novembro 21, 2012


[ a crise, a burguesia e a falsificação de obras de arte ]

«O pânico instalara-se de modo intolerável e chegava à Europa. Em Portugal, por exemplo, ainda não era, mas ia passar a ser chiquíssimo as classes dominantes dizerem coisa como «estamos outra vez tesos, filha», The Economist bem escrevia vingativamente they claim now everything was wrong before, e os compradores da véspera tinham pedido aos seus advogados que começassem a engendrar toda uma série de razões técnicas para não procederem ao levantamento e muito menos ao pagamento dos quadros licitados, por razões de austeridade, morigeração de costumes e preconceitos estéticos, e dizia-se mesmo que alguns maridos, que tinham investido forte , receavam voltar a perder completamente a ponta, o que era susceptível de lhes causar contratempos nada discipiendos, como se diz que já tinha acontecido aquando do vinte e cinco de Abril.
Também por cá havia indícios seguros de que a questão ia passar a ser a do real fake. Nas colunas sociais, as ladies da nossa melhor sociedade começavam a deixar-se fotografar torcendo o nariz aristocrático a umas borradelas gigantescas que as tinham extasiado havia algumas semanas apenas e tinham agora a bolinha vermelha da reserva já meia descascada e esquecida.»

:)

op.cit., p.272-3

novembro 15, 2012


«Oh, o hábito de nos aferrarmos ao que não existe. [ ]
Há uma questão a decidir. [ ] É uma questão bem chata, oh.
De um lado a vida toda; e do outro, o nada todo dela.»

Vergílio Ferreira, Nítido Nulo (1969),
Lisboa, Quetzal, 2012, p. 257.


novembro 07, 2012

E na sequência daquela surpresa, outra surgiu numa bela e singela história de um episódio de vida, onde a pesca desportiva ao longo do mar de Sesimbra e da Arrábida se cruza com um inesperado enamoramento numa loja da Rua Augusta; tudo na escrita airosa de Carlos Espírito Santo de Mello, na Lisboa dos anos cinquenta. :)



novembro 04, 2012

Surpreendeu-me ver um livro de Carlos Espírito Santo de Mello à venda, num escaparate do centro comercial de Via Catarina, no Porto, um autor do clássico Análise de Balanços, sua obra de escrita cristalina e escorreita sobre o tema universitário de economia que li e estudei há mais de cinquenta anos! Folheei o livro, editado em 2005 pela editora Civilização, a proprietária das livrarias Bulhosa, e encantou-me ver o meu apreciado autor debruçar-se sobre uma disciplina que hoje em dia parece ter poucos cultores e que sempre apreciei: a geografia huimana.

Mostro este excerto onde se denuncia a manipulação da verdade a que os interesses económicos submetem a  realidade dos povos, ocultando-lhes a causa e os causadores da sua miséria.


«Como em toda a África até à década de quarenta também na Etiópia, a alta imortalidade infantil tendia a manter estável a população. Para as mulheres africanas a perda de prole logo na primeira infância era um acontecimento de rotina pouco preocupante. Os sobreviventes eram cuidados e fontes de redobrado prazer. Esse método da natureza para manter estáveis as populações (e assegurar boa genética) parece rude face às bitolas de hoje. Surge, porém, uma questão pertinente: será preferível que uma criança morra pouco de pois de nascida — antes de poder sequer saber o que é a morte — ou ser salva para um subsequente falecimento lento e torturado numa curta vida de carência alimentar ou, ainda, como acontece a milhões no Subcontinente Indiano, viver os seus dias acorrentada ao local de trabalho?

Na Etiópia, não se punham tais dilemas. A meio do século XX, uma população estável e auto-suficiente era estimada em dezoito milhões.

Depois veio o dilúvio…
… da penicilina.

Reagiu tudo com entusiasmo:
— As mães, ao verem cinco, seis ou mais filhos a sobreviverem em vez dos habituais dois ou três.
— Os autoproclamados benfeitores e missionários desvanecidos com a resposta de Deus às suas preces.
— E as empresas farmcêuticas, essas, a engordar…

… e alguém fez contas ao custo e à logística, ainda que apenas de “alimentar” [ ], de todas as bocas em explosão? [ ]

E aconteceu que os 18 milhões de almas de 1950 deram origem a 36 milhões em 1981. Também aconteceu que aperfeiçoamentos farmacológicos fizessem já em 2004 os Etíopes ultrapassar os 72 milhões [ ]… o mesmo é dizer, de bocas.»                    
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«Quanto precede leva mais cedo ou mais tarde à pergunta do porquê da relutância dos média em dar a importância devida aos factores populacionais. Neste particular a primeira coisa a tomar em conta é que a vasta maioria dos média no mundo ocidental é privada e por isso tem que, de algum modo aferir as saus exteriorizações com a motivação do lucro — essencial à sua própria existência. Ora a espectadores e ouvintes pouco interessam as progressões numéricas. Deleitam-se, sim, com as grandes corrupções, os ataques de bombistas suicidas, as crises de fome aqui, ou ali, sempre devida a grandes secas, pragas de gafanhotos ou inundações (mas não à sobrepopulação!) tudo com a correspondente filmagem de crianças esqueléticas, bem apontada ao âmago dos instintos maternos e paternos. A inexorável progressão dos números que tudo condiciona pois essa não tem conteúdo emocional.»

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«Anos após a definição dos “direitos do homem” acrescentou a ONU um pronunciamento acerca dos “direitos das crianças”. Exigem elas vestuário, habitação, alimentos, educação e assitência médica. A utopia de ver generalizados estes direitos  é evidente para qualquer um que veja noticiários televisionados. Neste contexto, porém, seria de indispensável coerência acrescentar o direito a “não nascer, sempre que os cinco demais direitos não estivessem assegurados”. Esse claro direito de não vir ao mundo apenas para sofrer, resulta mais imperioso sempre que se torne evidente que nem um só dos cinco direitos enunciados esteja assegurado. A inacção culposa dos média face a esta realidade, bem como — mais evidente e gravoso — a oposição de entidades religiosas ao seu cumprimento, são obviamente atentados aos universalmente proclamados direitos da crianças.»
  
Carlos Espírito Santo de Mello, O que Os
Média Não Dizem, («The Media’s Taboo
— An Essay on Population Growth», 2001)
Porto, Civilização Editora, 2005, p.19-20; 290; 292.

novembro 01, 2012


No decurso de leituras avulsas dos filósofos sempre vi menorizada a filosofia de Aristóteles e da escolástica medieval.

Realmente, no liceu, a breve incursão pela Antiguidade Grega e pela silogística das proposições, logo era destituída pela subsequente exposição da doutrina dos racionalistas de seiscentos.

Descartes empalidecia o saber antigo com a sua magistral conclusão da existência do facto indubitável de haver pensamento — no que hoje se me afigura mais conforme à filosofia clássica do que o imaginava no liceu.

Pois, na verdade, era impossível a um jovem não ficar impressionado com a algebrização do espaço na deslumbrante geometria analítica de Descartes, e com a radicalidade da exigência do seu método de ordenar as ideias claras e simples, na condução do pensamento, independente do que os livros antigos ensinassem ou não, partindo do evidente até alcançar a certeza do conhecimento.

Sucedeu-me, contudo, uma surpresa serôdia quando há um ano vi nos escaparates da Bulhosa de Oeiras um livrinho com o preço de € 3.00, editado pela Guimarães Editores intitulado “Exaltação da Filosofia Derrotada” (1983) de autoria de Orlando Vitorino. Fiquei com curiosidade, comprei-o, trouxe-o para casa.

Ao lê-lo, tomei conhecimento, ao fim de tantos anos de leituras dispersas de filósofos, de uma argumentação séria e convincente em favor da tal filosofia derrotada, a clássica, de Aristóteles, invertida e desfigurada pela filosofia crítica de Kant, inábil suporte das diversas ciências modernas de autónomos “sectores” da realidade!

Hei-de tentar expor o que aprendi e apreciei nesta aprendizagem original de Aristóteles que sempre vi considerado quase ‘desactualizado’. Há argumentos em contrário. E mesmo no domínio da ciência económica, que me surpreenderam muito.

Como é possível Orlando Vitorino não ser comentado? Os excertos de Álvaro Ribeiro, em torno do “Estudos Gerais” do Trivium e do Quadrivium, achei-os deliciosos e situaram-me melhor no que foi o pensamento dos filósofos  siscentistas. Voltarei ao tema.