ensemble:

’’We where dreamers, dreaming greatly’’(*)

(*) “Les Sept Mers”: «Nous étions des rêveurs, faisant de grands rêves»

Marc Chadourne, “Lilith”, pp.49-50

abril 22, 2016




Estou procurando,
estou procurando.
Estou tentando entender.
Tentando dar a alguém o que vivi
e não sei a quem,
mas não quero ficar com o que vivi.
Não sei o que fazer do que vivi,
tenho medo dessa desorganização profunda.
Não confio no que me aconteceu.
Aconteceu-me alguma coisa que eu,
pelo facto de não a saber como viver,
vivi uma outra?
A isso prefiro chamar desorganização
pois não quero me confirmar no que vivi
– na confirmação de mim
eu perderia o mundo como eu o tinha,
e sei que não tenho capacidade para outro.

Clarice Lispector,
(A Paixão segundo G. H.)

abril 20, 2016




Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?


Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que num momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!


E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...


Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze — quanta flor! — do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?

 

                           Camilo Pessanha

junho 07, 2015

eis o relato da origem e desenvolvimento da civilização humana,
logo após a invenção do fogo - e o cozinhar os alimentos :) -,
depois de mostrar como a linguagem e o nomear as
coisas surgiu naturalmente entre os humanos
[e, digo eu, - que o li algures -, a linguagem
só começou, depois dos hominídeos terem deixado a floresta
e o seu imenso bruá cacofónico, e migrado para a savana,
onde o silêncio envolvente, tornava audível
a articulação dos sons da fala! :)]



Uma maravilha!


«E a propósito do fogo não te interrogues para contigo:
foi o raio que primeiro fez descer o fogo à terra para os homens
e foi a partir daí que todo o ardor da chama se espalhou.
Com efeito, vemos muitos corpos inflamados pelos fogos celestes,
quando um golpe do céu lhes comunica  o seu calor.
E, contudo, quando uma árvore frondosa, vacilando fustigada pelos ventos,
se agita e se encosta aos ramos de outra árvore, nasce da fricção
um fogo de fortes forças, e brilha por vezes o férvido calor da chama,
enquanto os ramos e os troncos se friccionam entre si.
Qualquer destas coisas pode ter dado o fogo aos mortais.
Depois, o sol ensinou a cozinhar os alimentos
e a amolecer com o calor da chama,
porque os homens viam muita coisa a amolecer nos campos,
vencidas pelos golpes dos raios e pelo calor do sol.
Depois, com o passar do tempo, aqueles que tinham mais engenho
e inteligência ensinavam a mudar a vida com as novas invenções e com o
fogo,
começaram a fundar cidades e os próprios reis
começaram a estabelecer cidadelas, protecção e refúgio para si próprios,
a dividir os gados e a distribuirem os campos,
de acordo com a beleza, com as forças e a inteligência de cada um.
Na verdade, a beleza foi de grande importância e as forças tinham grande
valia.
Depois, inventou-se a propriedade e foi descoberto o ouro,
que facilmente retirou aos fortes e belos o favor,
com a maior parte a seguir o séquito do mais rico,
por muito fortes que sejam ou dotados de um belo corpo.
Mas se alguém orientar a sua vida com recta razão,
a grande riqueza para o homem é viver frugalmente
com espírito tranquilo: com efeito do pouco nunca há falta.
Mas os homens quiseram ser ilustres e poderosos,
para que a sua fortuna perdurasse com sólidos alicerces
e, opulentos, pudessem passar uma vida tranquila.
Em vão, pois competindo para alcançar o pico das honrarias,
encheram de perigos o caminho e a inveja
como um raio, derruba-os lá do alto com um golpe,
e precipita-os  ignominiosamente no negro Tártaro,
pois a inveja abrasa as coisas mais excelsas como um raio,
de forma que de um modo geral é muito mais satisfatório
que um homem pacato obedeça em vez de querer governar,
exercendo o poder, e dominar reinos.
Por isso, deixa-os lá suar em vãos esforços,
labutando ao longo do estreito caminho da ambição,
pois o que sabem vem-lhes do que  os outros dizem e pedem coisas
a partir do que ouviram, mais do que a partir dos próprios sentidos.
E isto não acontece mais agora do que aconteceu antes e do que será no
futuro.
Ora, mortos os reis, jazia destruída a prístina majestade dos tronos
e os ceptros soberbos, e a insígnia ensanguentada  da cabeça real
chorava ao ver sua excelsa honra sob os pés do vulgo.
Na verdade, é calcado com sofreguidão excessiva aquilo que antes se
temeu.
E assim o poder regressava à escumalha e às multidões
e cada um reclamava para si o poder e o posto mais elevado.
Depois, houve quem ensinasse a nomear um magistrado
e a estabelecer direitos, para que quisessem ter leis.
Na verdade, o género humano, cansado de passar o tempo na violência,
enfraquecia devido às inimizades, razão de sobra para de bom grado
se submeter a leis e a um rigoroso Direito.
Isto porque aquele que se preparava para ferir na sequência da ira
o fazia com mais violência do que agora é permitido por leis justas.
Foi por isso que os homens se enfadaram de passar os seus dias em
violências.
Desde então, o pavor das punições mancha as alegrias da vida.
De facto, a violência e o ultraje enredam aquele
de quem partiram e a ele regressam na sua maioria,
e não é fácil levar uma vida tranquila e calma
a quem viola com as suas acções os comuns pactos da paz.»

Lucrécio, Da natureza das coisas («De rerum natura», I a.C.),
Trad., introd. e notas: Luís Manuel Gaspar Cerqueira,
Relógio D’Água, Lisboa, 2015, Livro V, 1091-1155

junho 02, 2015

 
 














(1) Existe o composto;
(2) Portanto, existe o simples;
(3) O simples não pode ser extenso;
(4) A extensão é divisível em partes;
(5) Nenhum corpúsculo, por minúsculo que seja,
é indivisível, pelo que não é simples;
(6) Logo, o elemento simples, que deve existir,
deve ser inextenso.
(7) Então, como e onde encontrar um elemento
real, inextenso e simples?
(8) No conhecimento imediato, na natureza espiritual,
na experiência interior da nossa consciência.
(9) A consciência é o exemplar mais acessível dos átomos
inextensos de que os compostos são feitos.
(10) Chamam-se mónadas (= unidades) às substâncias primárias.
(11) No universo só existem mónadas e compostos de mónadas.
(12) Nas mónadas distinguem-se duas coisas:
«percepções»
«apetições»
(13) Uma mónada é apenas um centro de percepção e de apetição.
(14) Distinguem-se na percepção dois modos:
percepções conscientes ou «apercepções» e,
percepções inconscientes ou «pequenas percepções».
(15) Há inúmeros estados de que não nos apercebemos.
(16) Contudo, é preciso que nos «apercebamos» desses estados
sem deles nos «apercebermos».
(17) Porque só assim sucedendo se explica que consigamos
apercebermo-nos dos objectos compostos dos estados
de que não nos «apercebemos».
(18) Em nós, são poucas as percepções de que temos conhecimento.
(19) Em compensação, sentimos uma infinidade de percepções inapercebidas.
(20) Distinguem-se entre si as percepções obscuras, claras, distintas, adequadas.
(21) Percebemos obscuramente o que nãoestamos em estado de reconhecer.
(22) Percebemos claramente oque estamos em estado de reconhecer.
(23) Percebemos distintamente o que analisamos suficientemente
para lhe distinguirmos os elementos.
(24) Percebemos adequadamente o que podemos analisar até ao fim.
(25) A observação mostra-nos:
1º objectos inorgânicos;
2º seres vivos, como as plantas;
3º seres vivos conscientes, como os bichos;
4º seres vivos conscientes, capazes de reflexão
e de ciência, como os homens.
(26) O que são todos estes objectos, todos estes seres?
(27) Só existem mónadas imateriais.
(28) São as mónadas que correspondem aos objectos que conhecemos.
(29) As mónadas existem em número infinito e compoem cada partícula
mínima da matéria.
(30) Cada mónada possui, como nós, percepção conjunta do universo.
(31) Cada mónada tem apetições que se orientam para a perfeição
adequada de todas as coisas.
(32) Contudo, essas percpções são do estado de «pequenas percepções».
(33) As mónadas não se apercebem de que se apercebem.
(34) Nos homens, a mónada dominante é um espírito, uma consciência
capaz de ideias distintas, de apreender axiomas racionais, de construir
ciências como a matemática e as ciências da natureza.
(35) Deus é a «mónada das mónadas». Possue um entendimento que lhe
representa todos os possíveis, uma vontade orientada para o Bem
Absoluto, e que escolhe o melhor mundo possível.
(36) É por ser o melhor possível, que o universo existe como o conhecemos.
(37) É na natureza do Bem que reside em última análise, a última razão
de ser de todas as mónadas criadas.
(38) Como é que as mónadas se podem conhecer umas às outras?
(39) As mónadas não são constituidas por partes;
(40) Por isso, não podem actuar do exterior, umas sobre as outras.
(41) A acção exterior só pode exercer-se aumentando, diminuindo ou
modificando as partes do objecto sobre que incide;
(42) Ora o que não é constituido por partes nãopode suportar nenhuma
acção exterior;
(43) No entanto, as mónadas conhecem-se mutuamente.
(44) Como o conseguem?
(45) De toda a eternidade, cada mónada é uma fonte viva de percepção;
(46) Em estado de pequena percepção inconsciente, tudo nela existe em
estado destinado a perceber;
(47) Em cada mónada, as percepções seguem-se umas às outras em
conformidade a determinismo certo, e desde o princípio todas
as mónadas estão em harmonia;
(48) A cada estado de uma mónada A corresponde um estado das
mónadas B, C, D, E, etc.; a cada variação da primeira corresponde
uma variação paralela de todas as outras;
(49) Por virtude do seu acordo, as mónadas aparentam influenciar-se
mutuamente;
(50) Mas na realidade não o fazem;
(51) Cada mónada evoluciona como se estivesse sozinha mas as fases
da evolução de uma correspondem exactamente às de todas as outras.

André Cresson, Os Sistemas filosóficos, trad.
Edmundo Curvelo, colecção Biblioteca Cosmos,
nº 24 e 26 (2 vol.’s), Editora Cosmos,
Lisboa, 1942, pp. 14 a 18, (2º vol.)

maio 11, 2015














Decorre no contraluz uma águia irreal
que transpôs para a sua presença
um canto vago





maio 08, 2015


















Quando amanhece confundo todas as texturas
porque ignoro a distinção dos planos
e a composição das sombras.

maio 05, 2015



o aro do halo da noite é o anel afastado
de uma cadeia de reflexos tão nítidos
como as trevas dentro das imagens


Fiama Hasse Pais Brandão










abril 08, 2015

MEMORANDO DE UMAS SOMBRAS

Termina o dia. O melro, a mulher e as sombras repartem
entre si o que resta. Ela dança, preparar a mesa,
como em redor de Vesta. O melro, a olhar o sol vago,
escolhe a folhagem densa para cumprir o destino.
Ociosas, as sombras perseguem gestos e as formas.

Fiama Hasse Pais Brandão, Epístolas e Memorandos,
Relógio d'Água, Lisboa, 1996, p.27

abril 05, 2015

EPÍSTOLA PARA UM CARAMANCHÃO COBERTO

Nesse caramanchão que a madressilva cobriu
sempre estavam mais sombras do que corpos ou coisas.
A sombra de alguém que se sentasse junto aos vasos
estendia a mão nítida para uma flor de sombra.
Dançasse uma criança em volta do pequeno lago
no centro, e havia uma espiral de sombras claras.
Solitário, na própria sombra, o gato era um corpo
penando a dualidade de ser e de não ser.
Até a pá do jardineiro, linha de sombra oblíqua,
por ser de sombra se quebrava em ângulo.
Não porque todos não estivéssemos em vida ali
mas porque a madressilva, só ela, se embebia de luz.

Fiama Hasse Pais Brandão, Epístolas e Memorandos,
Relógio d'Água, Lisboa, 1996, p.22

março 13, 2015

Veredas são caminhos abertos, livres
entre florestas inóspitas ou suaves
e são símbolos de ruas de escassez
de cidades com os seus bairros de mágoa.
O século do Homem Só era este século,
em que o trabalho brilhou como uma estrela
e depois doeu com a cruz da miséria.

Fiama Hasse Pais Brandão, Cenas Vivas, in
"Peregrinação e Catábase" Relógio d'Água,
Lisboa, 1996, p.111

março 11, 2015

Visitei ontem as novas instalações da livraria Pó dos Livros
que mudou da Av. Marquês de Tomar para a de Duque d'Ávila.

É uma verdadeira livraria, inconfundível com essas tais lojas
de produtos tipográficos que aparentam ser livros e
não passam de lixo a reciclar, mês a mês.

Orgulhosamente, como livreiros, não desprezam
mostrar livros de edições de há muitos anos,
e creio que até, livros usados.

Enfim, objectos de leitura,
de espírito vivo.


Comprei um livro escrito há mais de dois mil anos
e que sempre desejei possuir e ler de fio a pavio

o Da Natureza das Coisas, de Lucrécio
o grande poema latino do materialismo atomista!
Pela sua beleza imponente, transcrevo os versículos 49-79.




Ei-los,

«Ora agora presta ouvidos disponíveis e um espírito sagaz,
desprovido de preocupações, à doutrina verdadeira,
            50
para não desperdiçares desdenhosamente
a minha dádiva para ti preparada com amorosa dedicação.

Vou, de facto, começar a expor-te a derradeira explicação
do céu e dos deuses e revelarei os elementos primordiais da matéria
a partir dos quais a natureza forma todas as coisas, as faz crescer e as sus-
                                                                                                       tenta
e em que a natureza as dissolve quando as mesmas são destruídas,
a que nós costumamos chamar matéria e corpos geradores,
ao explicar a doutrina, e sementes das coisas, e também lhes damos
o nome de corpos primordiais, porque é a partir deles que tudo existe.

Como a vida humana jazesse vilmente prostrada
               60
diante dos olhos de todos, esmagada sob o peso da religião,
que assomava a cabeça das regiões do céu,
ameaçando os mortais com um aspecto horrível,
este homem grego foi quem em primeiro lugar ousou erguer
contra ela os olhos mortais e quem primeiro ousou fazer-lhe frente.

E a este não o demoveram nem o que se dizia dos deuses nem os raios
nem o céu com o seu bramido ameaçador, mas antes mais estimularam
a enérgica coragem do seu espírito, a ponto de desejar ser o primeiro
a despedaçar os ferrolhos firmemente fechados das portas da natureza,
      70
e assim a vívida força do seu espírito obteve um triunfo completo
e ultrapassou em muitos as muralhas flamejantes do nosso mundo,
percorreu com a sua inteligência e ardor o universo imenso,
de onde nos traz, vitorioso, o conhecimento do que pode
e não pode nascer, e por fim por que leis está limitado o poder
de cada coisa e os seus marcos fundamente fixados.

Por isso a religião é agora, por sua vez, pisada sob os pés
dos homens  e a vitória eleva-nos aos céus.»


:)

março 08, 2015


Basta ligar a televisão para se perceber o estado de indigência intelectual e política a que chegou o país. A informação, que já foi sofrivelmente sensata, embora parcial e sumária, tem hoje o critério editorial do antigo semanário “O Crime” e da imprensa cor-de-rosa e desportiva.

Para começar, os portugueses são presenteados com horas do que antigamente se chamava “casos crapulosos”: a facada, o tiro, o roubo, a violência doméstica, histórias de tribunal, considerações de réus, de testemunhas, de advogados, de “populares”, da polícia e de um ou outro comentador de serviço. Depois do “crapuloso” vem o “acidente” e a catástrofe: desastres de avião e de automóvel, incêndios, tempestades de vento ou neve, inundações, tudo o que meta feridos, mortos, miséria e sangue.

Isto ocupa muito mais de metade do noticiário médio. O resto consiste numa pseudo-reportagem desportiva, ou seja, no dia-a-dia do futebol. A televisão não perde um jogo ou um golo que possa  interessar a meia dúzia de fanáticos de um clube qualquer. Segue os treinos. Esclarece sobre o “plantel” da equipa A ou da equipa B, sobre os lesionados, sobre os castigados, sobre os “duvidosos”. Entrevista treinadores na véspera e no minuto seguinte aos “clássicos” e não- “clássicos” do campeonato. Jorge Jesus, por exemplo, é seguido com uma persistência e um zelo com que não se segue nenhum ministro, o primeiro-ministro ou Presidente da República (agora tão retirado que o boato da sua prematura morte já corre pela província). E, através de tudo isto, Ronaldo, sempre Ronaldo, infinitamente Ronaldo.

O tempo que sobra (e o jornal da TVI, para só falar nele dura uma hora e meia) vai para festas: festas de cozinha, festas de vinho, festivais da alheira, do presunto e do chouriço, de quando em quando as prodigiosas fabricações do chefe A ou do chefe B e, continuamente, o sabor e o aroma dos tradicionais produtos deste nosso querido Portugal (que não se vendem nos supermercados, nem nas mercearias de Lisboa). Não admira que neste banho cultural, a política tenha pouco a pouco adoptado a natureza da televisão. Com um esforço sublime consegue concorrer, e colaborar, com os “valores” que regem os noticiários e não pára de nos dar novos motivos de interesse e estima: a barafunda Sócrates, a barafunda BES, os mistérios do “Visa Gold”, o velho incumprimento fiscal de Passos Coelho, a prisão de um inspector da polícia, a mentira impenitente e descarada no parlamento e fora dele. Portugal acaba com certeza por se transformar num “filme negro” (anos 40), sem Bogart, nem Bacall. E nós, pachorrentamente, assistimos na nossa cadeira. 

Vasco Pulido Valente, hoje, no Público

março 05, 2015













MEMORANDO  DE  UMA  FÁBULA

Pela manhã, a teia prendia gotas de água
como cristais e pérolas. Com os seus fios róseos
ela absorvia o Sol, e era o manto de ouro
da aranha magnífica. É uma fábula, sim,
e eu soube o fim quando vi o dolo e a morte.

Fiama Hasse Pais Brandão, Epístolas e Memorandos,
Relógio d'Água, Lisboa, 1996, p.29

janeiro 19, 2015

Across the Universe - Fiona Apple with lyrics



"Across The Universe"

Words are flowing out like endless rain into a paper cup
They slither wildly as they slip away across the universe
Pools of sorrow, waves of joy are drifting through my opened mind
Possessing and caressing me
Jai Guru Deva OM

Nothing's gonna change my world
Nothing's gonna change my world
Nothing's gonna change my world
Nothing's gonna change my world

Images of broken light which dance before me like a million eyes
They call me on and on across the universe
Thoughts meander like a restless wind inside a letter box
They tumble blindly as they make their way across the universe
Jai Guru Deva OM

Nothing's gonna change my world
Nothing's gonna change my world
Nothing's gonna change my world
Nothing's gonna change my world

Sounds of laughter, shades of life are ringing through my open ears
Inciting and inviting me
Limitless undying love which shines around me like a million suns
It calls me on and on, across the universe
Jai Guru Deva OM

Nothing's gonna change my world
Nothing's gonna change my world
Nothing's gonna change my world
Nothing's gonna change my world

Jai Guru Deva
Jai Guru Deva
Jai Guru Deva
Jai Guru Deva
Jai Guru Deva [fade out]




janeiro 15, 2015

LÍRIO

Seda da pétala roxa em dimensão menor
do que acurva frontal no mundo
............................................................................. diminuto
com a permanente ilusão de que o Universo
é magnânimo. Para exprimir a grandeza
e a intenção de cada sentimento utilizo
cristais do estame sedas da circunvolução
............................................................................................. roxa
vacuidade do cálice o dístico lírio.


Para a clareza absoluta tudo e nada
eram uma forma de convenção e de verdade.
Uma expressão verídica os portões do Universo
a abrirem com a voz toante
que me descreve a ficção. O setinoso tom
a forma doce do grande acorde do eco
............................................................................sobre o vau
completavam o prazer do silêncio pessoal.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.222

janeiro 14, 2015

Quiero - Salvatore Adamo



Quiero la luna que ilumina
Tu silueta al caminar
Con paso de bailarina
Tú la sigues sin mirar

Quiero que vengas cariñosa
Y me habrás besado al llegar
Cuando te sientes tan dichosa
Y te ríes al besar

Quiero la calma de la tarde
Cuando ya empieza a anochecer
Es el crepúsculo que arde
Como arde mi querer

Quiero que tu mano me guíe
Si estoy en la oscuridad
Y mi corazón sonríe
Lleno de felicidad

Quiero tus ojos color de bruma
Que a veces veo en mi soñar
Son como un manto de dulzura
Que me viene a despertar





Annabela Sciorra

janeiro 13, 2015


EPÍSTOLA  PARA  UM  BANDOLIM 
SEMPRE  EM  CIMA  DE  UMA  MESA

Não sabes onde está a tua alma eterna hoje
porque te deixei mudo e imóvel, sem os dedos
de alguém ignoto, um dia, que te possuiu
e ao teu etéreo dom. Perguntas-me se estarás
para sempre ali, e eu digo: não estarei para sempre.
Podes sonhar com a melodia antiga ainda,
que trocaste com o demo pelo teu silêncio aqui,
pois estas mãos apenas imitam o teu som subtil,
por erro e por defeito, nas palavras destes versos.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.596

janeiro 11, 2015


VIVENDA

Na tarde, o calceteiro bate no granito.
Na noite, o mocho pia no silêncio.
E, além destes ruídos, a água
escoa do cano velho da bica.
Nos meus ouvidos, a minha vida
reparte-se entre outrora e isto.
Entre um ruído e outro, no centro
dos sons revivo. Mas não terei
de conhecer o que uma vez vivi
nem o que abandono. Sou livre
para a traição e o esquecimento
quando aqui estou.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.625-26.





janeiro 09, 2015


OS GROUS?

As viagens separam-nos do passado.
Se apenas viajássemos como grous,
sem reconhecer as nações debaixo da quilha do nosso esterno,
se não trocássemos os idiomas e as unhas
com os habitantes das novas geografias,
seríamos nós. Porque o idioma
é fechado e insondável em cada criatura,
porque cada nação é o berço de uma língua
e os meus poemas noutra língua não são meus.
Quando viajamos no mundo não sabemos quem fomos.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.625

janeiro 07, 2015


UM  CANTO  MUDO

Guardam-me, de dia, um só melro,
de noite um só grilo. O melro
suspende nos ramos o sulco do seu canto,
um assobio contínuo e descontínuo
que de repente cai, se me ouve os passos
roçarem entre as pedras e as plantas,
no meu chão. O grilo, esse,
vizinho sazonal da minha porta,
parente que vive na soleira
num torrão de terra seco e verde,
quando range numa frincha o vento
ou se balançam as sardinheiras da entrada,
corta o seu fio de sons, o movimento eufórico,
e avisa-me da vida ou morte, pelo silêncio.

Ambos desfrutam a Terra ao pé de mim,
festivos se estou quieta,
ou se o microcosmos comigo se conforma.
Se eu ando incerta ou se o condutor das almas
me força o meu cubículo
no centro da clareira, o melro ou o grilo
chamam-me calando-se.
Porque cantam sem pensarem no seu canto
e conhecem dos meus nomes o mais eterno.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.630-31.


:)

janeiro 03, 2015

DO  OUTONO  II

Sem vento, a minha voz secou
aqui, neste parque de cedros quietos.
 

Tudo é como ontem era, mas a minha
voz, na minha face, calou-se,
porque só o vento me trazia a fala,
vinda de algures, com notícias de alguém,
indo para além, para outros ouvidos, num país.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.712

janeiro 01, 2015

DA  FIGURA  DAS  COISAS

Hoje, os vendavais
que dão novos ângulos
à figueira nua de folhas,
cujos troncos se desencontram
como riscos feitos no azul
pelo Deus ignoto,
começaram, ou recomeçaram,
o que é o mesmo,
porque ano após ano,
o deus risca nos céus
traços diversos únicos.


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p.714